O que dignifica?
— Mãe, porque é que as pessoas dizem povo no poder?
A mãe descansa as mãos na cintura fina que acompanha a forma do seu corpo sem grandes nuances, uma mulher de 30 anos, que deu-se ao luxo de ter duas filhas, e que agora não sabe mais o que fazer com elas; a mais velha, de seis anos, está na idade dos insuportáveis porquês da vida; a mais nova, aos três anos, dorme como se não se importasse com o mundo, indiferente aos 34 graus celsius que se multiplicam ao triplo na casa de madeira e zinco e os mosquitos celebram a liberdade de circulação e livre manifestação. Deu agora para que a mais velha, justamente à esta hora da noite, com o jantar dos mil e um sacrifícios posto à mesa, querer saber os porquês destes tempos: porque gritam as pessoas lá fora pelo poder popular — povo no poder, rectifica-se.
— Mamã — insiste a criança ameaçadora, enquanto bate na malha da anca — o que dignifica povo no poder?
Ela quis dizer significa. Deu-lhe, acertadamente, para trocar os significados; é por dignidade que gritam as vozes imponentes que cada vez se aproximam na rua e um fumo negro ganha espaço pelos ares, em direção às nuvens dispersas, que parecem mover-se com a força dos homens, mulheres e crianças, e mais os outros a quem a dignidade sempre fez falta.
— Mamã, mamã…
— Diz…
— Quem são as pessoas que estão a gritar lá fora?
São os invisíveis e inaudíveis, assim chama-lhes a mãe. Mas evita dizê-lo na voz que a criança possa escutar e originar outros porquês. Por exemplo, continuar a falar dentro da sua cabeça onde se passam todos os problemas do mundo, perguntaria a criança a seguir, porque são eles invisíveis? A isso ela podia responder, porque sempre existiram, mas ninguém se deu conta, porque não estavam vestidos de forma «adequada», eles não cheiram aos aromas de Paris, nem à moda milanesa, antes à contrafação chinesa ou nigeriana; eles sempre andaram aos gritos que só arrepiava eles mesmos, porque quem os devia escutar cercou-se de vozes semelhantes, de igual poder, iguais cheiros, cantando todos em uníssono as canções de embalar os saciados. O que ficou para estes, são resquícios de uma solidão e angústia que só se sufocava nas promessas e nos sonhos vistos aos ecrãs de smartphones de segunda mão, tal como as roupas, vindas de contentores para o descarte. Os pensamentos da mãe podiam continuar a escalar, não fosse a criança se tornando incómoda, impaciente, um tormento para quem também tem os seus porquês da vida. Está na hora de responder à criança que não se cala, em coro com os inaudíveis.
— Mãe, lá fora estão a cantar porquê?
Esta pergunta será inevitável que responda; a mãe não se pode recolher nos seus silêncios habituais, fadados por ser mãe solteira; a mãe não se pode contentar mais com os silêncios irritantes do mundo; pesa-lhe a consciência por não responder a estas simples perguntas de um ser que procura compreender o mundo sem fazer juízos de valor; sem escolher os lados; sem cobranças, sem reivindicações, a não ser os porquês.
— Mãe…
— É uma manifestação, filha. Esses são os manifestantes.
Quando a mãe disse manifestantes, soo-lhe o que diria a um adulto como ela sobre esses tais; são os invisíveis, os desconhecidos, os inaudíveis que, hoje, estranhamente se lhes escutam as vozes já roucas de gritar por toda e pela vida; são os que metem medo; os que fazem encarar a vida com a certeza de que nem tudo anda bem, apesar do futuro que sempre se anunciou próspero; são os que agora cobram a sua parte da riqueza que todos os dias faz manchete nos jornais; são os que lavam os carros dos aspirantes à classe média, no centro da cidade; a mãe tem a idade da constatação e do pânico, distópico, como diria nas palavras que vem praticando na língua que procura afiar, a ver se arruma um emprego de jeito, por isso poderia continuar a caracterizar, mas faria de tudo para não tratá-los por vândalos, como nos noticiários.
Abre a janela e rouba o olhar à rua; a filha imita-lhe os gestos.
— Eles estão a dizer povo no poder, mãe.
— Sim.
— O que dignifica isso?
— Significa, filha.
— Isso mesmo, mãe.
— O quê?
— Povo no poder.
E esta, agora, pior é que se não respondo ela não se cala. Devo agora traduzir o que diz a letra da música, ou o que sai da boca dos manifestantes; nem eu sei muito bem o que dizem. Postos os instantes de reflexão e discussão com os seus sentidos, disse-lhe que é letra de uma música que agora é usada por manifestantes que reclamam o poder. Um tal de Azagaia é que a cantou, dando uma outra vida às palavras de Samora Machel. A mãe não podia dizer esses nomes à criança que ia perguntar a seguir sobre esses homens. Não há tempo para biografias, nem verificação dos factos. Factos, essa palavra é outra que traz consigo problemas, rima com a verdade, é parece que ela agora só vem de uma só voz, o que a mãe também acha um perigo. O perigo de uma história única que tanto ela aprende agora a combater no final do seu curso superior; agora que ela aprendeu que a verdade não virá de uma só boca. A mãe também está confusa, é o que pelo menos acha, ela pelo menos não tem certeza de nada, talvez por isso é que lhe custa dar certas respostas.
— Mãe, o que digni…
— Significa, sig-ni-fi-ca. sig, sig…
— O que são manifestantes?
Manifestantes são pessoas nas ruas descontentes com alguma situação, decidem mostrar a sua insatisfação. Por outras palavras, os que não se conformam com a ordem estabelecida. Apesar do esforço, a mãe sempre se complica, afinal, não é todos os dias que se vê essa gente, nem se debruçam sobre esses termos. Manifestantes, protestatários, protestantes, vândalos, indignados, revoltantes, revoltosos, rima com faltosos, mas estes estão presentes e não são uma pedra no sapato, eles até lançam pedras contra balas e o caos semeiam.
— Por exemplo, aqueles ali — apontou para a rua — querem justiça eleitoral, verdade eleitoral e dizem que o candidato no qual votaram é que ganhou eleições.
— Eleições é que aquilo de ir pintar o dedo que mãe disse está ir escolher o presidente?
— É isso mesmo — ela sabe que não é bem assim, mas quer sair de vez da encruzilhada.
Afinal, agora já não sabe bem se votou ou não, se escolheu um presidente ou não. Certa mesmo, está que pintou o dedo, recebeu três boletins de votos em que lhes marcou com um xix num símbolo e num rosto e que esse acto significava quatro escolhas, a escolha de um presidente da República, deputados da Assembleia da República e da Assembleia Provincial e, daí, um governador da província. Mas hoje já não está muito certa disso. É que já passou tanto tempo que se esqueceu até das opções que tomou.
A mãe dá uma pausa quando percebe que a filha tem a cara desfeita em rugas, a boca virada para um lado em estranheza do que a mãe diz. Mas o que está para aí a dizer a mãe? Cogita a criança; outros vários porquês devem estar a reproduzir-se na sua mente e logo se vão deitar para fora, para a consciência da mãe.
— Mãe, porque não estamos lá fora nós também?
— Porque estaríamos lá fora?
— A mãe não quer justiça?
Esta não vai parar de fazer perguntas, diz a mãe, já com sinais visíveis de intriga e cansaço. A pergunta faz o inevitável eco por dentro. Mas convém ser honesta, perante a insistência.
— Não sei, filha. Eu não sei.
— Mas a mãe diz que sempre sabe.
— É para dizer-te o quê?
— A verdade?
Verdade. O que virá a ser isso? Tenho 30 anos, boa parte dos quais como aluna e estudante, já sonhei com uma carreira, um projecto, tenho duas filhas e tenho-lhes na mão e no peito como um sonho a se colocar em prática, com os respectivos orçamentos em constante ajustamento; que lhes posso sonhar? A cabeça da mãe gira. A mesa está posta. Três fatias de pão, três rodelas de palone comprado na rua nestes dias — não terá sido daquele camião que vinha da África do Sul, atacado no meio da rua? —, três chávenas, um pacote de five rose, três colherinhas de açúcar, e várias penumbras. Quanto tempo se vai aguentar dentro de casa, com estas crianças a fazerem perguntas.
— Mãe, nós já não vamos à escola porquê?
— Porque será? — devolve-lhe a pergunta a sorrir.
— A professora diz que é por causa da manifestação.
— Sim.
— Não vamos voltar mais à escola?
— Não sei.
— Assim é bom, mãe?
A mãe afasta a chávena de chá em direcção à criança. E o pão com o palone frito. A criança recebe e dá uma mordida gulosa. A mãe hoje tem orgulho do jantar que parece um alento no meio da incerteza. Não se lembra de quando comeu um palone. São as realizações deste tempo que vem com o som dos apitos e vuvuzelas. O coração da mãe bate descontrolado, como se um sino tivesse tocado a recordar-lhe as perguntas que ficou sem responder. Lá fora parece que os inaudíveis ganham mais voz e parecem terem se decidido parar à sua porta. Os invisíveis estão cada vez em maior número e parecem exigir as mesmas respostas que a sua filha. Até quando isto vai durar?, pergunta-se a mãe.
— Mãe, o que eles estão a cantar agora lá fora?
Com que palavras poderá ela traduzir a canção dos invisíveis? Como dizer a filha tudo o que gritam aqueles homens e mulheres que enfim acharam o seu lugar no mundo e a sua voz já se escuta; abrem finalmente os noticiários, dedicam-lhes horas e horas de emissão na televisão, páginas inteiras de jornais, estudiosos de todo o tipo procuram compreender o refrão dos seus cânticos; como dizer para a filha tudo, palavra à palavra, o que cantam, na língua do povo, com todas as suas metáforas e inúmeros significados? E depois de dizer cada palavra, como responder os porquês que virão à seguir? Como se a criança imaginasse o tormento da mãe, volta aonde tudo começou.
— Eles dizem povo no poder, de novo.
— Sim filha, isso quer dizer que nós votamos, nós decidimos o nosso destino…
— E o que dignifica destino?
Decidiu não trocar-lhe as voltas com a palavra “dignifica”. E se realmente fizer sentido, o que dignifica o destino? O que dignifica o povo no poder? Nunca essas perguntas chegaram a fazer sentido como agora fazem, no emaranhado de sensações em que se encontra. No final, pensa como se respondesse à filha, dignidade, é o que cantam os invisíveis. Concluindo seu pensamento, levantou-se, pegou na panela e bateu-lhe com uma colher de pão. A filha bateu na mesa com as próprias mãos e fez tremer as chávenas, as colherinhas, a tigelinha de açúcar, o pão, o palone; e como se a mesa também reivindicasse a dignidade, foi-se abaixo, deitando tudo no chão de cimento queimado; a mãe bateu na panela com mais força; o colher de pau partiu-se em protesto; a filha dançou no frenesim, lá fora os homens e mulheres, expandiram os gritos em como se tratassem de uma plateia em êxtase com aquele espectáculo familiar.
Conto publicado originalmente no blog do autor.