Artur Nunes, músico angolano
São três nomes, três cantores e compositores cujas circunstâncias acabaram por ditar que sejam citados normalmente em conjunto: Artur Nunes, Urbano de Castro e David Zé. Todos eles desapareceram depois do golpe de Nito Alves a 27 de Maio de 1977. Dos três, Artur Nunes era o mais novo – ainda não cumprira 27 anos quando morreu.
Diz, quem conhece o quimbundo, que Artur Nunes o cantou como ninguém, canções de amor, canções tristes de morte e desventura, canções revolucionárias, canções políticas – deixou 12 singles gravados entre 1972 e 1976 e mais dois temas para a colectânea Rebita 75. Entre eles, uma obra-prima que sobreviveu ao passar dos anos e se manteve moderna por obra e graça da sua intemporalidade.
“Tia”, essa obra-prima, é um tema enleante, onde a voz de uma dolência triste de Artur Nunes traça razias sobre uma guitarra dedilhada num lamento que faz lembrar os funerais angolanos. Conta o texto da colectânea Angola 70’s que a mãe, Maria Luísa José Neto Fernandes, o levava aos combas, as cerimónias fúnebres do sétimo dia onde se canta, dança, come, bebe. Em “Tia”, entende-se porque lhe chamavam “O Espiritual”.
“Tia”, de Artur Nunes
Na compilação Soul of Angola: Anthologie de la musique angolaise 1965/1975, o texto vai mais longe para lhe chamar “O Sr. Lamento de Angola”, um epíteto apropriado para os seus lamentos (baladas), o seu semba-rumba, para essa voz que cantava como se Angola, se o mundo, se a vida fosse a sua igreja.
Sabe-se que nasceu a 17 de Dezembro de 1950, no bairro Cuba, no Sambizanga. Refere Jomo Fortunato, no texto que escreveu para o Jornal de Angola (“A obra singular de Artur Nunes”, 18 de Março de 2013), que o pai se chamava Artur Manuel Nunes. No booklet de Angola 70’s diz-se que o pai era americano. Seja como for, o barro da sua biografia foi mais moldado pelas mãos da mãe, pela areia do musseque, pelo nacionalismo aprendido no intrincado dorso do Sambizanga.
“Kisua Ki Ngui Fua”, de Artur Nunes
Conta o senhor Carmoto, testemunha da repressão pós-27 de Maio, no livro que Lara Pawson acaba de editar sobre o Fraccionismo, o golpe de Nito Alves e os rios de sangue que se seguiram (Em Nome do Povo) que, “como a maioria das reuniões com o Nito se tinham realizado no Sambizanga, foi aí que começou a repressão”. Além disso, “o Fraccionismo estava associado aos jovens” e Artur Nunes era o mais jovem dos três populares cantores que desapareceram na altura. Seja como for, aos outros nem a idade lhes valeu, “num caso como noutro, a popularidade dos músicos era tal, em especial nos musseques, que eram vistos como ameaças pela elite governante”, explica o Sr. Carmoto.
Mais do que a Escola de São Paulo e da Liga Nacional Africana onde estudou, foi o musseque Mota, o bairro Cuba e o Sambizanga que lhe despertaram o gosto pela música, a consciência política, a noção de injustiça (os Comités do Poder Popular, que Nito Alves ajudou a montar em Luanda, foram uma grande influência na politização dos musseques). Ainda aprendeu um ofício, serralheiro, para dias difíceis que o sustento assim obrigasse, mas a música fez parte desde cedo dos seus interesses. Foi o seu companheiro inseparável de origem cabo-verdiana, Sissi Mindo, que lhe ensinou os rudimentos da guitarra ainda antes de completar 14 anos.
A seguir foi passando por tudo quanto era manifestação cultural do bairro, começando no efémero Mini-ritmo, passando pelas turmas de Carnaval (verdadeira escola de integração dos ritmos angolanos na criação musical em Angola), nomeadamente a Turma do Bairro de Cuba, onde estava o seu tio Zé Kimbomba diá Ngola.
A sério, a sério, a coisa terá começado por 1970 quando funda os Luanda Show que haveriam de ter na sua formação Ti Pirigo, Malex, Jeremias António, Candinho Adão e Mário Silva. Isto, antes de se lançar a solo e colaborar com algumas das melhores bandas da época, Merengues, Jovens do Prenda, Kiezos e África Ritmos. E com os Kissanguela, esse grupo musical de intervenção política que passou a dominar o panorama musical do pós-independência.
“Importa reter que o Artur Nunes era um homem muito introvertido, cantor espiritual e as suas canções revelavam um forte sentimento”, diz Mário Silva citado no referido artigo de Jomo Fortunato. “Ele dominava o kimbundo, porque o pai falava bem e a mãe era da ilha. À época, as pessoas ficavam muito admiradas pela correcção linguística”, acrescentou.
Esquecimento, renascimento e internacionalização
O seu desaparecimento físico, como a quase todos os que morreram, foram perseguidos ou tiveram de se exilar depois do 27 de Maio, acarretou o seu quase esquecimento. A política impôs-se à criação artística – a guerra civil também deu uma ajuda ao desmembrar os circuitos de exibição musical – e foi preciso esperar até à paz e reconciliação nacional pós-2002 para ver Artur Nunes resgatado e celebrado pela qualidade da sua música.
O Caldo do Poeira, da Rádio Nacional de Angola, teve papel importante nesse recuperar de uma obra que a morte tornou curta sem que os anos a volvessem supérflua. A 12 de Dezembro de 2004, a 33ª e última emissão especial desse ano do programa Poeira no Quintal levava ao palco do Centro Recreativo e Cultural Kilamba vários contemporâneos de Artur Nunes para o homenagear, entre eles Zecax e Joy Artur.
“Imperialismo”, de Artur Nunes
Mais importante que o diploma de mérito e o leilão de duas fotografias, a edição em CD que a RNA fez das gravações do cantor e compositor foi a marca que esse dia deixou, ajudando a trazer o som de Artur Nunes até aos ouvidos das novas gerações, facto importante quando se sabe que este é um país novo em todos os aspectos e demograficamente ainda mais.
Estava lançada a semente para outras recuperações que se fariam depois e culminariam num nome tão popular da música angolana de hoje como é Yuri da Cunha a gravar um CD completo com composições do cantor do bairro Cuba. “Yuri da Cunha canta Artur Nunes” – o título desse disco de 2012 mostra de forma ilustrativa ao que se vai – alinha nove temas dentre os mais populares do cantor e compositor.
Yuri da Cunha canta “Njila Ia Kuaku”, de Artur Nunes
Entre as canções escolhidas por Yuri da Cunha não podia faltar “Tia” que hoje se transformou no mais internacional dos temas de Artur Nunes. Cédric Klapisch, realizador de Albergue Espanhol,ouviu a canção na rádio (retirada da colectânea The Soul of Angola, editado pela Lusáfrica em 2001) e não descansou enquanto não conseguiu alinhá-la na banda sonora de Paris, o filme que realizou em 2008.
“Paris”, de Cédric Klapisch
Também o realizador canadiano Kim Nguyen incluiu “Tia” na banda sonora de Rebelle (igualmente conhecido por War Witch), filme que esteve nomeado para o óscar de melhor filme estrangeiro em 2013, sobre a história de uma criança-soldado-vidente que conta ao filho por nascer a sua experiência na guerra num país não identificado da África subsariana.
“Rebelle/War Witch”, de Kim Nguyen
Só de pensar no que aconteceu com o etíope Mulatu Astatke, quando Jim Jarmusch o colocou na banda sonora de Broken Flowers – Flores Partidas e as editoras se lançaram à obra de Astatke e começaram a explorar o filão da música etíope. Só de pensar nisso, percebe-se a oportunidade perdida para Artur Nunes e a música angolana no que diz respeito à sua internacionalização. E hoje, infelizmente, Artur Nunes continua lá fora tão desconhecido como antes.
Pelo menos em Angola, há quem veja nele um elo de ligação perfeito entre a música de hoje e a música de antanho. Como o Conjunto Ngonguenha, esse colectivo de rappers de ouvidos abertos para o passado e o presente, que editou um disco onde não falta o sample de “Tia”: “O som partiu do beat do Conductor com o sample do Artur Nunes, o próprio Artur Nunes, mais o Legalize no refrão, a pôr muamba de ginguba nos nossos ouvidos”, explicavam. E Artur Nunes hoje é também isso, muamba de ginguba nos nossos ouvidos.
“Tia”, de Artur Nunes pelo Conjunto Ngonguenha
Publicado originalmente no Rede Angola.