Entrevista a Faustin Linyekula
Foi clandestino no Quénia onde ajudou a fundar a primeira companhia de dança contemporânea do país, tentou levar à cena um Hamlet no Rwanda com membros do tribunal internacional de justiça mas foi expulso e, em 2001, criou em Kinshasa os Studios Kabako, que no princípio eram apenas uma ideia sem lugar. Kabako era o nome de um amigo que morreu no século XX de uma doença de outros séculos: a peste bubónica.
Faustin Linyekula haveria em 2006 de fazer o percurso contrário ao desejo de muitos congoleses democráticos, completou o círculo e regressou a casa, a Kisangani, capital da Província Oriental (onde fica a cidade onde nasceu, Ubundu) da República Democrática do Congo, terra de Patrice Lumumba, o primeiro chefe de governo do Congo independente que Mobutu Sese Seseko conseguiu que os separatistas do Katanga mandassem fuzilar.
Por falar em Mobutu, o antigo ditador do Zaire (hoje República Democrática do Congo) é uma presença constante numa conversa com Faustin Linyekula, o bailarino, coreógrafo e encenador que foi convidado para a terceira edição do Bienal Artista da Cidade em Lisboa. Durante 2016, apresentará espectáculos em várias salas e espaços da capital portuguesa, além de criar novos projectos com artistas, estudantes e habitantes de Lisboa.
O primeiro espectáculo do programa de Linyekula na capital portuguesa estreou no dia 14 e estará em cartaz no Teatro Camões até ao dia 24, é um solo para o bailarino Miguel Ramalho da Companhia Nacional de Bailado que é acompanhado no palco pelo músico percussionista Pedro Carneiro. Serradura que cria pó quando movida pelos pés do bailarino ou quando as mãos a lançam no ar, luzes fluorescentes quando este percorre caminhos que levam o corpo ao longo de um percurso pontuado pelos sons da improvisação. Portrait Series: I Miguel Solo é a primeira mostra do trabalho do congolês.
A 24 também Linyekula apresentou ainda o seu solo Le Cargono Polidesportivo da Cova da Moura, numa co-produção entre o Teatro Maria Matos e a associação Moinho da Juventude, naquilo que o coreógrafo espera que seja o princípio de uma relação com a Cova da Moura que possa deixar uma semente do género Studios Kabako nessa periferia de Lisboa. Linyekula fala disso e de outras coisas nesta entrevista feita no Teatro Camões, depois do ensaio geral de Portrait Series: I Miguel Solo.
Esta não é a sua primeira vez em Lisboa.
Já venho há muitos anos. A primeira vez foi em 2003 mas não para apresentar nenhum trabalho, estive num encontro que juntava vários profissionais de dança da Europa e de África para ajudar a reflectir sobre o estabelecimento de um programa de formação em dança contemporânea para Moçambique. Desde aí que me mantenho em contacto com Lisboa. Comecei a mostrar o meu trabalho. Vim ao Alkantara Festival e depois ao Teatro Maria Matos e este ano estou aqui durante a maior parte do ano, como convidado para o Artista na Cidade.
Em que medida conhece a cidade?
Uma pessoa não pode reivindicar que conhece uma cidade passado uma semana. Porque a maior parte das vezes, quando se vem em tournée, fica-se uma semana e passa-se tanto tempo no teatro que aquilo que se conhece da cidade é o hotel, o caminho até ao teatro e uns quantos restaurantes. No máximo, conseguimos sentir uma vibração. E senti sempre até agora uma vibração positiva em relação à cidade. Quando me perguntam como me sinto em Lisboa, digo que há nela qualquer coisa que me faz lembrar de casa. No meio da cidade ainda conseguimos ver ruínas, ainda conseguimos ver edifícios que estão em muito mau estado e essa não é a primeira imagem que temos quando pensamos numa capital europeia. Logicamente, as coisas funcionam, porque existem as infraestruturas básicas, água corrente, electricidade, coisas que para a maioria das pessoas nos nossos países é um luxo. Mesmo assim, há esse lado gasto que me faz sentir confortável. Consigo relacionar-me com essa fragilidade, torna-a humana. A fragilidade faz parte da vida, torna-a humilde.
Quando o convidaram para ser artista residente na cidade durante um ano sentiu algum receio ou aceitou logo o convite?
A primeira reacção foi de excitação: “Fantástico!” E a seguir apercebemo-nos: é muito trabalho, muita responsabilidade, é um grande desafio! É a terceira vez que organizam este projecto do Artista na Cidade mas é a primeira vez que o artista é africano. Claro que quando falámos, eles não olharam para o meu trabalho, à partida, como sendo de um africano, mas de um artista que existe no circuito internacional como qualquer outro, no entanto, não posso deixar de pensar de onde venho. Sou muito sensível a questões coloniais, questões neo-coloniais, de repente qual é o significado para mim, vindo de uma antiga colónia, estar no meio da metrópole e ser o “artista da cidade”? Que tipo de responsabilidade advém daí em relação aos outros que são como eu, que partilham a mesma história? Aqui, quando caminho na rua, sou o outsider, só porque tenho este aspecto e não falo português perguntam-me: “De onde vens?”. E o outsider está no coração das maiores instituições culturais da cidade durante um ano: o que quer isso dizer? Dá-nos poder mas eu acredito que este tipo de poder só faz sentido se vier com noção de responsabilidade. Que posso fazer para que daqui a dez anos isto não tenha sido excepcional? Os pequenos passos que damos hoje abrem ou fecham portas para aqueles que vêm atrás. Tudo isso enforma a minha presença aqui. Claro que é uma grande honra, uma grande oportunidade, poder apresentar o meu trabalho durante um ano.
Quer procurar esse lado africano da cidade de Lisboa?
Existe uma parte importante de África aqui mas é preciso encontrá-la, porque não está no coração da cidade. Daí que seja tão importante para mim, logo no princípio deste ano, não só apresentar trabalho no Teatro Camões, mas ir e actuar num lugar como a Cova da Moura. Conheci pessoas de lá e houve empatia. Falei com eles e o Teatro Maria Matos apoiou a ideia. Não é por acaso que escolhi viver na RD Congo e desenvolver o meu trabalho a partir dali, nem sequer a partir de Kinshasa mas de uma cidade mais pequena, Kisangani. Porque é importante para mim assumir a responsabilidade de activar estes espaços periféricos. E apesar de desenvolver o meu trabalho no interior de grandes instituições, festivais, teatros, sei que só o faço porque venho de um lugar, porque sonhei quando lá vivia, quando lá crescia. Agora que dei estes passos, o que posso eu fazer? Estabeleci a relação com a Cova da Moura e a ideia é continuar a conversa que começa com esta performance – ainda não sei que forma vai ter ao longo do ano – de maneira a que, quando voltar por dois meses, entre Maio e Julho, vermos o que podemos fazer.
Eu acredito que a arte não é um luxo. Precisamos da arte, daí a minha insistência em trabalhar na minha terra, porque muitas vezes as pessoas dizem “num país onde há pessoas a morrer de fome para que serve a arte”, e é exactamente porque as pessoas estão a morrer à fome que precisam de um espaço onde podem imaginar-se diferentes, onde se podem projectar de outra maneira, para lá das histórias de guerra. É verdade que tudo entrou em colapso mas as pessoas ainda lá estão. E como podemos trabalhar em conjunto com essas pessoas, para activar espaços de sonho, mas sonhos alicerçados na realidade? Herdámos as ruínas dos nossos pais, o que podemos fazer com elas? E como nos reinventamos? Eu sei que a maioria das pessoas que vivem nestas periferias sente que o Teatro Camões, o CCB, a Culturgest não são para eles. E há razões para dizerem isso.
A Cova da Moura é um lugar onde pode pôr em prática essas mesmas ideias que estiveram na base do seu regresso a Kisangani para prosseguir aí o trabalho dos Studios Kabako?
Acredito realmente que sim. Claro que estando aqui apenas por um tempo determinado não me permite sonhar com estabelecer ali qualquer projecto, porque é preciso tempo para desenvolver um projecto. No entanto, passando algum tempo com as pessoas de lá, pode haver, entre elas, alguém suficientemente doido para dizer “eu quero fazer isto”. No domínio das artes, porque há quem esteja a fazer coisas noutras áreas. É um território com o qual posso relacionar-me com a minha própria realidade em Kisangani. Claro que é distinto, porque está a uma viagem de comboio do centro de Lisboa e não é preciso visto – por enquanto! Porém, na sua essência, não é assim tão diferente.
Desde que começou os Studios Kabako em Kinshasa o que mudou no projecto?
Em primeiro, há mais pessoas à minha volta, que acreditam neste sonho. No princípio, diziam-me “és maluco? Como é que podes deixar a Europa e vir para aqui?” É preciso ver que em 2001 o país ainda estava em guerra. É claro que, oficialmente, a guerra acabou em 2003 mas sabemos que a guerra continua. E agora, 15 anos depois, há mais pessoas a partilhar este sonho – essa é a maior mudança. Depois de algum tempo, acabas por tornar-te numa espécie de instituição; pela mesma razão em que há mais pessoas a acreditar nisto, os políticos não te ajudam mas começam a pensar: “Talvez haja qualquer coisa aqui”. Por vezes, é pesado.
“Quandos nos tornamos grandes corremos o risco de (…) transformar-nos em outro Mobutu”
Tem receio de que o projecto lhe possa sair das mãos se os políticos começarem a interessar-se por ele?
Eu gostava que assumissem o controlo e construíssem a partir daí. Mas, só sei é que se olhassem para ele, acabavam com ele. Esse é que é o problema. Portanto, é todo um jogo para os manter do nosso lado. Quando se escolhe trabalhar lá tem de se arranjar formas de lidar com os políticos e não lhes dar a lenha para nos queimarem. Mesmo se em termos de materiais, pelos padrões europeus, somos uma muito pequena instituição underground, pelos padrões de lá, somos a referência – e não só em Kisangani, somos a referência em todo o continente no que diz respeito a projectos, a apoios aos jovens artistas e a produções. E quando nos tornamos grandes corremos o risco de adormecer sobre os louros e, provavelmente, transformar-nos em outro Mobutu. Esse é o meu grande desafio: como me manter alerta e como me manter em contacto com o que se passa aqui.
Ainda consegue manter-se criativo apesar de todo o trabalho e de todos os esforços para construir e manter os Studios Kabako?
A verdade é que eu não acho que preciso de produzir aquilo a que se pode chamar objectos artísticos para ser um artista. Porque a arte é, antes de mais, uma forma de negociação com o teu contexto e tentar propor outras possibilidades. Podem ser possibilidades no palco, num filme, ou outra coisa do género, mas, por vezes, a forma como lidamos com as pessoas, como tentamos organizar um projecto, pode ser uma criação artística em si. Portanto, enquanto sentir essa impulsão para trabalhar na periferia não me preocupo com a produção de objectos artísticos. Não tendo produzido nenhum trabalho desde Outubro de 2014 com a companhia, até ao convite para fazer este solo com Miguel Ramalho da Companhia Nacional de Bailado em Lisboa, mesmo assim sinto que tenho estado muito ocupado e não como gestor mas como artista.
Tenho estado num processo criativo constante e espero apresentar a audiências maiores em Dezembro o maior dos projectos em que estou a trabalhar, e que não é um espectáculo mas um centro artístico de bairro na parte mais negligenciada de Kisangani. O rio Congo atravessa a cidade e na margem sul vivem umas 200 mil pessoas – não há água corrente, a electricidade quase não existe. Eu cresci aí. É a parte de Kissangani a que podemos chamar aldeia. Ao ir lá constantemente apresentar espectáculos ou produzir concertos, a certo ponto começámos a pensar “temos de encontrar uma forma de estar mais presente aqui, temos de trabalhar com jovens em Lubunga”, que é o nome desse distrito, e desenvolver coisas a partir daqui.
Decidimos então que a única forma de o fazer era tendo um espaço mas, depois, quando estávamos a desenvolver a ideia à volta deste espaço veio-nos à ideia que um dos grandes problemas de Lubunga é o acesso a água potável e aí pensámos: “Ok, o nosso centro de artes será, na verdade, uma pequena estação de tratamento de água, um lugar onde, não podendo fornecer água a toda a gente, pelo menos podemos fornecer água potável a dez mil pessoas por dia”. Aí, usando a metáfora da água como fonte, será também um lugar onde se pode ir ver um filme, uma performance, assistir a um concerto, mas, acima de tudo, um lugar onde os jovens podem aprender ferramentas para se expressarem. Revolta-me que, quando procuro fotografias e filmes sobre nós, 90 por cento não tenha sido feito por congoleses mas por estrangeiros. Não estou com isto a dizer que é mau que os estrangeiros olhem para nós mas se isso é feito com o vazio do nossa perspectiva, então é um problema. Daí que a ideia seja colocar câmaras nas mãos destes jovens para tentar reflectir com eles sobre o que nos rodeia, como é que construímos a nossa imagem, nos nossos próprios termos. Esta é a minha próxima criação e não é uma coisa que possa fazer tournées, porém, para mim, é um projecto artístico.
Coloca a água e a cultura no mesmo nível de necessidades humanas.
Exactamente. Há uma fundação na Holanda, chamada Prince Klaus Found, cujo slogan eu gosto muito: “A cultura é um bem de primeira necessidade.” Quando olhamos para as nossas sociedades tradicionais, por que é que todos os acontecimentos na vida são sempre marcados por canções e danças? Porque, de certo modo, precisamos desse espaço para nos conectar com aquilo que somos interiormente. Uma vida que não deixa traços é inútil e os únicos traços que temos são através da nossa cultura. As nossas canções, as nossas missas, as nossas danças, as nossas histórias, por isso, são um bem de primeira necessidade. As duas [a água e a cultura] não são incompatíveis.
Sendo um bem de primeira necessidade e estando tão presente na vida de muitos povos africanos por que razão é a cultura tão negligenciada em África?
Os nossos supostos líderes são preguiçosos, não conseguem ver para lá do presente, mesmo que o presente seja manter-se no cargo durante 30 anos. Devido a essa preguiça só conseguem pensar no seu tempo de vida. Isso é a primeira coisa. A segunda é que, talvez, seja uma manobra deliberada para manter as pessoas desligadas em relação àquilo que são e impedi-las de fazer perguntas. Quando se mantêm as pessoas suficientemente esfomeadas, estas deixam de ter espaço para pensar e reflectir sobre si próprias e de questionar-se sobre onde estão. Se calhar é a única forma de se manterem no poder para sempre. A cultura é a centelha que leva as pessoas a pensar. Não é coincidência que no Burkina Faso ou no Senegal, à frente destes movimentos que levaram à queda de [Blaise] Compaoré e à derrota de [Abdoulaye] Wade estavam artistas. Estas pessoas fazem-nos pensar e reflectir sobre o que se passa. Portanto, a cultura é tão negligenciada por preguiça e porque conseguem ver que é perigosa. É perigosa para a sua sobrevivência a curto prazo. Porque se pensassem para lá do seu próprio tempo, podiam aperceber-se de uma coisa maior.
Decidiu trabalhar em África quando a maior parte das pessoas estão ansiosas para sair, acredita que hoje seria uma pessoa completamente diferente se não tivesse feito esse caminho de volta?
Definitivamente. A princípio, regressar a casa foi uma necessidade pessoal. Posso dizer que, para lá das questões de forma, dança, teatro, considero-me um contador de histórias. O tipo de histórias que realmente me importavam não eram histórias de exílio, mesmo que a nível emocional e intelectual seja sensível a questões de exílio, não era o que me fazia avançar criativamente. Por isso, decidi voltar para casa e ao chegar coloquei a questão: “O que posso fazer para conseguir ficar?” Todo o projecto dos Studios Kabako e tudo o que estamos a fazer nasceu dessa necessidade pessoal. A partir da necessidade pessoal descobri como é importante pensar para lá do nosso pequeno ego. Não quer dizer fazer desaparecer o indivíduo, por que isso seria perpetuar o próprio sistema. Desde os tempos coloniais e depois das independências oficiais dos nossos países nunca houve espaço para o indivíduo. Voltar para casa era também uma forma de colocar a questão: haverá espaço para o individual – não no sentido de cair no eu, eu, eu, no espaço egotista – mas porque acredito que a única forma de construir uma sociedade democrática é tendo indivíduos responsáveis que percebem o que se está a passar e estão prontos para trabalhar. Porque nada nos é dado, não é um presente do sr. presidente, do FMI ou de Barack Obama, somos nós que temos de fazer acontecer. Acho que se tivesse ficado na Europa, seria apenas mais um na corrida de ratos, tentando sobreviver, talvez ganhasse mais dinheiro, mas é realmente muito mais satisfatório saber que os pequenos passos podem realmente ter impacto, mesmo que ajudem apenas o sonho de uma pessoa. Isso ajuda-me a crescer.
A partir desse estado de espírito que esteve por trás da ideia inicial do projecto, o que são hoje os Studios Kabako? Já têm um lugar? Quantas pessoas participam no projecto? Com quantos artistas trabalham todos os anos?
Os Studios Kabako estão hoje baseados em Kisangani, onde temos um espaço físico que alugamos na velha cidade colonial, mas estamos também no processo de comprar uma propriedade onde teremos uma casa nossa e acabamos de comprar um segundo terreno na margem sul do rio para o projecto do centro da água. E para isso temos, de forma permanente, três pessoas a trabalhar na administração, dois técnicos, que são empregados dos Studios Kabako, além de dois seguranças e uma senhora da limpeza, que também recebem salários mensais. Além disso, temos um grupo de artistas que são pagos por projecto – quantos mais projectos temos, mais os artistas recebem. E hoje, entre músicos, jovens realizadores, bailarinos e actores, que trabalham comigo ou cujo trabalho produzimos, temos mais de vinte artistas na cidade. Por um lado, é pouco, porque estamos a falar de uma cidade de quase um milhão de habitantes, se não mais; mas tendo em conta de onde vimos, demorou menos de dez anos a desenvolver e todas essas pessoas podem ganhar a vida da sua arte, o que é o princípio de alguma coisa. Podemos dizer que o mais importante não é a arte em si, o mais importante é que as pessoas podem acreditar em alguma coisa naquele contexto. Para quem passa o tempo esfomeado, é difícil acreditar seja no que for e estas pessoas podem hoje, pelo menos, ter uma refeição decente ou ir ao hospital quando estão doentes e isso dá-lhes esperança de que se continuarem a trabalhar podem construir qualquer coisa para eles a partir dali, sem ter necessidade de partir, sem ter de mudar para Kinshasa ou ir para a Europa.
Também há artistas estrangeiros nos Studios Kabako?
Sim, principalmente de África. Já recebemos artistas de Moçambique, da África do Sul, do Senegal, do Burkina Faso, da Tunísia. Algumas vezes da Europa, mas são sobretudo artistas africanos. Tem a ver com identificar aliados, não sobrevivemos se estivermos sozinhos. Cada vez mais há pessoas no continente a desenvolver trabalho para ficar e ajudar, para dar razões a outros para que fiquem. Por isso existe uma espécie de rede informal de pessoas no continente. Falamos, juntamo-nos, não porque haja dinheiro envolvido mas porque partilhamos valores e queremos arranjar forma de pôr coisas a acontecer. E, por vezes, candidatamo-nos a fundos na Europa para conseguir levar um artista de uma região para outra. É necessário e isso também faz parte da estratégia para não nos transformarmos noutro Mobutu. Se formos a única pessoa a fazer este tipo de trabalho, tornamo-nos a referência, mas se os jovens artistas e os espectadores souberem que o Faustin está a fazer isto, mas Hafiz Dhaou está a fazer aquilo e Panaibra [Gabriel Canda] de Maputo está fazer aquilo e todos vêm aqui, percebem que é uma multiplicidade de visões e não um sistema de partido único.
Já teve oportunidade de trabalhar em Angola? Conhece o trabalho que se está a fazer?
Fui a Angola uma única vez em 1998, para uma competição de dança organizada pelo Ministério da Cooperação francês. Na altura, estava a viver no Quénia. Nunca mais lá voltei. Além do que leio nas notícias, sei que o kuduro é algo gigantesco, está em todos os lados, em todos as discotecas de Kisangani. O que se ouve é que Luanda é cara, que há muito dinheiro mas a flutuar acima das cabeças da maioria. Nos países lusófonos, só trabalhei em Maputo.
Fala em vir à Europa para arranjar fundos, conseguir apoios. Só viaja para a Europa por causa do dinheiro ou também precisa da experiência?
Também preciso, intelectualmente, emocionalmente. Estamos a falar em inglês, mesmo tendo em conta o facto de a língua com que falo com a minha mãe não seja o francês, o francês tornou-se a minha primeira língua. Quer isto dizer que, de alguma forma – embora na Europa, provavelmente, muitos não o aceitem -, em termos de herança, sou tão europeu como qualquer europeu aqui. Um intelectual britânico de origem jamaicana, Stuart Hall, disse uma coisa muito poderosa: quando chegou à Inglaterra, em 1951, perguntaram-lhe “porque estás aqui?” e ele respondeu “estou aqui para completar a viagem colonial. Começaram-na no século XV e no século XX estou a completar a última etapa. Mudaram-me a vida e eu vim aqui para vos olhar nos olhos.” A Europa é casa também. Preciso de ser confrontado com isso. Embora queira usar a minha energia e a minha luta para tentar pôr as coisas a andar na minha terra e não aqui na Europa.
É bailarino, coreógrafo, produtor, mas sempre insiste em apresentar-se como contador de histórias. Tudo o resto é secundário?
Talvez não tenha tanta imaginação e apenas utilize aquilo que a vida me dá e tente encontrar uma forma de o traduzir. Há momentos em que consigo traduzi-lo através de uma dança, outras através de uma canção ou através de um texto mas, em última análise, é sobre encontrar formas que melhor traduzam o que me é dado pela vida. No fundo, é contar histórias não em forma de reportagem mas de maneira a transcendê-las e, talvez, inventar alguma poesia e a dança pode ser uma forma de poesia. Não sei se é secundário porque, no fundo, está tudo interligado. E como a minha principal ferramenta é o palco, trata-se de encontrar formas de activar o corpo. Por vezes, activar o meu corpo, toma a forma de dança, noutras toma a forma de uma canção, noutras de um discurso. Sou um contador de histórias, sou um bailarino, faço mundos dançar, faço os movimentos dançar.
Contar histórias está no centro da cultura em África, a tradição coloca o contador de histórias no centro da transmissão da herança cultural.
E também é um bem de primeira necessidade, contar histórias, partilhar histórias, é o que faz de Hollywood a grande máquina que é. Mas vir de uma tradição onde a palavra escrita chegou muito tarde e ainda é um instrumento para excluir uma maioria de nós, contar histórias torna-se também um espaço que, potencialmente, se for bem utilizado, pode criar possibilidades para a democracia, porque o conhecimento circula, as ideias circulam e as pessoas podem assumir posições com conhecimento. Ou seja, é uma necessidade mas também um instrumento importante, tendo em conta as nossas condições actuais.
É igualmente um instrumento para contar a história do seu país.
Sim. Para contar as histórias do país e para imaginar possibilidades para o país. Imaginar possibilidades na actualidade, para que aqueles que vivem hoje possam perceber que “ok, estou nestas condições mas a visão daquele artista ajudou-me a entender que pode ser diferente, portanto, agora que percebi, o que posso fazer?” Definitivamente, é um instrumento para contar histórias mas também pode ser um instrumento para desencadear uma revolução. Não se trata da revolução movimento de massas, não acredito nisso, eu acredito na revolução de um indivíduo de cada vez a entender alguma coisa e a tentar, com o que tem à sua disposição, fazer alguma coisa.
É como dizer que temos uma história e essa história trouxe-nos até aqui mas que o futuro não tem que ser como o passado.
Exactamente. Não quero que os meus filhos, quando tiverem a minha idade, tenham as mesmas coisas que eu tenho hoje. Portanto, que tenho eu de fazer para tornar possível que para eles seja diferente? Essa é a questão.
Costuma dizer que é obcecado com a história mas parece que a sua grande obsessão é a figura de Mobutu.
É verdade. Se calhar como exemplo do que não devemos reproduzir. Este homem ocupou tanto do nosso espaço mental que, mais de 18 anos depois da sua morte, continua a ser principal referência do regime actual. Podem não o admitir mas a forma como actuam é a de quem tem Mobutu como referência. Eu cresci a olhar Mobutu como o pai, e quando crescemos e nos apercebemos de que o pai nos traiu é difícil conseguir arrancá-lo do nosso sistema. E, na verdade, é importante não esquecer, é importante lembrá-lo para não criar novos Mobutus. E para que eu próprio não me torne num novo Mobutu.
Tem de pensar no Mobutu todos os dias para poder matar Mobutu todos os dias?
Não tinha pensado nesses termos mas dizem que é preciso matar o pai para crescer. Mas, sim. Foi muito perturbador para mim acordar em 1997 e ouvir na rádio que este país já não era o Zaire. Nasci no Zaire, tinha 23 anos quando aconteceu. Quem criou essa grande mentira que todos adoptamos? Foi uma sensação de perda sem ter nada para ajudar a lidar com a situação. Ok, o primeiro responsável foi Mobutu. É claro que também há um certo fascínio: como é que ele conseguiu, durante mais de 30 anos, manter-nos a todos naquele estado? Mas, hoje, tendo passado por essa fase, tendo explorado a história, penso que precisava de voltar atrás para encontrar uma forma de continuar a minha viagem. Nunca se tratou de voltar atrás na história para celebrar fosse o que fosse mas para perceber quem era, onde estava e como poderia avançar a partir daí. Por isso é que em 2009 fizemos uma obra chamada More, More, More Future. Isto é o que temos, penso que começo a perceber, mas como é que eu avanço: com “mais, mais, mais futuro”.
Publicado originalmente no Rede Angola em 18/1/2016