Condição humana - o fotógrafo José Cabral

“A fotografia em Moçambique foi uma grande aventura colectiva durante cerca de duas décadas. Ficaram a marcá-la alguns livros, que em geral prolongam exposições e gestos de cooperação internacional (“Moçambique, A Terra e os Homens”, 1983; “Karingana ua Karingana”, 1990; “Maputo - Desenrascar a vida”, 1997; “Iluminando Vidas”, 2002). Quando a fotografia feita por africanos foi descoberta na Europa, há poucos anos, Moçambique estava na primeira linha (“Africa, Africa”, Copenhaga, 1993; Revue Noire, nº 15, Paris, 1994).

Vila Algarve, Maputo, 1990  [antiga sede da PIDE/DGS em Lourenço Marques]Vila Algarve, Maputo, 1990  [antiga sede da PIDE/DGS em Lourenço Marques]

Com a normalização lenta da vida do país (depois da revolução e da guerra civil, depois das eleições de 1994, ou das de 99…), esse capítulo de mobilização e propaganda a que a fotografia tinha sido chamada encaminhou-se para o seu fim natural e os itinerários passaram a ter de ser individuais. Tinha havido alguns casos de excepção, como José Henriques e Silva e os “Pescadores Macua” (Lisboa, 1983 e 1998), Moira Forjaz e “Muitipi, Ilha de Moçambique” (Lisboa, 1983).

A referida aventura teve pioneiros, Ricardo Rangel e Kok Nam, que entraram muito cedo numa imprensa colonial mais liberal que a de Lisboa e construíram os modelos da transição. Mais do que uma tradição portuguesa (o Século Ilustrado?), terá contado o exemplo empolgante dos fotógrafos do magazine Drum, da África do Sul. A aventura teve depois uma sede e uma escola, a Associação Moçambicana de Fotografia e o Centro de Formação Fotográfica, no qual se fizeram dezenas de fotógrafos mais ou menos perseverantes. Teve um estilo testemunhal e militante, para responder às urgências do socialismo, da guerra, das fomes e da reconstrução. Os tempos mudaram.
Maputo, 1990, auto-retrato com três filhosMaputo, 1990, auto-retrato com três filhos

José Cabral chegou por uma via original a essa história colectiva, praticando com um pai amador de fotografia e cinema – e, por sinal, também teve um homónimo avô paterno que foi governador (1910-1938) e um parque com o seu nome na velha capital (hoje Parque dos Continuadores). Começou pela fotografia de cinema e aliou a prática de foto-repórter a programas documentais menos determinados pela urgência. A seguir, terá sido o primeiro a distanciar-se da dinâmica jornalística, e tornou muito claro esse desafio com a escolha das obras para a exposição “Iluminando Vidas”: em vez de guerra, miséria, vítimas, ruínas e promessas de reconstrução, que podem ser ainda uma outra face do exotismo, mostrou nus femininos que não tinham qualquer pretexto etnográfico. A representação acabou por ter problemas em Bamako, no Mali, sede fotográfica do continente e país de rigores islâmicos.

A sua fotografia – em especial a forma de a mostrar como trabalho de artista - tornou-se mais autobiográfica e até intimista, sempre sem pretender ser auto-referencial e narcísica. Essa é a outra luta que importava travar nas novas condições de crescimento do país, uma batalha já mais individualista para abrir espaços conviviais. “As Linhas da Minha Mão”, em 2006, por ocasião do 3º Photofesta, afirmava a dimensão pessoal de uma galeria de retratos e de lugares – encontros com pessoas, paisagens, cidades e árvores ao longo da história recente de Moçambique.

Maputo, 2002 [monumento a Mouzinho de Albuquerque]Maputo, 2002 [monumento a Mouzinho de Albuquerque]

Os seus “Anjos Urbanos” são as crianças: os três e depois quatro filhos do fotógrafo e os filhos dos outros, as crianças da rua. Há diferenças de cor e de condição social que se não escondem, pelo contrário, e que tornam mais incisivo ou mais pungente o testemunho sobre as insuportáveis desigualdades. As imagens de José Cabral são simples e belas, ternas e terríveis, mas sempre sem os cálculos de acaso, artifício ou projecto que são tantas vezes a fórmula fácil da arte fotográfica. São ao mesmo tempo directas e carregadas de emoção, sem se distanciarem da vida à procura de metáforas.

Há uma história pessoal e há muitas histórias colectivas nestas imagens de Moçambique. Uma delas associa o general Mouzinho de Albuquerque, o vencedor de Gungunhana em 1895, ao bisneto do coronel José Cabral, que tinha continuado os seus planos de vias férreas e lhe ergueu a estátua, entretanto apeada. É só uma fotografia de família, uma criança que brinca…”.

 

Texto publicado no catálogo da exposição “Urban Angels /Anjos Urbanos”, de José Cabral, Galeria P4 Photography, Lisboa, Maio de 2009.

 

 


por Alexandre Pomar
Cara a cara | 28 Maio 2010 | Fotografia, José Cabral, moçambique