“Deviam-lhe fazer um monumento em Angola”, conversa com Bonga Kwenda sobre Mário Pinto de Andrade.

Gravada em Lisboa, no dia 12 de julho de 2023.

 

Barceló de Carvalho, mais conhecido como Bonga ou Bonga Kwenda, é um músico angolano conhecido no mundo inteiro. Em 1966 fixou-se em Portugal para se dedicar ao atletismo, mas poucos anos depois fugiu do país para escapar ao controlo da polícia política. O seu primeiro disco, Angola 72, saído na Holanda e cantado inteiramente em kimbundu, serviu para dar impulso à luta anticolonial e é ainda hoje um marco da música angolana. Nesta conversa, Bonga fala da sua trajectória e da sua amizade com Mário Pinto de Andrade. 

BK: Então vamos aí. Se já está a gravar, melhor ainda. Para eu não ter que repetir o que já disse.

ES: Não estava gravando, mas não tem problema, não precisa repetir. Perguntei em que ano você foi para Paris e se foi ali que conheceu Mário Pinto de Andrade.

BK: Então, foi depois da Holanda. Que na Holanda eu faço o primeiro disco, que foi chamado Angola 72, e logo a seguir eu vou fugindo, porque foi um disco essencialmente político, e então… Como não havia também CEE, e a polícia política de Portugal com as outras polícias políticas dos outros países estavam juntas para tentarem agarrar quem estava contra o sistema fascista e colonialista daquela época. E, entretanto, eu fiquei ainda um bocadinho em Luxemburgo, fiquei um bocadinho na Bélgica, fiquei na Holanda claro, né, e depois fui para Alemanha, fiquei em Dusseldorf um bocadinho, antes de ir para Paris. Ir para Paris assim de repente sem que as coisas estivessem resolvidas do ponto de vista das fugas, das vendas do disco, da propagação do disco e tudo mais não podia. Porque estava a ser conhecido, né? E a partir daí tive que tomar alguns cuidados para não ser apanhado. Então acho que só em 74 que eu vou a Paris. Foi logo a seguir, em 72 eu fico por aí, pela Holanda e em 73, 74, eu vou a Paris.

ES: E foi nessa época que você conheceu Mário de Andrade?

BK: E foi nessa época que Mário de Andrade estava na França, estava em Paris, fazia parte duma… Eu não diria elite, porque elite é um termo assim muito chato, não tem nada a ver… Fazia parte dos africanos residentes na Europa, e em Paris propriamente dito, onde eles faziam os seus trabalhos virados para a África, com uma desenvoltura filosófica, psicológica, eh pá, científica, sobre a África, cada um no seu ramo: havia músicos, havia escritores e muita outra gente. O Mário de Andrade notabilizou-se porque foi o indivíduo que conseguiu agregar a família africana no exterior, fosse ela angolana ou não, para ele o importante era ser africana. E a partir daí teve contatos muito, muito fortes com o Diop, com Aimé Césaire… Quer dizer, todos os negros, os sábios, na verdade, encontravam-se naquela altura, era muitíssimo importante. E o Mário de Andrade como nosso irmão, nosso mais velho de Angola, nosso conselheiro, nossa família, a gente encontrava-se com ele muitas vezes. Porque era com ele que a gente conseguia saber da sociopolítica africana, de Angola e de todas as engrenagens, porque ele tinha sido presidente do MPLA, mas depois saiu, foi embora. Aquilo não era para ele. Aliás, o temperamento do Mário de Andrade já se denotava não só muito inteligente, muito sóbrio, de uma inteligência rara na verdade, e principalmente um homem fora do seu tempo, que já tinha vivido muito, a cabeça dele já estava longe demais, enquanto outros ainda estavam a dar os primeiros passos. Ele já tinha evoluído bastante e já tinha estratégias para a África e era formidável… Quer dizer, ele dizia-nos coisas que a gente dizia: como é que isso é possível, pôr isso em prática com estes homens que ainda não evoluíram? Mas este Mário de Andrade já evoluiu bastante, já está a dar soluções… Incrível!

ES: Lembro que a primeira vez que falámos por telefone, você disse que ele era o seu mentor.

BK: Ah, sim, claro! Ele tinha essa faculdade de… Primeiro, psicologicamente, ele sacava. Ele tinha uma visão das coisas e das pessoas e das vivências e tudo mais que ele próprio já tinha vivido, né? E, por conseguinte, ele era o conselheiro, e sendo conselheiro ele dava-nos dicas: vocês não se precipitem, porque se forem por esse caminho não vai resultar, melhor ir por aqui. Mas por aqui, tem que saber, tem que ter uma atividade que te dignifique, e nunca esquecer o teu país de origem, qualquer que fosse o trabalho que você tivesse. Como ele sabia como é que eram os políticos africanos da época, ele também sabia dar uma opinião em relação a um futuro próximo, na verdade que se aproximava ali, e como nos tínhamos que conduzir para não cometer os erros que outros já tinham cometido atrás. Ele era incrível, faz favor, com uma cabeça incrível. E depois tudo na simplicidade. Não ralhava ninguém…

ES: Não era autoritário.

BK: Não, que é isso! Não! Tudo na singeleza! Tinha uma maneira de ser muitíssimo agradável. Aliás, as mensagens dele tinham muito peso na balança, derivado da maneira como ele expunha as suas ideias. Qualquer pessoa tinha que escutar, ouvir e tirar daí qualquer coisa para a sua vida pessoal. Isso era fabuloso.

ES: Outras pessoas já me falaram dele como de um “homem de diálogo”.

BK: Ah sim, absolutamente. Ele queria debater, dialogar e saber dos outros, o que é que pensavam, para poder conjugar com o que tinha também na mente dele. Não era uma pessoa assim… Ele era sobretudo aberto, aberto para os diálogos, falámos muitas vezes de música…

ES: Essa era outra coisa que queria lhe perguntar…

BK: Ah sim, inclusive eu fui cantar para a Guiné-Bissau onde ele era ministro e quando cheguei lá eu fui homenageado e ele também foi homenageado. E antes do espetáculo ele disse-me como é que eu me devia conduzir no espetáculo, num estádio de futebol, cheio, abarrotado de pessoas que vinham ver o Bonga. Ele disse como é a melhor maneira de poder entrosar com este grande povo que ia me ver no estádio. Aí eu disse: eh pá, aí eu já ganhei! Quando você tem uma pessoa desta envergadura que te vem dizer o tipo de comportamento, de atitude para melhor agradar, para melhor poder estar com este povo, isso é fantástico. Foi já meio espetáculo ganho.

ES: Isso foi depois da independência?

BK: Ah sim, depois da independência.

ES: E era a sua primeira vez na Guiné-Bissau?

BK: Era a minha primeira vez, e voltei por causa dele à Guiné-Bissau. E mesmo depois, quando ele já não estava lá, eu voltei para a Guiné-Bissau. E tudo quanto o que eu vi, assisti, participei lá foi ótimo. Mas ele era uma pessoa muito diferente dos outros… Quer dizer, cada um tem o seu específico, né? Mas ele tinha sempre a preocupação de falar e deixar qualquer coisa de útil, de necessário para a pessoa em questão.

ES: E a relação de Mário de Andrade com a música? Encontrei no arquivo dele documentos que dizem respeito a várias atividades culturais, tem muito teatro, claramente literatura, mas de música achei muito pouco…

BK: Ele gostava da música angolana, e muito. Claro, ele gostava da música do Bonga também. E depois ele conseguia falar para os artistas e ir buscar textos para nós musicarmos, nós os artistas, na verdade. Então isso era uma faceta muito boa que ele tinha como participação. Porque ele mesmo dizia que a música tinha um impacto muito importante e, em certos casos, até mais importante que a política, porque chegava diretamente às pessoas. As pessoas podiam ser analfabetas ou intelectuais, não sei, mas ouviam sempre a música, e a música tinha um impacto tanto nos que eram iletrados como naqueles que eram doutores e engenheiros e não sei que, quer dizer o povo em geral. A música entrava diretamente. E então ele, como tinha um conhecimento de coisas etnográficas e filosóficas e não sei quanto, ele passava para nós alguns versos e algumas coisas que, enfim, era para nós musicarmos aquilo tudo. 

ES: Então, o poema dele que está no seu disco, o Muimbo ua Sabalu.

BK: Eh pá, esse aí…

ES: Foi ele que propus usar esse texto? Como é que é a história dessa música?

BK: Não, eu achei por obrigação de cantar essa música dele. Ainda que não tivesse o contacto com ele. Mas eu tive a obrigação de cantar a música do “Mon’etu ua kassule”. Ya, com certeza. Ele ficou todo…

ES: Ele gostou?

BK: Ah, eh! Como não podia deixar de ser.

ES: Também havia a questão de cantar em kimbundu. Ele aprovava essa opção?

BK: Aprovava inteiramente! Aliás, numa conversa que nós tivemos, eu cheguei a lhe dizer que era complicado, que uma geração nova não estava a aderir para o kimbundu, não estava a cantar em kimbundu, nem tchokwe, nem nganguela, nem umbundo, nem kikongo. Isso era complicado e ele disse que infelizmente nós temos dirigentes que não estavam virados para aí. Estavam a aceitar a assimilação portuguesa, o que é muito complicado para dar continuidade à verdadeira cultura profunda de Angola. E mais, ele dava todo apoio quando a gente cantava só em kimbundu… Ele mesmo escrevia e gostava de ouvir a língua materna. 

ES: Queria mostrar para você o bilhete que eu encontrei no arquivo, que foi a razão que me levou aqui. É um bilhete muito simples, não diz muito e por isso é misterioso. 

BK: [ri] Vamos ver. Cinco do 1 de 73.

ES: “Preciso urgentemente de o contatar”.

BK: Está claro.

ES: Na outra página só diz “Mário de Andrade”. Você por acaso lembra de quando escreveu este bilhete? Tem alguma ideia do que podia se tratar? 

BK: Eu tive até uma outra carta [do Mário Pinto de Andrade]. A gente trocava… Eu tinha bilhetinhos, assim daqueles bilhetes que se escrevem rapidamente, que se entregam a alguém para me vir entregar. E eu tinha isso… onde está? Não sei. Deve estar por aí, no conjunto de coisas… Eram os encontros que a gente tinha, claro, como é natural, aqueles encontros… Daquela vez não havia telemóvel [ri].

ES: Então isso terá sido em Paris?

BK: Sim, aí é em Paris.

ES: Ok. E você nessa época pertencia a alguma organização política? Ou era simpatizante?

BK: Nunca. Nunca. Nunca. De muito cedo comecei a dar-me conta que os partidos estavam muito manietados com outras organizações, principalmente estrangeiras, o marxismo-leninismo, o capitalismo, etc. Nunca me interessou. Também porque condicionava um bocado o artista, condicionava o homem, condicionava as pessoas. Não, isso aí não é importante. Saímos do jugo colonial e eu tornei-me uma pessoa livre, independente, e não tenho que dar satisfações a ninguém da minha alma. Sobretudo porque era uma obra clandestina. Ninguém podia saber antes do disco vir para o mercado e, por conseguinte, você alinhar para um partido, o partido é que vai ditar o que você vai cantar. Comigo não funcionou. Muita gente pensava “é do MPLA”. Eu não. “Ah, é da UNITA”. Eu não é, também não. 

ES: E para o Mário não era um problema você não estar afiliado ao MPLA.

BK: Não, não, não. Pelo contrário. O Mário era liberal. Depois ele não era… Mesmo em matéria do MPLA, Mário que tinha lá estado no MPLA, ele não falava do MPLA. O irmão dele estava lá, o Joaquim Pinto de Andrade, que era padre e depois abandonou as batinas e casou. Mas não, não, ele não era um ferrenho do MPLA, não. Dedicou-se a outras coisas muito mais úteis, como foram os livros que ele escreveu, as biografias que ele escreveu, as palestras que ele deu por esse mundo fora. Hoje chegamos a esta conclusão. Mário de Andrade é um senhor, grande senhor com uma cabeça incrível, homem muito livre com uma personalidade que nós gostaríamos muito que os nossos velhos tivessem esta personalidade de aproximação, de concórdia, de amizade, de fraternidade. Ele dava lições e dava lições de comunicabilidade. Ele era o professor, faz favor, ah sim senhora. E eu encontrei-me muitas vezes com ele e tudo o que me lembro das nossas conversas, era tudo no sentido da valorização do homem africano. Não era só o homem da Angola, não.

ES: Tinha uma dimensão internacional.

BK: Sim, absolutamente. Pelos amigos que ele tinha, por tudo o que é lugar no mundo, e pelas conferências que ele mesmo dava. E depois ele nunca se enervava. Nunca vi ele nervoso, bater a mão na mesa. Não! Ele era uma calmaria, era um exemplo de uma suavidade, calma para expor e aquilo entrava melhor. As pessoas ficavam assim… Eu vi pessoas admiradas, alguns com lágrima no canto do olho, ao verem falar esse homem. Mas infelizmente o perseguiram. Perseguiram, quase que o maltrataram. Problemas graves que ele teve, problemas financeiros que ele teve…

 

ES: Você chegou a conhecer a Sarah Maldoror?

BK: Sarah Maldoror, grande mulher. Morreu, morreu já. Conheço as filhas que estão em Luanda, acho eu. A gente tinha contacto anteriormente. A Sarah Maldoror, cineasta, depois fez aquele filme com a participação do Mário de Andrade. Sambizanga. Mário de Andrade escreveu o roteiro, faz favor. E ele também conduzia. Ele não fazia cinema, mas ele participou intensamente na condução do filme Sambizanga com a mulher dele. 

ES: Sim, é muito interessante ver como ele estava metido em tudo o que era a cultura. Isso chegou a ser criticado, foi chamado de intelectual oportunista.

BK: Sabemos que Mário de Andrade não precisava de ninguém para lhe elogiar, porque ele sozinho era aquela solenidade. E dava cartas em todos e todos eles sabiam, todos sabíamos, mas só uns é que valorizavam. Mário de Andrade era uma pessoa muito sensível. Você contava-lhe uma cena qualquer e ele sempre ficava muito condoído… Só aí já o mataram. Só aí destruíram o homem por saber que finalmente uma luta que devia ser levada não com armas, mas com o diálogo, com palestras e ensinamentos, e não foi o que aconteceu por causa dos interesses. Mário de Andrade não! Ele não tinha dinheiro, mas não se chateava por isso. Ele tinha que ganhar, honestamente. Se lhe ofereciam, ele dizia: não, não quero. Isso é uma pessoa, um indivíduo, um gentleman. Era ele. Nós temos muito gosto por termos tido esse personagem e qualquer que seja a oportunidade, a gente põe sempre e ele cá em cima… E deviam-lhe fazer um monumento em Angola. 

ES: As filhas de Mário de Andrade me contaram que agora estão abrindo um pouco o espaço, esse espaço de memória, e houve recentemente uma exposição em Luanda sobre o filme Sambizanga 

BK: Estou informado. Mas fazer-se mais do que isso, não. 

ES: Depois da independência você chegou a morar em Angola?

BK: Não, cheguei a ir a Angola, fazer espetáculos e sair. Aconselhado por Mário de Andrade também. Eu volto de vez em quando. Tenho lá casa, eu tenho casa lá e tem um terreno também, e isso já vai ficar para os meus filhos, etc. Mas o que é certo é que eu gostaria imenso… A mesma nostalgia que tinha o Mário Pinto de Andrade, nós todos, independentes, temos a mesma nostalgia do nosso país de origem. O que é muito triste, porque essa independência, afinal, serviu para quê? Se os nossos tiveram problemas graves, muitos abandonaram Angola, outros está a abandonar agora, estão a se afastar. Para que serve Angola? O povo angolano está cansado, mas também com receio. Mas hoje em dia a juventude está a dar a volta àquilo. As pessoas saem à rua, manifestam-se e tudo isso.

ES: Então você acha que há esperança de mudanças?

BK: Com certeza absoluta. E vai ser mais cedo do que previsto. 

 

ES: Eu queria lhe perguntar se tinha correspondência com o Mário Pinto de Andrade, mas você já disse que talvez sim, mas que não sabe onde tem.

BK: Não sei onde está, porque correspondência a gente tinha, com certeza absoluta. A gente escrevia-se. Ele gostava de deixar uns bilhetinhos assim, uns recados que ele dava, a gente recebia e depois falava. E também não incomodávamos muito. Porque eu telefonei algumas vezes para a casa dele com a Sarah Maldoror, que era a mulher. Telefonei algumas vezes, mas também não queria incomodar muito. A gente fica mais velho, a gente respeita. E ele quando encontrasse alguém que ia estar comigo, ele mandava um bilhetinho: Olha, entrega isso para o Bonga. Porque ele ouvia uma música nova, ouvia qualquer coisa, ouvia de uma viagem que eu ia fazer e não sei quanto e tal…

ES: E como é que você chegou a música? Como foi essa mudança do atletismo para a música?

BK: Muito simplesmente, quer dizer… para já, em Angola, quando era adolescente, jovem, nós fazíamos todos esporte não federado, quer dizer, esporte do bairro, era bairro contra bairro, não sei o quê. E as minhas condições foram vistas por um treinador. “Você tem qualidades e as suas qualidades podem ir muito longe”. Mas a gente, naquela altura, a gente fazia de tudo um bocadinho. A juventude, eh pá, sabe como é que é, é música, ritmos, eu gostava. Organizávamos grupos folclóricos para a música da nossa terra. Quer dizer, havia já uma atividade sociopolítica… Sem querer, a gente fazia aquilo naturalmente, porque sentíamos que era uma obrigação. Nós não tínhamos que cantar a música portuguesa e menos ainda a música de outros países. Não era a nossa. E a nossa qual era? Era mesmo o batuque que os portugueses e os assimilados depreciavam. Não gostavam, batuque é coisa dos pretos, não sei que… E nós dissemos: é esse batuque mesmo que a gente vai fazer. E daí tornei-me um grande tocador de instrumentos, na verdade, com o grupo Kissueia.

ES: Que instrumentos tocava?

BK: Vários, vários instrumentos. E, entretanto, depois acontece que fui chamado para fazer desporto, porque viram as minhas qualidades no desporto. E o meu pai disse imediatamente: “Não perca a ocasião, vai embora, porque aqui você só vai ser funcionário público e acabou. Como são os outros todos. Fez a escola, fez o liceu e depois não tem mais nada”. E essa foi a grande oportunidade, ou o grande pontapé de saída. Eu, entretanto, levei as qualidades de músico, mas nunca intérprete, porque tinha medo da minha voz rouca. Não acreditei e vim para Portugal. Em Portugal fiz o atletismo. Mas não fazia política declarada, fazia política clandestina com os amigos que deixei em Angola, que me traziam os bilhetes e tal, que eu depois ia despachar lá fora. Quem sabe se um desses bilhetes não era para o Mário Pinto de Andrade… Bom, o que é certo é que fiz o atletismo. Foi muitíssimo bom porque bati o recorde de Portugal de 400 metros. Entretanto, dignifiquei Angola neste sentido, no desporto. Mas houve uma altura que eu tive que fugir de Portugal, porque eles descobriram que afinal eu levava os bilhetes da política para despachar quando saísse em digressão com o desporto. Aí fugi de Portugal e fui para a Holanda. E é na Holanda que acontece a música, a tocar com os amigos caboverdianos e não sei quê, cada um cantava uma coisa. Também ousei cantar uma coisa e aí estava o empresário, o meu amigo Djunga de Biluca, que já morreu, e que me disse “Com essa voz aí, a gente pode fazer qualquer coisa”. Olha, fomos aí fazer qualquer coisa. E olha, chamámos dois amigos Mário, Rui, Humberto. O Mário caboverdiano, Rui angolano. Fomos para a gravadora. Eu, como trazia já cá dentro as músicas que eu tinha composto, compunha já música naquele tempo do folclore em Angola, peguei nas músicas e fiz o Angola 72. Começou assim. Saí do atletismo e entrei para a música.

ES: E já não voltou ao atletismo?

BK: Não, não.

ES: E as letras das outras músicas do Angola 72 são suas? São músicas tradicionais? 

BK: Minhas. Porque nós tivemos uma atividade muito importante que foi aquela de sabermos exatamente quem nós éramos. Portugueses nós não éramos e não somos. Então somos o quê? E tivemos, eu como jovem e adolescente, tivemos esta preocupação. Então fomos encontrar os cânticos, a poesia, a dança, os instrumentos e isso foi muito importante. A minha geração fez isso. Criam-se grupos recreativos, o Grupo Recreativo Ngungo foi muito importante, havia declamação de poemas e tudo mais. Nós não nos distraímos. A nossa geração não se distraiu a ficar portuguesa. Não. Português era forçado, era forçado… Tem que a ir à missa. Nós não. Tem que marchar, não, não… Porque há muita coisa que a gente não fez porque não dava. Era já a nossa consciência sociopolítica que estava a desenvolver-se. Por isso é que a gente zelou mais pelas coisas africanas, pelos nossos ancestrais, os nomes, a nossa gramática kimbundu, o dicionário kimbundu, os termos daí e as histórias, sobretudo para a gente musicar, para fazer música com elas. Foi isso que aconteceu. Não é segredo nenhum. O que aconteceu foi exatamente isso. A gente abandonou Portugal: Portugal é de vocês, são vocês. Nós não, nós não. Nós somos angolanos e como angolanos que somos temos identidade própria, o que significa que temos uma personalidade que tem que ser desenvolvida. O escultor vai fazer a sua escultura, o historiador vai contar a sua história africana de Angola, o músico vai tocar a sua música, tradicional de preferência. Aí foi assim que aconteceu. Não foi mistério nenhum. Foi o reencontrar as suas raízes, porque o português impedia tudo isso. E isso foi muito bonito. É uma história muito bonita que nós vamos agora fazer um filme de longa-metragem.

ES: Ah ótimo. E com quem? Quem vai ser o realizador?

BK: Já estão cá. São brasileiros.

ES: Essa conexão entre Brasil e Angola sempre foi muito forte. 

BK: Seria mais forte. Se houvesse de parte a parte uma aproximação que de facto não houve. Não. Porque o Brasil também é um país que tem racismo, muito racismo. E aí compreende… E os portugueses afastam aqui e afastam ali e tiram partido da situação. Isso aí. E depois, quando encontramos, ainda por cima, africanos que querem roubar tudo e não são como deve ser. Aí fica complicado. Mas eu a cantar sempre, eu a cantar aquelas coisas para Angola. Os meu recados foram todos recados para Angola. Sim, quase todos, da vivência e não sei que… Pega num disco do Bonga e começa a ouvir e a gente vê que eram recados que tinham a ver com a sociopolítica. E exemplos para dar àquela juventude que não fez o mesmo caminho que nós. É aí que se torna muito importante. Porque não era música para dizer a bunda da mulata, porque é bonita. Não, não era nada disso. Era música de conscientização das pessoas, que era muitíssimo importante. Tanto que quando vou a Angola cantar: cheio, abarrotado! E aí vem todo o mundo: vêm os velhos, os novos… Todos vêm para ouvir uma síntese de quase 400 músicas que eu gravei e até hoje ainda não deram o devido prémio… Mas enfim. Mas nós temos uma moral muito forte e vamos sempre para frente. Como faria o Mário de Andrade, na verdade, se não tivesse… Porque o golpe de Estado na Guiné-Bissau abalou muito o Mário de Andrade. Ele na altura trabalhava lá, era ministro. Ele estava cá fora, acho até que estava em Portugal de viagem de estudo, uma coisa qualquer, e que aconteceu o golpe enquanto ele estava aqui e já nem voltou. Já foi para Paris, para casa da mulher ou coisa assim. Mas isso abalou uma pessoa como Mário Pinto de Andrade. Ficou abalado, ficou muito abalado e Angola não fez nada. O que é lamentável porque um intelectual daquela envergadura, não, o que é que é isso? Angola devia dar cobertura imediatamente pela sua diplomacia… Porque que ele foi ministro na Guiné-Bissau? Porque na sua terra não podia. 

 

ES: Achei muito interessante algo que você disse… Costuma-se dizer que as atividades culturais eram um pretexto para falar de política, mas o que você diz é que as atividades culturais em si eram política. 

BK: Com certeza. Os cânticos daquela altura eram mais importantes que o discurso dos políticos. Mobilizava muito mais gente. Eu, pessoalmente, mobilizava muito mais gente a cantar do que os políticos nas suas mobilizações dos povos, para fazerem carne de canhão para a guerra. Não, never, never, never. 

ES: E o disco Angola 72 chegou a Angola antes do fim da guerra?

BK: Chegou, chegou. Todos os discos, clandestinamente, chegavam e as pessoas ouviam em casa, assim shhhhhh [põe o dedo sobre os lábios]. Eu tenho notícias fabulosas que vão sair no filme. De gente na clandestinidade ao ouvir a música e tudo… E a mobilizarem-se, sobretudo, isso é muito lindo.

ES: Então vou esperar esse filme com impaciência. E não sei se sabe que vai sair também um documentário também sobre o Mário Pinto de Andrade. 

BK: Ah, isso é muito bom, isso é ótimo. 

ES: Você continua a fazer espetáculos?

BK: Eu continuo a ser solicitado como antes. Fim de semana passado eu estava no Algarve, tive um espetáculo na sexta-feira. No sábado foi no Porto. Ok, agora vou para França, porque o meu agente artístico está na França, em Paris, e é a partir daí que os espetáculos funcionam normalmente. E estou a ser pedido, como sempre. Eu é que me dou o luxo, eu com a idade que eu já tenho, eu é que digo: não mais de 5 horas de voo, 6 horas de voo, eu não vou, não quero saber disso. E todo mundo gosta, eh pá, mas eu não, prefiro pouca distância… Porque estão a pedir de Moçambique, estão a pedir dos Estados Unidos da América… Mas é bastante longe, e é chato. Já andei muito de avião, pois os ouvidos e tal, mas continuo a fazer os espetáculos. Eu faço aniversário no dia 5 de setembro, ok? E tem um espetáculo muito grande que vai ser no dia 10 de setembro. Em Lisboa e em Agosto também temos algures por aí. Continuamos com atividade. Em Portugal vamos ter mais cinco espetáculos. 

ES: Já agora, vai fazer quantos anos eu posso perguntar?

BK: Vou fazer 81.

ES: 81!

BK: [risos] Claro.

ES: Está muito em forma.

BK: [risos] Sim senhora. Como é teu nome?

ES: Elisa.

BK: Elisa. [canta] Elisa we, gomara saia. Pois é. Não tem um cartão de visitas, pois não?

ES: Não tenho.

BK: Eu vou buscar o meu. Vou-lhe oferecer o meu cartão de visita para a gente estar em contacto. Você está fazendo um trabalho muito importante. Para uma pessoa que nos é muito querida e que nos é muito querida por todo o que nos deixou.

 

[Entrevista editada de acordo com o entrevistado]

por projeto e Elisa Scaraggi
Cara a cara | 6 Novembro 2024 | Bonga, Mário Pinto de Andrade