Em conversa com Claire Fontaine: em vista de uma prática ready-made
[Este texto surge como posfácio do livro “Claire Fontaine: em vista de uma prática ready-made”, da editora independente Glac, a partir dos textos traduzidos, adaptados e escolhidos do colectivo francês]
Para escrever um texto que fala das relações entre arte e luta necessitaria de uma língua estrangeira dentro da própria linguagem, uma língua de saltimbancos que materialize a possibilidade de dançar numa corda bamba e de combater. Ao invés disso, tenho apenas os trapos de palavras gastas que tento coser à volta dos problemas.
de “Carta a A.”
Como esta língua estrangeira tem-se desenvolvido? Será que em suas práticas textuais-artísticas vocês já encontraram este vocabulário crítico? Qual seriam as características de tal léxico, caso ele exista?
A pesquisa para esta língua estrangeira dentro da própria linguagem é um horizonte, algo que se move de acordo com o nosso próprio movimento, não é um objetivo para ser alcançado, mas um processo que habitamos e que nos habita. Esta ideia surge da análise de Deleuze e Guattari sobre os escritos de Kafka, do conceito de “literatura menor”1. A procura por uma língua estrangeira, dentro de uma linguagem, não se trata de adquirir um vocabulário mais amplo, em particular, um que seja crítico. É uma aventura no processo de desaprendizagem, um abandono das certezas e das noções que nos estruturam, a fim de encontrar o que Deleuze e Guattari chamaram de um “próprio Terceiro Mundo”. De fato, não é um enriquecimento de qualquer natureza, nem mesmo a aquisição de um domínio, mas a descoberta de uma nova forma de pobreza potente, que permita que o presente, com toda sua estranheza e privação, ressoe e expresse seu significado perturbador, para que enfim o mundo possa aprimorar-se.
Grandes barricadas colocadas entre a arte e a vida, entre o saber e o viver, catedrais erigidas à glória da masturbação mental, as universidades ainda desajustadas do mercado que deveriam oferecer refúgio do inferno da mercadoria, pelo menos por alguns anos, aos jovens à procura de pesquisa, já não hospedam qualquer conflito entre os seus muros e aniquilam quem faz demasiadas pergunta.
de “Carta a A.”
Como vocês se sentem em relação à academia, ao terem participado desse contexto? Quais seriam as limitações desta? Como vocês comparam a produção de conhecimento, por exemplo, entre o campo antropológico e o artístico? E quais seriam as diferenças nas práticas de ambos e nos lugares epistemológicos, se de fato houver diferenças?
Nunca participamos ativamente da academia. Nos parece que as universidades são diferentes em países diferentes, ainda que suas lógicas e modos de organização vêm sendo amplamente homogeneizados na Europa nos últimos anos. Do que sabemos e testemunhamos, não há universidades que analisam, ou até mesmo discutam, a relação entre o conhecimento transmitido, o presente e o futuro dos estudantes e o próprio contexto político. Sob estas condições, lugares que deveriam fornecer uma educação para jovens adultos parecem perfeitamente desonestos, ainda mais quando estes são regulamentados por princípios elitistas ou quando são privados. É óbvio que estimular o amor à liberdade ou cultivar a paixão ao engajamento político não é a prioridade da academia neste momento, e desde muito nem faz parte da agenda. Por conta disso, não há nenhuma responsabilidade à sociedade, nem mesmo uma prioridade direcionada à missão de protegê-la dos interesses privados que a assolam ou do poder político despótico: levantar tais questões explicitamente dentro das universidades pode ser um alto risco para os estudantes.
Conhecimento artístico não é um termo que faz sentido para nós; não existe tal coisa que possa assim ser unificada e descrita. Digamos que a posição do artista pode coincidir com a do antropólogo certas vezes, mas há uma diferença central entre ambos: os antropólogos necessitam de alguma distância do seu objeto, o que para artistas, caso tentassem aplicar tal distanciamento, seria até mesmo prejudicial às suas práticas. Outra diferença relevante reside na relação com a “verdade”: antropólogos devem lealdade a esta verdade que eles próprios produzem, agarram e reconhecem, caso contrário, não haveria nenhum ponto a pesquisar. Por outro lado, artistas não têm nenhum vínculo ou dívida com a veracidade, eles tem liberdade absoluta.
No texto “Carta a A.”, 2008, em certa altura, se comenta que as metáforas são ineficientes para reconstruírem histórias pois demonstram a insuficiência da linguagem para tal. Disto, decorreria uma necessidade lógica, já que o movimento narrativo do próprio texto transita de uma prisão intelectual à uma prisão prático-revolucionária, seja da ordem de uma militância, seja da violência desmedida, seja do amor ou seja do desconhecido. Wittgenstein, em seu segundo momento com Investigações Filosóficas, argumenta que o mundo próprio de cada um é de todo o limite de suas experiências pois elas estão ostensivamente ligadas a linguagem. A linguagem, neste sentido, não é o conhecimento do mundo, mas justamente o mundo que se conhece, é ele mesmo.
Em contraponto, “Carta a A.” apresenta: O realismo sempre foi uma questão de tradução, uma construção feita de códigos, mas agora para acreditar na realidade necessitamos de imagens e palavras mais libertas do presente, porque o presente é feito de mercadorias e dos afetos que delas derivam.
A partir disso, podemos pensar que o que se diz não é necessariamente algo que se possa esclarecer facilmente e, anteriormente a isso, talvez seja algo que a própria linguagem não possa dar conta, de seu peso, do que se pretende dizer. Hoje o chamado revolucionário não é mais que universal, generalista e ainda eurocêntrico, talvez estaríamos incorrendo no erro de denominar ou significar (gerar qualidades, adjetivos, e materialidade, substantivos) ao que apenas é consciência e não ação? Digo da insurreição revolucionária, seja estética e política, anônima e legítima, como algo a ser vislumbrado enquanto vida presente, uma realidade ainda em códigos.
Esta questão é longa e complexa. Não concordamos com todas as viradas conceituais que ela implica. Mantemos que as experiências das pessoas no mundo de hoje não são tão moldadas pela linguagem - Wittgenstein viveu em uma época muito diferente -, mas por suas condições financeiras e suas capacidades em navegar por mundos sociais diferentes e contextos efêmeros, e estes, é claro, estão todos gangrenados com problemas de raça e de classe, todos sobrecarregados e contaminados pelo patriarcado e pela reificação. Para reconectar com as questões anteriores sobre uma linguagem estrangeira dentro da língua e, também, o tipo de conhecimento disponível nas escolas e nas universidades, fica claro que nós estamos vivendo momentos de extrema miséria neste mundo, o que significa que entre linguagem e formas de vida há laços muitos frouxos, assim neste mundo a ética e a estética correm e brincam em torno de si mesmas, numa indiferença generalizada, sem qualquer tipo de coerência. Mesmo a ideia de uma chamada revolucionária parece risível, dado o pouco significado que a vida tem hoje, objetivamente, é a ideia surreal, considerada somente por razões pragmáticas de sobrevivência, de que todos partilhamos a mesma concepção sobre o que constitui o indivíduo e o sujeito. Humanos raramente têm-se desrespeitado tão profundamente nas transações comerciais cotidianas, nos perfis online que visitam e com os quais se conectam, relações estas de brutalidade socioeconômica absoluta. Na Europa, já alcançamos o ponto mais baixo possível se considerarmos a quantidade de pessoas deslocadas e desalojadas que ignoramos em nossos territórios - as ignoramos como seres humanos e como força política, como portadoras de significação e de experiências trágicas importantes, como pessoas buscando liberdade. Secretamente as enxergamos como bocas para alimentar, mendigos sob nossas marquises, pessoas privadas de dignidade e importância, porque estão destituídas de riqueza e de status social. O ódio que alimenta e que é alimentado por atos de terrorismo politicamente patéticos, o nível destrutível e ofensivo de vigilância ao que estamos submetidos e o tipo de repressão que países “democráticos” mobilizam contra qualquer tipo de protesto, nos fez internalizar a criminalidade da crença em mudanças sociais e esquecer a necessidade de proteger a liberdade privada e pública. Que tipo de vocabulário poderia nos salvar desta situação? A linguagem neste estado das coisas desceu para além de uma “hierarquia que é estruturada por uma ordem ética e epistemologicamente pré-determinada”, ela se torna inútil se não encontrar um “agenciamento” que dê certo com o poder, que a extraia da impotência do politicamente correto. Precisamos de práticas que nem se quer se vejam como radicais (até esta fantasia já é de algum modo poluída), devemos bloquear urgentemente o desastre e continuar pensando, enquanto o fazemos, que podemos pensar com nossas mãos, com nossos corpos, com cores. O movimento de 1977 nos ensinou uma lição preciosa: às vezes a linguagem deve ser desfuncionalizada para que a poesia se torne mais eficiente do que qualquer convenção política. “Carta a A.” é uma reflexão sobre o consumo do luto de uma certa ideia de radicalismo e sobre a forma como nos enxergamos vivendo através dele, ao mesmo tempo que somos por ele subjetivados e salvos. Precisamos fazer melhor que isso, precisamos repensar a liberdade e a vida, como o feminismo o faz fora das lógicas de antagonismos binários.
Durante nosso encontro anterior, ficou claro que vocês não concordam necessariamente com a visão política apresentada pelo Comitê Invisível. Apesar de uma inicial ênfase no potencial de comunas insurrecionais em contraposição às revoluções centralizadas, em seu segundo texto, Aos nossos amigos, o Comitê parece ter um foco diferente, com certa constatação de que “a revolução sempre acaba na fase da manifestação”, mesmo que seja entendida como um processo.
Primeiro, gostaríamos de saber se vocês acreditam nesta diferenciação teórica entre insurreição e revolução e, segundo, como vocês comentariam ou responderiam a essa diferença. Será que politicamente o Comitê Invisível representa um passo para trás? Será que na ênfase deles, sobre organização e necessidade de desenvolver uma “inteligência estratégica do presente”, estamos vendo uma recaída em posições ortodoxas?
Confessamos que não estudamos esses dois textos com profundidade. De modo geral - apesar da diversidade das duas publicações - vemos um desejo de seduzir, de atrair, de envolver o leitor em algum tipo de cumplicidade turva e invisível. Como dispositivo literário, isso não é nada novo. No entanto, se o entendêssemos como estratégia política de um grupo, esta seria simplesmente a de um ato suicida. De alguma forma, o absurdo no caso Tarnac demonstra que o poder está disposto a acreditar em histórias e não medirá esforços para criminalizar, de um modo que não faz sentido algum, as pessoas que correspondem à descrição romântica das formas ameaçadoras da vida. Ele acusará essas pessoas de terem escrito o livro e de terem supostamente realizado as ações que este livro descreveu (como se essas pessoas que moraram em Tarnac tivessem inventado a insurreição e a sabotagem, como se fossem os “donos” destes conceitos e que A insurreição que vem contivesse receitas mágicas para a revolução, como se essas não pudessem ser encontradas por milhares de pessoas em qualquer biblioteca pública). Voltando a estes escritos, algumas coisas são lindas, porém os vemos mais como obras literárias que como manifestos políticos. O Aos nossos amigos vem depois do caso de Tarnac e de muitas ondas de manifestação e repressão por todo o planeta, por isso, é de algum modo mais sábio e menos ingênuo que A Insurreição que vem, mas nele ainda se sente uma vontade de gerar magicamente uma rebelião geral e de ativar uma mudança social através de uma ferramenta que está totalmente obsoleta e inadequada à ambição.
Desaprender os gestos, as palavras, as relações. Libertar através dos corpos e das mentes, transformar as subjetividades.
- Sally Bonn, “Ressonância”, introdução do livro Grève Humaine.2
Esta pergunta se refere ao que se tornou conhecido como a “virada subjetiva” dos movimentos sociais e da teoria da mobilização social e como esta atravessa o modo como imaginamos novas possibilidades de mundo. Maple Razsa, antropólogo contemporâneo, aponta como atores do movimento antiglobalização procuram por modos alternativos de mobilização ao se afastarem de fins utópicos e de uma autoridade centralizada, optando por formas de democracia direta e agindo através de uma política prefigurativa3. Em sua análise, a subjetividade emerge como um lugar chave, do conflito e da criatividade, em virtude dos ativistas que buscam independentemente “tomar posse dos meios de produção de si mesmos como sujeitos”4.
Como suas práticas atravessam tal entendimento? E como vocês responderiam às configurações alternativas desse potencial emancipatório da arte, caso vocês acreditem que a arte tenha este potencial?
O potencial da arte não pode ser mensurado, o que o encontro com uma obra de arte pode fazer pelo sujeito, como a liberdade impregnada numa escultura, numa pintura, numa afirmação pode influenciar uma singularidade ou a massa, não tem como ser dito. Isto também explica nossa posição: não temos nenhuma crença supersticiosa na eficácia política imediata do nosso trabalho, de alguma forma não é nossa principal preocupação. Esperamos que obras de arte sobrevivam aos artistas, e o tempo para que o nosso trabalho realmente toque as pessoas talvez nem tenha chegado ainda. Como qualquer artista, trabalhamos porque precisamos, é nossa forma de nos mantermos vivos. Em nossa pesquisa, partimos do mesmo diagnóstico de Razsa - tal análise não é tão nova -, a subjetividade hoje é a arma e o campo de batalha. É óbvio que a prática de liberdade tem prevalecido nos movimentos sociais por todos as partes através de tal lógica da libertação, algo que é politica e pessoalmente maravilhoso para todos nós. Certas formas de autoridade e de dinâmicas gregárias sociais da unificação parecem já não atrair mais as pessoas, e isto é um avanço político incrivelmente importante, o qual todos devemos valorizar e proteger em nosso próprio meio.
Em oposição à ênfase de Maple Razsa sobre o potencial criativo da mobilização social, na qual se sustenta a pergunta anterior, recentes teorizações de uma “arte pós-contemporânea” argumentam que a arte hoje tornou-se uma indústria altamente sistematizada e que seu potencial emancipatório, por conta disso, pode ser entendido numa posição intersticial entre as esferas do marketing e do branding. Tendo em vista tais graus de inserção, como vocês respondem criticamente à apropriação, por exemplo, dos escritos do Tiqqun5 nas últimas obras do artista Bjarne Melgaard, na Bienal de Berlim de 2016?
Tudo é uma indústria hoje em dia: sexo, maternidade, morte, cada momento de nossas vidas ou cada ação, qualquer prática individual entra, de alguma forma, numa dinâmica comercial, agora até imagens podem ser publicadas, trocadas…, qualquer momento pode ser vendido, contido, imortalizado, acumulado, ou seja, roubado da inquietação transitória de nossas vidas. As brechas da chamada sociedade do espetáculo foram fechadas pelas novas tecnologias: a publicidade (e a pornografia) não precisa da vida como modelo, porque a vida está imitando e, cada vez mais, se fundindo com ela, pelo Facebook, Instagram, Tinder, Grinder e pelas ruas das nossas cidades. Como algo tradicionalmente precioso e valioso como a arte poderia escapar deste sistema de subsunção superinteligente e pervasivo? Pensamos que em relação ao significado, há uma forma de indiferença assustadora que está presente em certos níveis do mundo da arte; um enfraquecimento de conceitos, estes tratados somente como sinais para gerar abstração ou para recompor - às vezes de forma aleatória - a superfície da realidade. Acho que Melgaard - que também usou os escritos do Comitê Invisível - estava tirando um sarro da tentativa dos livros lutarem contra a falta de sentido, ao reduzi-los a sinais vazios numa sessão fotográfica. Eu não sei se a vontade dele é explicitamente niilista, acho que provavelmente Melgaard nunca leu esses livros e só está tentando escandalizar as cinco pessoas do mundo da arte que os conhece. Talvez nem ele mesmo saiba o que quer fazer. De qualquer forma as pessoas já esqueceram.
Antes de iniciar sua explanação sobre o estado de exceção, Giorgio Agamben, ao dar parâmetro de sua partida - na partilhada entre o direito público e o fato público e entre a ordem jurídica e a vida – se pergunta diante de uma afirmação: “… se a exceção é o dispositivo original graças ao qual o direito se refere à vida e a inclui em si por meio de sua própria suspensão, uma teoria do estado de exceção é, então, condição preliminar para se definir a relação que liga e, ao mesmo tempo, abandona o vivente ao direito”6.
O que o Agamben aponta é uma trajetória, inclinação está que se dá justamente entre os dispositivos e as subjetivações, porém, a meu ver, vocês, em “Notas de rodapé sobre o estado de exceção”, não apenas já tratam destes dois procedimentos como conjunção inseparável como também praticam esta uniam no texto. Se o que nos torna singulares é a qualidade qualquer que nos é subjetivada (e por isso entendo um controle anterior que se ergue antes de qualquer construção subjetiva), então a única coisa que temos é a contemplação como modo de experienciar as faltas e não o presente, o que nos sobra em excesso. Desse modo, se existe somente um modo de vida, comum a todos e sem escape, “esta é também a razão pela qual não conseguiremos combater esta guerra no terreno das imagens ou da iconoclastia…”, o que teria o pensamento como potencial de reconfiguração de uma exceção para a vida em imagens, com sua imaginação e acontecimento, e não mais para a vida em governo, com sua jurisprudência e institucionalidade?
Primeiramente, a conceitualização de Agamben sobre a relação entre vida e lei é paralela e, profundamente conectada, com sua própria descrição da relação entre bios e zoe. Na verdade, o discurso, o social, a vida supostamente significativa e política que partilhamos oculta em si a vida biológica, que é muda e animal, a nossa atividade intelectual a inclui e a exclui, ao mesmo tempo. Isto é o que a lei faz com a vida: a inclui para no fim excluí-la e exterminá-la, quando necessário; é por isso que o estado de exceção não é o oposto da democracia, mas o é, de algum modo, sempre que incluído nela como uma possibilidade escondida.
Não há “somente um modo de vida, comum a todos e sem escape” como vocês afirmam: estruturas jurídicas e leis têm fortes vínculos históricos com o patriarcado, isto está longe de ser o único modo em que podemos viver juntos e sermos subjetivados. Hoje em dia, por exemplo, essa forma de vida está passando por uma grande crise por todo o planeta. Houveram importantes movimentos feministas centralizados na ideia de extrair da vida os processos legais e jurídicos, que partia de como estes dispositivos mutilam e deformam vidas - especialmente as vidas das mulheres. Não podemos eliminar o poder, mas o poder tem uma história que pode funcionar e nos afetar de várias maneiras diferentes, há sempre uma possibilidade de se opor a ele, de desviar sua trajetória, ao atravessá-lo de outra forma e disto ganhar forças. O coletivo Milan Women’s Bookstore7 (La Libreria delle donne di Milano - Livraria das Mulheres de Milão) publicou um livro que muitas vezes citamos, seu título em Italiano soa como Não acredite que você tem quaisquer direitos8; o contrato social, a maneira como vivemos juntos é - e deve permanecer - negociável o tempo todo, cabe a nós proteger a dinâmica social da violência e da exclusão (que são complementares entre si). O equilíbrio diferente que nos interessa é obviamente aquele que não despreza a vida biológica, mas, ao contrario, que a reconhece com dignidade e importância que merece, nos mostrando instantaneamente sob outra luz, a infância, a velhice, a vida das mulheres e o destino do planeta. Em outras palavras, o antropoceno não existe, o que temos é o que o patriarcado fez com o mundo através do capitalismo, do massacre, dos discursos e das práticas para mantê-lo do jeito que está ou se opor a ele.
No texto “Notas de rodapé sobre o estado de exceção”, a significação inominável do amor se dá da seguinte forma: “… o amor não tem uma causa específica nem uma razão que possa ser comunicada. Aquilo que se ama no outro é o agenciamento social possível ou real de que este é portador, o seu potencial de conexão e de liberdade que faz com que os nossos sentimentos possam surgir e perdurar.” Em “Somos todos uma singularidade qualquer” continua-se: “É a possibilidade de descobrir que todos somos uma singularidade qualquer, igualmente amável e terrível, prisioneira das malhas do poder, à espera de uma insurreição que nos permita mudar a nós mesmos”.
Em sequência, as duas explanações se aproximam da realidade desse sentimento, ou melhor, dessa forma de sentir sem forma, o que, de algum modo, pode ser retomado através de Maurice Blanchot. Em A Comunidade Inconfessável, o autor disserta sobre os termos comunismo e comunidade: “conceitos desonrados ou traídos, isso não existe, mas conceitos que não são ‘convenientes’ sem seu próprio-impróprio abandono (que não é uma simples negação)” […] “o que se dá com esta possibilidade que é sempre engajada de uma maneira ou de outra em sua impossibilidade?”.
A pergunta requer, através da possibilidade, o que Blanchot mesmo justifica por imanência, da invenção à subversão prática da ordem da própria vida. Desse modo, é possível que concordemos que antes de qualquer encontro haja sempre uma disposição para amar a comunidade em sua simples conflituosidade, ou melhor, que amar, como posso interpretar dos textos, é também dar-se à partilha de si como comunhão? Tal revisão não nos colocaria novamente em uma conhecida assepsia da própria vida na política clássica? Ou, há nesta singularidade de amar o comunismo uma subtração que não é mais da vida e sim do que já está partido, a vida presente?
Blanchot é um autor bastante inspirador, sobre seus escritos podemos refletir por anos, porém, em termos de providenciar uma linha de ação e especificar instruções éticas (que vocês parecem procurar nesta pergunta) não é o filósofo mais claro para isto. Não acreditamos que “antes de qualquer encontro haja sempre uma disposição para amar”. Existe entre as pessoas afinidades, antipatias, antagonismos e complexidades que não podem ser negados - e nunca foram, dentro da história dos movimentos revolucionários, mesmo no movimento hippie - estas coisas são muito importantes e também fazem parte do amor sob suas diferentes formas. Em “Somos todos uma singularidade qualquer” tentamos revelar a natureza afetiva de nossa existência social e política e dar a ela uma voz, uma voz de esperança. No entanto, amor é trabalho, não é uma fusão, algo que transforma “a partilha de si [em] comunhão”: o patriarcado cria narrativas e, por consequência delas, mulheres são espancadas, estupradas e mortas a cada minuto por seus entes queridos. O amor não é um instinto, ele pode ser carinhoso, mas não se prolonga desta energia inicial, precisa ser valorizado, cultivado, acompanhado, compreendido, corrigido e alimentado continuamente. Não é uma força imutável em que podemos contar, é algo tão necessário à vida, como o oxigênio, porém ninguém ensina as pessoas a mantê-lo, e o primeiro lugar onde adoece e morre é dentro das comunidades militantes, onde as incapacidades todas emergem e as opostas são altas. De um lado, pessoas sentem-se melhor com uma vida afetiva medíocre e sem ambição, e elas são melhores mesmo, porque só para manter uma família unida e viva dá muito trabalho. Mas quem, por outro lado, realmente vive “em asceticismo cansado”? A vida de ninguém é asséptica, a vida não pode simplesmente ser assim; o amor pelo comunismo intensifica a vida - caso o pudermos mantê-lo vivo por algumas semanas, meses ou, se tivermos sorte, por anos -, faz com que a gente sinta a vida como ela realmente deveria ser: isto não pode ser negado por ninguém que tenha experimentado este tipo de amor, que não subtrai a vida de nenhum lugar, mas que cria um presente real, completo e luminoso.
É que a terra sobre a qual caminhamos mudou de valor e nossas vidas com ela.
– do texto “Sem vida familiar”9
Uma pergunta sobre temporalidade. Os escritos e as práticas de Claire Fontaine se expandiram e se desenvolveram ao longo de um período de tempo substancial. O que mudou desde 1999-2001, na época do Tiqqun, até a orientação teórica apresentada no escritos no Grève Humaine?
Primeiro, nem todas as pessoas que integram Claire Fontaine fizeram parte de Tiqqun. Tiqqun, a revista, foi a concretização de um processo coletivo. De alguma forma, escrever não era o foco principal: fizemos parte de um movimento social por volta de 1997, em Paris, que questionou noções de trabalho, de emprego, de uso do tempo e de distribuição de renda, entre outras coisas. Era um movimento interessante porque juntou vários sujeitos sem nenhuma qualificação profissional ou social, era um movimento de singularidades quaisquer que questionava a organização da sociedade, a estrutura de classe, a forma como as pessoas eram profissionalizadas e formadas nas universidades… Costumávamos nos reunir todos os dias num anfiteatro em Jussieu, mas de nenhum modo não era um movimento estudantil. Lá, percebemos que a prática de estarmos juntos, conversando o tempo inteiro, não estava criando uma linguagem comum e, que esta assembleia contínua e diária, não estava indo a lugar nenhum, em termos da construção de um léxico político sobre o qual todos pudessem concordar. Deste modo, a primeira motivação para escrever Tiqqun foi agrupar uma série de conceitos como Bloom (Teoria do Bloom), Jeune-Fille (Menininha), Le Parti Imaginaire (O Partido Imaginário), para citar alguns deles - o termo Greve Humana apareceu no segundo volume de Tiqqun - e para definir algumas coisas e fenômenos que não tinham nome, mas que estavam presentes. Logo em seguida, a situação política, social e humana que vivíamos mudou drasticamente: Tiqqun Vol. 2 reflete esta mudança, um certo desespero que surgiu dos tempos anunciados no 11 de setembro de 2001, tempos que ainda estamos vivendo.
A Claire Fontaine é um coletivo artístico, ela não é um grupo político, ela não nasce de nenhuma ambição politica qualquer, fazemos arte e escrevemos: não estamos tentando fornecer à próxima geração de revolucionários um kit de ferramentas conceituais e visuais, isso seria muito pretensioso. Nossos escritos nascem ao lado de nosso trabalho visual, o que fazemos é uma operação completamente diferente de Tiqqun (Vol. 1 e Vol. 2). A Claire Fontaine nasceu a partir do diagnóstico da impotência política, costumávamos dizer que alguns artistas no final dos anos 1990 e no início dos 2000 eram refugiados políticos dentro do espaço da arte contemporânea; isso também pode ter mudado nos últimos dez anos, os refugiados não permanecem nessa condição para sempre: a arte não é um campo de refugiados.
- 1. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: Por uma literatura menor. São Paulo: Autêntica. 2014.
- 2. Grève Humaine é uma coletânea de escritos do coletivo Claire Fontaine publicada pela editora parisiense Éditions Macula.
- 3. A política prefigurativa deriva do pensamento anarquista, é o modo como a política se estrutura no presente para refletir a sociedade futura à qual se propõem. Nesta política as ações também se voltam a si mesma, visando implementá-la na vida cotidiana de quem nela atua.
- 4. RAZSA, Maple. Bastards of Utopia. Bloomington: Indiana University Press, 2015.
- 5. Tiqqun foi uma revista francesa que publicou dois volumes: o primeiro em 1999 e o segundo em 2001. Tiqqun foi concebido por autoria coletiva, um dos membros que atualmente integra a Claire Fontaine, também participou do coletivo. Logo depois da segunda publicação Tiqqun se desfez. Além da revista, Tiqqun também publicou os livros, que derivam de textos já publicados na revista: Materiais preliminares para uma teoria da menininha (2001), Teoria do Bloom (2004), Isso não é um programa(2006) e Contribuição à guerra em curso (2009).
- 6. AGAMBEN,. Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, p. 12.
- 7. “Milan Women’s Bookstore” ou “La Libreria delle donne di Milano”: fundada em 1975, se descreve como realidade política composta por movimento, organização e reunião (www.libreriadelledonne.it).
- 8. Non credere di avere dei diritti, publicado em 1987 pela La Libreria delle donne di Milano. Em 1990 é publicado a versão em inglês, cujo título é traduzido como Sexual Difference, A Theory of Social-Symbolic Practice (Bloomington: Indiana University Press, 1990), tradução de Patricia Cicogna e Teresa de Lauretis.
- 9. Texto de autoria de Claire Fontaine publicado no livro Grève Humaine, da editora Éditions Macula.