Pronome

GERAR A DIFERENÇA

Olá a todos!

Obrigado por nós comparecerem em mais uma dessas assembleias. O Encontro Comum se ergue vagarosamente a cada ação nossa. As reuniões tem desfavorecido nosso tempo útil e deixado vivo esse espaço. No centro, o assunto ainda é o mesmo: A Criação do Agora.

Nós nos trouxemos histórias que não são nossas para serem contadas. Vamos escutá-las des-subjetivamente de várias bocas aqui presentes para que possam se tornarem nossas em nós.

Nós nos pedimos, antes de começarmos as histórias, que falássemos de uma outra história muito curta, dita as tantas pela filosofia, que é assim: “os limites da linguagem são os limites do meu mundo”.

Seguimos! Essa chegada acabou.

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* *

Uma vez, uma pessoa que leu um livro, nos contou-nos que existia uma sociedade “indígena”, vivendo em algum lugar, há algum tempo, e que essa não conhecia outra sociedade que não fosse a que essa mesma sociedade conhecia, ou seja, a própria sociedade que eram. Como não nos recordamos dos substantivos que os nomeiam, nos permitimos aqui inventar para apenas apresentar o que são os fatos empíricos das coisas. Como também não lembramos bem dos adjetivos que os caracterizavam e que são necessariamente suas qualidades, vamos contar apenas as relações que essa sociedade mantem com esses adjetivos. Assim como também não recordamos a quantidade deles, os numerais inventados por essa sociedade e muito menos o numeral que os limitam, nos propomos a apenas compará-los com as nossas experiências.

Pronto. A sociedade se chamava Xinaubô, os Xinaubô. Mas seu nome não foi dado pelos próprios, só conheceram o seu primeiro substantivo, nome próprio, após terem o primeiro contato com os Xinaubaté, denominado também pelos próprios Xinaubô. Os Xinaubaté também, antes de encontrarem os Xinaubô, não tinham nome e também não haviam se auto denominado, pois não conheciam outra sociedade que não fossem os Xinaubaté. O estranho é que, tanto os Xinaubô quanto os Xinaubaté, se comunicavam através de uma mesma linhagem linguística, que foi denominada pelo Órgão Nacional de Proteção às Sociedades Indígenas, de onde se encontravam, como a língua - de dois distintos mas próximos dialetos - Xinaú. Mas o porque dessas sociedades terem a mesma língua nós não nos sabemos explicar.

Os Xinaubô, ao encontrarem os Xinaubaté, e vice e versa, disseram uns aos outros: “Nós somos verdadeiros, temos costumes verdadeiros”. E disso surgiu um conflito, existiam dois verdadeiros e um não poderia ser mais verdadeiro que o outro, pois agora cada um conhecia outro tipo de verdadeiro que não era o seu. Então, para não perdurarem no conflito, cada sociedade significou a outra sociedade a partir de seus costumes. Os Xinaubô foram denominados pelos Xinaubaté com a conjunção Bô, porque Bô significa “onça da noite”, por terem o costume de andarem durante a noite pela mata. Os Xinaubaté foram denominados pelos Xinaubô com a conjunção Baté, porque Baté significa “pássaro do dia”, por terem o costume de acordarem antes de amanhecer para caçar e plantar. Mas, nenhuma das sociedades gostou da denominação que foi dada a elas, pois cada uma a sua maneira percebiam os nomes dados como ofensas. Para os Xinaubô, as onças eram justamente os animais que roubavam suas crianças durante as noites, e isso explica o costume deles estarem em vigília noturna ao redor da habitação da própria habitação. E para os Xinaubaté os pássaros do dia eram os que roubavam todos os frutos e sementes ao amanhecer, por isso acordavam muito cedo, para manterem vigília e salvaguardarem seu roçado. 

Mesmo assim, as duas sociedades, sabendo agora onde cada uma estava e o que podiam compartilhar, mantiveram contato, escambo e até uniões afetivas. Passou-se muito tempo e os grupos ainda se referiam uma a outra do mesmo modo. Até que pela primeira vez apareceu um Putorí, um “não-nós”, o que na significação sintática da língua das duas sociedades era quase um não-verdadeiro, pois não mantinham costumes verdadeiros. Um Putorí, para nós aqui, seria um homem branco. O Putorí, rapidamente trouxe outros Putorí. Os Putorí eram do Órgão Nacional de Preservação às Sociedades Indígenas. Ao apreenderem lentamente a língua Xinaú, denominada com esse nome pelos próprios Putorí, começaram a entender o que a palavra Xinaú significava. Xinaú significa “homens verdadeiros”. Então, denominaram a língua das duas sociedades como Xinaú, mas mantiveram chamando os Xinaubaté e os Xinaubô de como os próprios se denominavam, porém, com uma mudança, retiraram o Xin, que significa verdadeiro em Xinaú, ficando assim as denominações Aubaté e Aubô, mantem apenas as significações ofensivas que as próprias sociedades não gostavam. Au significa, para as duas sociedades, homem, enquanto que para os Putorí, índio. Desse modo, para os Putorí, Xinaú significa “índio verdadeiro”, enquanto que para as sociedades “homem verdadeiro”. Assim, a partir de diversos relatórios escritos pelos Putorí e com a visita cada vez maior de antropólogos, também Putorí, trazidos pelos Putorí já conhecidos, o mundo inteiro conhece as duas  sociedades hoje como sociedades irmãs chamadas Aubaté e Aubô.

Ao perceberem que os Putorí chamavam os Xinaubaté e os Xinaubô unicamente do que os ofendiam, retirando a conjunção Xin (verdadeiro), e entendendo que Au para os Putorí era outra coisa que não homem, tanto os Xinaubô quanto os Xinaubaté começaram a se chamar apenas de Xinaú, que significa “homem verdadeiro”. E até hoje, os Xinaú continuam a chamar os Putorí de Putorí e não conversam com os Putorí que os chamarem de Xinaubô ou Xinaubaté.

É isso o que temos para contar para nós. Essa, se encerra!

*

Pois bem, do mesmo modo que nós contamos essa história de agora e nos foi contado essa história, nós nos vamos contar uma história com os mesmos nomes, usando os mesmos nomes que já se estabeleceram nesse encontro. Essa história de agora pode ser de outra sociedade, mas pode ser da mesma da história anterior, mas como já nos vimos antes, não nos importa esses lugares no Encontro Comum.

Uma vez nos disseram, por terem lido em um livro, que antes de os Xinaubaté e os Xinaubô deixarem de se chamarem assim para começarem a se denominarem todos como Xinaú, um Xinaubaté ao conversar com um Xinaubô disse no encontro para seu companheiro: “Agora, aqui, no agora do aqui, chove pra mim”, no que o Xinaubô disse; “Pra mim agora, aqui, não chove”. Ao se depararem com esse largo conflito, não disseram mais nada por um longo período da conversa.

O verbo chover em Xinaú tem diferentes significações que são correntes nas diferentes sociedades. A palavra para significar o que é a chuva seria Kutatí, que significa tanto “molha sempre” como “caí e escorre”. As duas significações servem para as duas sociedades e são correntes em suas falas diárias, mas mudam conforme o “aqui e agora”, no momento em que é enunciada. O Xinaubaté usou o Kutati para dizer que estava chovendo e por isso tudo iria molhar, mas o Xinaubô, por estar conversando dentro de uma cabana com o Xinaubaté, usou o Kutatí para dizer que a chuva caía no “agora”, mas não “aqui”, pois o Xinaubô não se molhava no momento da chuva, já que estava dentro da habitação conversando com o Xinaubaté.

Tanto o Xinaubô quanto o Xinaubaté entenderem cada qual a sua maneira a experiência da chuva no “aqui e agora”, e mesmo que o conflito estivesse presente enquanto conversavam, os dois compreenderam e concordar no silêncio as diferentes experiências que cada um estava tendo com o Kutatí, naquele exato momento da conversa.

Passado alguns minutos, o Xinaubô perguntou ao Xinaubaté: “E para Putorí, chove aqui, agora?”, no que o Xinaubaté respondeu: “Pode chover, mas aqui e agora Putorí não está”. E Xinaubô complementou: “Putorí pode estar lá”, e foi complementado pelo Xinaubaté: “Se chover lá, só chove, apenas”.

O Putorí não estava conversando com o Xinaubaté e nem com o Xinaubô, presentes na habitação. O Putorí também estava longe, pois os dois sabiam que o Putorí havia saído em viagem. Os dois sabiam que poderia estar chovendo para o Putorí e que mesmo que chovesse para o Putorí, no momento em que conversavam, o Putorí não teria nenhuma das duas experiências que os dois estavam tendo. Pois, para os dois cada um vivia a experiência de si e a do outro ao mesmo tempo, enquanto que para o Putorí só existia a possibilidade de uma única experiência, a de chover, que não eram todas as possibilidades de chover dada pelo Kutatí no Xinaú.

O Kutatí depende de suas duas significações e das duas únicas possiblidades de chover, que é “aqui” e “agora”. Essa experiência se modifica conforme o entendimento conjunto do “aqui” no “agora” e do “agora” com “aqui”, pois podem existir juntos e separados, ou juntas e separadas. Desse modo, nem o Xinaubaté e nem o Xinaubô podem dizer do que não sabem, por exemplo, se chove lá, por que “lá” não se experiência “aqui” e nem “agora”, mas podem dizer de como é a chuva para o Putorí, porque o Putorí percebe a chuva como uma ideia de chover, sem “aqui” e “agora”, mesmo que “aqui” e “agora” exista para o Putorí, assim como paras os Xinaú. É que para o Putorí existem outras formas do aqui e agora que são anteriores e posteriores ao exato momento em que se enuncia chover. O Kutatí não serve, desse modo, aos Putorí.

E por isso a conversa dos dois acabou com uma afirmação do Xinaubaté: “Em Putorí o Kutatí não é Kutatí”.

Nós agradecemos os ouvidos de nós que nos escutaram. Essa história terminou.

*

Então nós vamos continuar o que a nós foi contado e o que nos contamos até agora. Manteremos os nomes, pois nem mesmo os nomes precisam ser lembrados se aqui nós nos elegemos seus significados, que não são fixos nunca no Encontro Comum, se reelaboram continuamente a partir de agora.

A nós, nos disseram de pronto, logo após a leitura de algum livro desses, que os Xinaubô e os Xinaubaté mantiveram, por pouco tempo, um dos muitos costumes que os diferenciavam e que por isso os tornavam verdadeiros uns para os outros e iguais em seus encontros. São dois costumes que têm a mesma denominação, a mesma palavra, mas que se procedem de diferentes maneiras. É o Catiquéli. Catiquéli significa, em Xinaú e para os Xinaú, “no que existe o que existe”.

Esse costume existe até hoje, mas agora, os Xinaú os uniram em um único e só usam o costume para os Putorí e para outras sociedades que não são Putorí, mas também não são Xinaú, pois hoje os Xinaú conhecem outras sociedades fora dos Xinaú, fora deles mesmos. Enquanto ainda eram Xinaubô e Xinaubaté mantiveram a separação dos costumes. E é da prática desse dois costumes que vamos falar. O Catiquéli só começou a existir como costume por causa dessas duas sociedades terem de encontrado. Antes disso, nenhuma das duas haviam criado as práticas desse costume, apenas o mito do “no que existe o que existe” é que era contado entre os Xinaú, cada qual a sua maneira.

Os Xinaubô, ao se depararem com os Xinaubaté, correram para dentro da habitações e de lá não quiseram sair. Com medo e desconfiança começaram a recontar o mito Catiquéli. Que dizia sobre o existir conjunto de cada um dos Xinaubô. Esse mito correspondia a como cada um dos Xinaubô vivia dentro de todos os outros Xinaubô do mundo. Que cada Xinaubô era formado por toda a natureza e toda a natureza habitava todos os Xinaubô ao mesmo tempo. Que cada Xinaubô vivia inteiramente no outro Xinaubô, não em parte, mas inteiro, e que todos Xinaubô se criavam com todas as vivências de um Xinaubô nos outros. Se um Xinaubô vê outro Xinaubô diferente do Xinaubô que é olhado, é porque no exato momento em que se olha o Xinaubô olhado, esse Xinaubô muda, mas tanto o que é olhado quanto o que olha mudam. E essa mudança é constante e distinta entre os dois. A mudança de cada Xinaubô é, dessa maneira, todos os Xinaubôs que percebem o outro Xinaubô, que vivem um nos outros e pelos outros é criado, e por todos é modificado sempre.

Os Xinaubaté ao se depararem com os Xinaubô fugiram para a mata e lá se mantiveram por dias. Com raiva e tristeza passaram muito tempo contanto e aprofundando o Catiquéli. O mito dizia sobre a maneira com que cada Xinaubaté podia ser todos os Xinaubaté, pois cada Xinaubaté era diferente com qualquer outro Xinaubaté. Os Xinaubaté acreditavam que cada um dos Xinaubaté eram diferentes e se relacionava diferentemente com cada um outro Xinaubaté existente no mundo. Que todas as diferentes maneiras de ser um Xinaubaté viviam dentro de um único Xinaubaté. Que cada Xinaubaté tinha todos os Xinaubaté dentro de si mesmo e que para onde fosse, mesmo que sozinho, levaria sempre todos os Xinaubaté dentro desse Xinaubaté.

Ao passar um bom tempo, os Xinaubaté e os Xinaubô voltaram a se encontrar. Os grupos apareceram uns para os outros diferentemente de antes, da primeira vez que se encontraram. Os dois grupos se assustaram um com o outro, mas perceberam que se tratavam do mesmo grupo encontrado anteriormente. Os Xinaubô estavam com cheiros de plantas impregnados em todo o corpo e pintados dos pés à cabeça, com manchas de todas as cores que conheciam e produziam, enquanto que os Xinaubaté usavam mascaras de madeira pintadas com rostos nunca vistos e galhos e folhas amarrados nas pernas, braços e cabeça. E os Xinaubô disseram aos Xinaubaté: “Nós somos nós e estamos aqui e agora em nós”. E os Xinaubaté rebateram: “Vocês habitam vocês e nós a nós”.

Tanto Xinaubô quanto Xinaubaté quiseram não serem reconhecidos uns pelos outros, pois para ambos não poderiam ser outro que não o que já eram, pois se fossem outra coisa fora do que poderiam ser, seriam algum coisa que não mais Xinaubô e nem Xinaubaté.

Ainda hoje, os dois grupos vivem em diferentes lugares, mas muito próximos, se misturando cada vez mais. E não se apresentam mais entre si com seus Catiquélis. Porém, os Xinaú, usam o Catiquéli criado antigamente pelos Xinaubô para encontrarem outras sociedades que não são Xinaú, e o antigo Catiquéli dos Xinaubaté para se encontrarem apenas com os Putorí.

No mito do Catiquéli dos Xinaubaté, cada Xinaubaté existe da maneira diferente com que cada outro Xinaubaté o percebe e por isso é modificado sempre. No mito do Catiquéli dos Xinaubô, cada Xinaubô habita o outro Xinaubô e por isso carrega todos os Xinaubô em si mesmo, pois é todos e um ao mesmo tempo. Se há essa dupla significação do Catiquéli, dada tanto pelos mitos em si como pelos grupos, e as significações são possíveis de existirem juntas, é porque também existe outras duas existências sociais que coabitam o mundo junto aos Xinaú, os não Xinaú e os Putorí. Então a prática do Catiquéli dos Xinaubô foi dada aos não Xinaú, pois são aparentemente semelhantes, mesmo que não sejam Xinaú, pois os Xinaú podem existir em outros não Xinaú, mas não nos Putorí, pois não são verdadeiros, e neles os Xinaú não podem existir diferentes, pois só existem de uma única maneira, ofensivamente como não-homens. E a prática do Catiquéli dos Xinaubaté foi direcionada aos Putorí, pois os Xinaú não podem habitar no que não podem ser todos, já que no Putorí os Xinaú já são um único, não-homens.

Os dois Catiquelí são dos Xinaú e são “o que são no que são”, pois são Xinaú, mas também são o que não são para qualquer outro que não é Xinaú ou Putorí.

E assim essa história dá lugar a outras que nós vamos contar e nós vamos escutar.

MATAR O INDIVÍDUO 

Boa noite pessoal!

Obrigado por nós comparecerem em mais uma dessas reuniões. O Encontro Comum se ergue vagarosamente a cada ação nossa. O trânsito de informações tem desfavorecido nossa forma clara e deixado livre nosso conteúdo. No meio, o desejo ainda é o mesmo: O Reconhecimento do Aqui.

Nós nos trouxemos algumas reflexões literárias que nos foram dadas de presente para nos reapresentarmos nós aqui. Vamos escutá-las descontextualizadamente de várias bocas agora presentes para que possam deixar de serem nossas.

Nós nos pedimos, antes de começamos as reflexões literárias, que falássemos de uma literatura muito curta escrita pela política, que é assim: “De modo geral, aprendemos o hábito dos contratos. Fugimos de tudo o que se pareça com um pacto, porque um pacto não pode ser rescindido; ou é respeitado ou é traído. E no fundo, isso é mais difícil de entender: que o impacto de uma negação depende da positividade de algo comum; é a nossa maneira de dizer ‘EU’ que determina a força da nossa maneira de dizer ‘NÃO’”.

Continuamos! Essa mediação parou.

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* *

Uma vez nós escutamos de um desses leitores fortuitos, que havia lido um livro, sobre a história do Sujeito. Este homem era um Putorí como nós aqui. E quando o Putorí falava com a gente, falava de pensamentos escritos de outros Putorí. De uma literatura inteira escrita de Putorí para Putorí. E nós vamos contar aqui para nós a história do Sujeito que o Putorí nos contou.

O Putorí comentou de um Gramático, vivo e em exercício de suas faculdades mentais, num período de Império logo após o Salvador (o famoso período D.C). Disse que esse Gramático ensinava o Imperador desse Império e que, ao contrario dos Filósofos do A.C., o Gramático acreditava que os Filósofos é que não poderiam estar na sociedade, pois os Filósofos nos ludibriavam com suas ideias.

As razões para o Gramático do D.C. levantar tal suspeita, tinha que ver com o princípio do que o Putorí compreendia por Sujeito. O Filósofo do A.C. acreditava que o Poeta, que aqui chamamos de Artista, era o que não poderia habitar a formação da sociedade ideal, pois para o Filósofo, o Artista imita uma realidade que não existe e por isso imitava a imitação que já é a realidade do mundo que vivemos, mas que não é real. Pois, para o Filósofo, a realidade mesma se encontraria em outro lugar. Na concepção do Filósofo, a realidade só existe no intelecto, ou melhor, segundo o Putorí, enquanto ideia das coisas. Como a ideia de qualquer objeto, que pode ser o objeto em si, sua descrição, uma imagem do objeto e a palavra que denomina o objeto. Assim, para o Filósofo, o Artista deve ser tanto expulso da sociedade quanto adjetivado como imitador, pois ludibriaria e reiteraria uma realidade não real.

Para o Gramático do D.C, o verdadeiro impostor da sociedade, por não respeitar a realidade da linguagem, é o Filósofo. Para o Gramático, o Filósofo não lida bem com a linguagem e a utiliza afastando os homens da realidade do real. O Filósofo, para o Gramático, não sabe descrever as imagens, pois suas imagens são todas estalos da língua, ou melhor, suas reflexões não trazem imagens, não fazem com que a linguagem seja a realidade. A realidade para o Gramático não tem que ver com as coisas do mundo, mas sim com a linguagem que exerce a produtividade e a vida de todas as coisas que no mundo existem. Assim, para o Gramático, a linguagem é a realidade em seu exercício linguístico, falado, escrito, ou até silencioso. Desse modo, o Poeta, o Artista agora, na sociedade ideal do Gramático, é o que melhor descreve as imagens, pois no exercício de sua linguagem as imagens existem realmente e por isso expressam a realidade de como é a verdade da língua.

Para nós, ao escutarmos o Putorí, a confusão se fez presente, pois não nos poderíamos imaginar que um Gramático, mestre de um Imperador, poderia, em tão pouco tempo na história, negar as ideias radicais de um outro, as do Filósofo. O Gramático, nesse sentido, é tão radical quanto o Filósofo, porém, de modo diverso, o Gramático reconhece de ante-mão o que é mais importante em nós aqui: que a linguagem não é, de modo algum, uma ferramenta do conhecimento, mas a linguagem é a realidade do conhecimento. A linguagem, para o Gramático e para nós, é a criação das imagens, de tudo que no mundo existe porque nós falamos, porque a linguagem também é língua, mas não é só a língua, é antes de tudo a possibilidade de falar.

Contudo e por fim, o Putorí, sem dizer factualmente o que define a realidade do Sujeito, se utilizando de metáforas abstratamente literárias, como nós nos fazemos aqui, nos disse mais ou menos assim: “Os Antigos Orientais dizem que a narração da História [para o Putorí, do romance] não deve nunca ser assumida por uma primeira pessoa, pois caracterizaria de imediato a forma com que o relato se tornaria público, de como o relato viria ao mundo, que é totalmente pessoal. Que essa pessoalidade destruiria a diferença e calcaria o indivíduo em sua solidão, que essa pessoalidade deixaria de exercer a singularidade que se ergue na língua para todos e em todos. Nesse sentido, é preciso que se faça impossível ao ouvinte tocar o que  escuta, que seja impossível a palpabilidade da linguagem. A narração da história, ou do romance para o Putorí,  perderia toda sua potência de ser imprevisível, pois, em primeira pessoa, a História se torna submetida à racionalidade de um único ponto de vista, de um centro que não é oco, vazio, que se preenche por um ser, que reclama seu próprio Sujeito”.

O que o Putorí estava querendo nos dizer é que a primeira pessoa não é nada senão um sexo em repouso, enrugado. De forma comparável aos que, como o Gramático, estavam do D.C. na época do Império, que acreditavam que o sexo masculino em ereção era o Deus e que, o que possuía o sexo no momento da ereção, não era o mesmo, pois aí, no agora do acontecimento, o possuidor que possuí o sexo em ereção transcende. Ou seja, esse tal sexo enrugado, murcho, pode até nos comover, mas não pode de qualquer modo transportar para a realidade o companheiro [para o Putorí, a esposa] que é o ouvinte ou o leitor. Para que o prazer da linguagem continue sempre imprevisível, é preciso que o ouvinte ou o leitor não saiba nunca de onde é que virá o desejo.  O desejo não pode afirmar-se em primeira pessoa, muito menos ter um rosto, o desejo pode apenas desejar. 

Achamos que é apenas isso o que podíamos dizer e nos dizer aqui, agora. Essa história pede arrego!

ERGUER O COMUM 

Sejam bem vindos todos e que estejamos todos bem vindos!

Obrigado por nós comparecerem em mais uma dessas escuridões. O Encontro Comum se ergue lentamente a cada paço de linguagem nossa. O que é invisível mas percebido tem desfavorecido nossa limitação e deixado aberto nosso campo improdutivo. No intermédio disso tudo, o interesse ainda é o mesmo: A União do Aqui e Agora.

Nós nos trouxemos algumas propostas que nos foram pensadas instintivamente para recapitularmos aqui e agora. Vamos escutá-las expropriadamente de várias bocas aqui e agora presentes para que possam deixar de serem nossas.
Nós pedimos a nós, antes de começarmos as propostas, que falássemos de uma literatura muito curta escrita pelo Comum, que é assim: “A literatura, segundo a fé de um grego, de um romano e de um chinês, é a linguagem concebida como uma arma de arremesso.”

Nos mantemos assim o Encontro! Esse paralelo intermediário para aqui e agora.

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Em certo momento, nós ouvimos de um Putorí, talvez o mesmo que nós nos escutamos agora, na história anterior, após o Putorí ter lido diversos livros desses que temos por aí, a cerca da criação do Comum. O Putorí falava de revisitar o termo e dele retirar a comunhão, do que poderia ser Comum em todos os presentes aqui e agora.

Para alcançar o cerne da proposta do Putorí, o Putorí passou pela construção de três imagens possíveis com sua linguagem. E as imagens são, uma após a outra: a Cerca, a Máscara e a Roda. Adiantando-nos: a Cerca diz respeito ao Limite, a Máscara ao Anonimato e a Roda ao Exercício de uma Forma de Vida.

A Cerca foi criada por uma sociedade que não queria mais viver na sociedade que vivia. Um grupo dessa sociedade se formou em outra sociedade e começaram a se encontrar. Esse grupo não queria sair de onde viviam e também não poderiam viver em outro lugar, porque lá era o lugar deles. Mas mesmo assim esse grupo precisava viver de outra forma, de um modo diferente do grande grupo. O pequeno grupo começou então a se encontrar sempre e por isso também começaram a incomodar o grupo maior. Neste incomodo constante, com ações bastante violentas por parte do grupo maior, o grupo menor foi precisando se esconder, pois temiam pela sobrevivência desse novo modo de viver que estavam tentando construir.

A sociedade menor, com menor quantidade de pessoas, não queria mais viver isolada, pois era justamente isso o que as pessoas sentiam quando apenas viviam na sociedade maior, isolamento. O grupo menor queria que tudo que tinham pudesse ser de todos que formavam seu grupo, queriam que a vida de cada um do grupo deixasse de ser privada. O grupo maior, ao intervir constantemente na formação do grupo menor, fez com que o grupo menor privatizasse a forma com que viviam. Então, no meio do lugar em que a sociedade maior vivia, o grupo menor criou uma cerca que os delimitavam, que não deixava o grupo maior entrar, que os separavam. Foi assim que o grupo menor se privatizou, a fim de manter íntegra a forma com que viviam, mesmo que lutassem para que a privatização da vida de cada um deles deixasse de ser privada e se tornasse comum.

A Máscara também surgiu a partir desse grupo menor. A Máscara foi criada pelo grupo menor para quando encontravam o grupo maior, quando tinham que estabelecer uma conversa ou combate. O grupo menor, depois de ter perdido diversos de si, pois alguns haviam sido levados pelo grupo maior, decidiram usar sempre a Máscara para os encontros com o grupo maior. Acontece que o grupo menor percebeu que o grupo maior reconhecia cada um do grupo menor, pois todos que formavam o grupo menor já haviam vivido na sociedade maior. Desse modo, era muito fácil para o grupo maior identificar os agentes da sociedade menor e retirar qualquer um do grupo e assim desestruturar a formação do grupo menor.

A Máscara foi sendo usada assim, para que não fosse possível que o grupo maior soubesse quem eram os que formavam o grupo menor. Mas a prática se tornou tão comum, que hoje, o grupo menor mantem o uso da máscara também na Roda.

E a Roda também foi criada pelo grupo menor, só que desse grupo para o próprio grupo desse grupo. Na Roda é que o grupo define, discute e conversa sobre as questões que constituem a forma de vida deles. É com a Roda que as pessoas desse grupo sempre se encontram, e na Roda é que se fazem presentes no aqui e agora. Sempre, no centro da Roda não há nenhum deles, nenhum deles pode habitar o meio da roda e muito menos ser o intermédio entre todos os agentes presentes. Nesse lugar da Roda, que aparentemente é vazio e que as imagens são colocadas e em que todas as imagens de tornam comuns, é que existe o grupo. O grupo não existe fora da roda. Fora da roda ele é outro grupo que não o grupo com Máscara.

A Máscara é usada quando a Roda se forma e quando o grupo vai encontrar o grupo maior, mas também porque para constituírem a Roda também se constrói a Cerca, mas agora não para que o próprio grupo menor seja expropriado de si mesmo, mas porque cada um do grupo menor também é uma imagem, e nela se faz o Comum, no centro da Roda, com a Máscara, dentro da Cerca.

 

* texto escrito em decorrência da apresentação, por parte do autor, do evento Pronome, dentro do projeto Gramatologia do Grupo de Estudos Práticos em Linguagem Experimental, ocorrido na Oficina Cultura Oswald de Andrade (Bom Retiro, São Paulo-SP, Brasil) no dia 16 de março de 2016, das 19h às 22h.

por Leonardo Araújo
Mukanda | 3 Julho 2016 | comum, experiência, gramática, indivíduo, linguagem, Xinaubaté, Xinaubô