Entrevista a Ondjaki - a capacidade de sobrepor a boa disposição às dificuldades em Angola

Ondjaki Ndalu de Almeida nasceu em Luanda em 1977. Licenciado em Sociologia, desde cedo que se interessou pela pintura e pelo teatro. Recebeu em 2000 uma menção honrosa no prémio António Jacinto (Angola) pelo livro Actu Sanguíneu e participou em algumas antologias internacionais e portuguesas. Entre as várias obras publicadas destaque para O Assobiador (novela, 2002), Yari, a menina das cinco tranças (romance, 2004), E se amanhã o medo (contos, 2004, Prémio António Paulouro), Os da minha rua (estórias, 2007), AvóDezanove e o segredo do soviético (romance, 2008 que venceu o Prémio Jabuti no Brasil) e o livro de poesia Materiais para a confecção de um espanador de tristezas (2009). Também escreve para teatro, é o caso desta peça Os vivos, o morto e o peixe-frito (teatro, 2009 - Ed. especial, BRASIL) e cinema, tendo co-realizado com Kiluanje Liberdade um documentário sobre a cidade de Luanda (Oxalá cresçam pitangas – histórias de Luanda, 2006). É membro da União dos Escritores Angolanos. Alguns livros seus foram traduzidos para francês, espanhol, italiano, alemão, inglês, sérvio, sueco e chinês.

Ondjaki, fotografia de Jordi BurchOndjaki, fotografia de Jordi Burch

 

Sendo formado em Sociologia, como é que surgiu o seu interesse pela escrita, desde o conto, ao romance, passando também pela literatura infantil?

O meu interesse pela escrita é muito anterior à minha formação em Sociologia. Esta licenciatura acaba por surgir por outros factores externos. A escrita é uma coisa mais sedimentada, desde os meus 16 anos. Comecei com a poesia e depois facilmente fui para a prosa, contos e romances.

A sua escrita fala muito sobre a vida e as pessoas. A Sociologia aumentou-lhe ainda mais essa atenção ao mundo?

Se do ponto de vista pessoal e poético gosto muito das pessoas, materiais excelentes para serem os meus materiais de escrita, a Sociologia deu-me instrumentos e outra visão da realidade social. Mesmo dentro das minhas histórias de ficção as os problemas são contextualizados e problematizados à luz de uma certa sociologia. 

Também fez teatro amador e chegou mesmo a fazer um curso profissional de interpretação teatral. O palco e o jogo entre as personagens também passaram para a sua obra literária?

O teatro, o cinema, a pintura, tudo isso para mim são questões de experimentação. O que eu ganho com isso é uma possibilidade de experimentar a minha sensibilidade, abordar, analisar a sensibilidade dos outros. Acho que o que faz crescer a minha escrita é isso mesmo.

A palavra deve ser tão plástica como a pintura?

A palavra pode ser plástica como a pintura se servir um dado objectivo literário. A palavra não pode ser plástica por ser plástica. Não podemos brincar com a plasticidade das palavras como mero exercício. A palavra serve um fito literário. É claro que se a história exige que trabalhemos essa plasticidade não a poderemos negar.

Na novela O Assobiador toma como ponto de partida o assobio para explorar algumas determinantes da condição humana, o amor, a morte e o fascínio pela arte…

Acho que a minha obra se está a aproximar cada vez mais das pessoas e a partir delas consegue-se chegar à vida, às diferentes formas de viver, às movimentações geográficas, às referências culturais… No Assobiador acontece um pouco isso. Este livro fala também sobre sensibilidades, o que é que um assobio pode fazer à nossa própria sensibilidade.

Sente-se contagiado pela língua falada, manuseada como um utensílio quotidiano?

Novamente é uma questão da utilidade literária que essa técnica exige. Se estou a escrever uma obra em que me aproximo mais da coloquialidade é porque a história assim o exige. Eu não me coíbo de ir por determinados caminhos. Se tiver que escrever uma história mais lírica, mais cuidada, hei-de fazê-lo. Para mim o que interessa é que tipo de história quero contar e que roupa tenho que usar para vestir essa história. Para isso é preciso estarmos atentos e desatentos também. Estarmos atentos se nos queremos aproximar das pessoas e desatentos se queremos encontrar o nosso mundo interior.

Ondjaki nasceu em Angola, Luanda. Qual é a imagem mais forte que Angola lhe transmite?

É uma imagem de brandura humana, de festa, de calor, de boas relações entre as pessoas. Independentemente das dificuldades, da falta de água e da falta de luz, os angolanos têm uma terrível boa vontade para enfrentar os problemas. É isso que me encanta, essa capacidade de sobrepor a boa disposição às dificuldades. O sítio onde nós crescemos influencia-nos sempre muito para o resto da vida. O ter crescido em Luanda e também em Pequim condicionou o meu percurso cultural.

Como caracterizaria a sua infância?

Foi uma infância muito feliz, muito tranquila, apesar de algumas dificuldades. Uma coisa é a infância dentro de casa, outra é a infância fora de casa. Eu tive uma infância fora de casa, com todos os episódios que isso acarreta. Apesar de tudo, Luanda não estava propriamente dilacerada com a guerra, era uma cidade relativamente tranquila.

Em E se amanhã o medo (2005) regressou ao conto, um género que não publicava desde 2001. Este género narrativo representa uma depuração e uma condensação de experiências?

Sobretudo representa um desafio. Os meus contos não são muito longos, gosto especialmente de contos curtos. Mas há um grande trabalho de escultura, de depuração, de busca daquilo que é intenso. Acho que um conto tem de ser sobretudo intenso.

Em que circunstâncias surge a criação da peça de teatro Os vivos, o morto e o peixe-frito (ed.Teatro Lusófono)?

Esta peça surgiu como ideia original durante o “Lisboa em festa 2006 – África festival”, como texto para ser lido por actores africanos residentes em Portugal. A própria feitura e descoberta do texto foi feita em ensaios de voz e improvisação com os actores. Foi um processo muito interessante, com muitas memórias e descobertas. Depois a peça foi aumentada e revista com a finalidade de ser encenada.

Esta obra transporta-nos, não como vem sendo habitual na sua obra, pela Luanda do século XX, mas centra a acção em Lisboa, no dia em que a selecção de futebol angolana defronta a portuguesa. Este é um confronto simbólico?

Eu penso que terá sido um confronto (futebolístico) simbólico, sem dúvida. E bonito também. Eu estava em Lisboa nesse dia, e fiz questão de passear e informar-me e ver os diferentes locais onde o jogo ia ser visto em lugares abertos. E em muitos desses lugares houve um são convívio entre angolanos e portugueses, mas cada um queria que a sua selecção ganhasse. Felizmente, não senti nenhuma animosidade negativa, era um simples jogo de futebol, mas era a primeira vez que Angola ia ao mundial e o primeiro adversário era Portugal. O facto em si é muito bom, literária ou teatralmente.

De que forma podemos considerar que esta é  uma temática actual, onde a realidade está  a meias com a ficção?

A realidade está sempre a meias com a ficção. Em Angola, por exemplo, mesmo no âmbito do que é quotidiano, a ficção já superou há muito a realidade. E o mesmo se passa em outros países africanos. Estas pessoas africanas que vivem em Portugal, que para cá vieram por razões pessoais, transportam consigo esse lado inventado da vida. Gostam de interferir no real com elementos de outra natureza, e transforma, é notável, os problemas em soluções, as dificuldades em anedotas. A peça é também sobre isso, sobre essa celebração de vencer longe de casa.

Escreveu contos, romance e poesia. A escrita para teatro foi um imprevisto ou uma vontade adiada?

Por um lado foi uma vontade adiada, por outro, todas as escritas nos vão preparando para novos desafios. Este foi um desafio importante, e foi com muito prazer que vivi os momentos de interacção com o grupo de actores que integrou a primeira experiência. Ali lembrámos, juntos, coisas da nossa infância e juventude ainda no nosso continente africano, e também partilhámos algumas dificuldades que tinham sido comuns a todos, no processo de adaptação a Portugal, ao Serviço de Emigração e Fronteiras, etc. Foi muito bom.

Existe nesta obra uma transformação nítida a partir de uma realidade e um ‘diálogo’ com uma das questões mais prementes da sociedade contemporânea - o multiculturalismo/miscigenação. Existe uma experiência autobiográfica nesta história?

Bem, talvez. Diz-se que, do ponto de vista da sensibilidade, quase sempre há  um toque autobiográfico no que escrevemos. É verdade. Além disso eu vivi 9 anos em Lisboa, estudei cá, legalizei-me e todos os anos tinha que renovar documentos. Conheci bem as filas e o frio no SEF ali em São Sebastião, deram-me um tal de B.I. azul, para estrangeiros, depois disseram que não valia nada, também conheci as instalações de Braço de Prata e finalmente a Loja do Cidadão. Conheci gente nessas filas, conversei com elas, já levei um bebé ao colo só para passar rápido na fila, porque eu não queria perder aulas e no fundo, queria ser atendido mais rapidamente. Ou seja, também eu vivi esses “esquemas”, e foi muito bom. Hoje acho que isso me fez bem. Eu acho que no fundo gosto desse tipo de experiências. A minha não era dramática, eu era um estudante com os papéis em dia, mas presenciei a casos mais difíceis, com funcionários cretinos que não querem entender a situação das pessoas, que falavam mal com os mais-velhos simplesmente por que alguns deles não dominavam a língua portuguesa, ou por exemplo uma fila enorme que depois continuava por dois lances de escadas. Isso era muito difícil de assistir. Mas a vida é assim mesmo, com desafios e superações. Hoje somos mais bem atendidos e respeitados. A Europa está a melhorar em algumas coisas, é preciso dizer isso.

O que guarda, relativamente ao tema principal desta peça, do longo período que viveu continuamente em Lisboa?

Eu guardo muito boas recordações de Lisboa. É uma cidade onde passei parte da minha juventude, onde me formei e me deformei, profissionalmente, e onde aprendi muito, mas muito mesmo, sobre o convívio com as outras culturas de língua portuguesa. O que quero dizer com isto e que aprendi sobretudo em Portugal, a distinguir a Língua da Cultura, embora muitos de nós falemos português. Em Lisboa conheci os grandes amigos cabo-verdianos, moçambicanos, guineenses e portugueses que ainda hoje me acompanham, na vida e nas artes. Aprendi a ser mais tolerante com as gramáticas, os sotaques e os comportamentos. E sou mais feliz com essa tolerância. Vejo o mundo mais cultural e respeito mais as diferenças, sem andar freneticamente a confundir a língua portuguesa com as culturas de tanta gente que fala português.

Todas as personagens são circunscritas ao espaço de um “minúsculo apartamento”. De que forma caracteriza o contacto entre os autores de diferentes países africanos de língua portuguesa?

Os escritores dão-se muito bem, felizmente. Há parcerias, mesmo literárias, que nascem quase espontaneamente, e isso me emociona. Somos amigos uns dos outros, citamo-nos, recomendamo-nos, e vivemos a arte de escrever como um espaço internacional e intercultural de amizade. Para mim é um privilégio privar com pessoas que pensam deste modo, que a Língua pode ser um espaço, que as fronteiras podem ser brincadeiras sem importância nenhuma.

Várias personagens são definidas da seguinte forma - “J.J. Mouraria - São tomense já português”. É difícil delimitar hoje a fronteira de contaminação / aculturação?

Eu penso talvez que o conceito de aculturação muitas vezes é visto como perda de algo… E isto pode ser errado. A contaminação interessa-me mais, a positiva. O direito à contaminação cultural autorizada e procurada, o direito ao convívio cultural sem rótulos, a ideia de que a pessoa pode ser o que bem entender, e caber a si próprio decidir a sua natureza interna. Uma vez que a sua nacionalidade depende de documentos que não estão sempre ao seu alcance. E eu acho que conheci, em Portugal, santomenses já portugueses, ou outra coisa do género. E que essa pessoa seja feliz, celebre a sua cultura, a que já tinha e a que quis adquirir. A Europa é isso hoje em dia. Só os xenófobos não querem ver, aceitar.

O que falta fazer, na sua opinião, em termos de uma maior abertura e diálogo entre os vários países de língua portuguesa?

Existe uma abertura e diversos diálogos. O que talvez faça falta é que esse diálogo produza resultados culturais mais visíveis, mais interessantes para os artistas e o público. A materialização desse diálogo, permitir-nos-ia, a todos, usufruir mais da cultua do outro, saber mais, assistir e escutar mais. Falta, portanto, mais apoio financeiro e mais adequação nos programas culturais. Mas já começou a acontecer, esta consciência de fazer circular a cultura entre todos os espaços de língua portuguesa. Mesmo a nível da comunicação social, a circulação da informação é muito mais fluente. Em Portugal, por exemplo, a RDP-AFRICA teve um papel importantíssimo quanto a isso.

O que mudou, ou pode ainda mudar, nas gerações mais novas relativamente à questão da miscigenação cultural?

Tudo vai mudar, tranquilamente, com o tempo. Mas não devemos estar quietos, tranquilamente, à espera dessa mudança natural. Devemos intervir. A miscigenação é uma realidade, hoje na Europa. Portugal não foge à regra. Existem mecanismos culturais para uma mais fácil adaptação e compreensão das chamadas “outras culturas”. Mas o que será importante entrever, é que essas “outras” já são europeias. A partir daí o barco vai navegar suavemente…

Considera que a nova geração da literatura angolana ainda sofre a sombra da geração de nomes como Pepetela ou Luandino?

A título pessoal, sinceramente, nunca sofri com a sombra deles, pelo contrário, obtive imensa frescura e amizade. Os mais-velhos sempre me aconselharam e me ajudaram. Cabe aos mais novos entenderem e descobrirem a sua via. Na arte, em última instância, só existe a via de cada um. E é assim, e assim será. Podemos beber, escutar, mas há que reflectir e avançar. Descobrir o mundo dentro do nosso mundo. A nova geração de literatura angolana só tem de se preocupar com a qualidade da sua produção e respeito pela coerência e importância dos seus sonhos. O resto, virá por si.

Os vivos, o morto e o peixe-frito é uma comédia ou uma crítica, recheada de ironia?

Fica difícil, sobretudo para mim, rotular. Não sei se será uma comédia… É um texto arejado, talvez com momentos de humor, mas gosto de pensar que tem outras coisas, outras reflexões que não esses momentos de humor quase linguístico. Há ali uma retratação que me pareceu importante fazer, algumas pinceladas em fenómenos que vemos e que sentimos e que urge dizer aos outros. O respeito pela cultura de cada um passa pelo facto de a aceitarmos, sim, mas é mais bem recebida, essa outra cultura, se for entendida, e talvez até vivenciada. E é disto que se trata a Europa hoje em dia: que os africanos entendam as regras do jogo e que possam contribuir para um jogo melhor. E que amanhã, os nossos descendentes, assumindo a sua ascendência, possam simplesmente ser europeus. Com tudo o que a Europa no futuro vai ser e ter. Com todas as trocas e todos os afectos. Eu acho que minha peça é uma pequeníssima pincelada sobre a vida dos africanos em Portugal.

Estes seus últimos contos estão embebidos de uma visão cinematográfica…

Sim, há ali momentos que quase poderiam ser descrições cinematográficas. Eventualmente as coisas inter-influenciam-se. Nesse documentário vou usar muitas referências literárias. Há um personagem que está sempre a ler poemas. Para mim, dentro da cultura, as coisas têm de estar sempre ligadas entre si.

A polissemia que se encontra nas suas personagens e nas suas obras é consequência da redescoberta do valor da palavra?

Interessa-me sobretudo o objectivo da história, para além de todos os utensílios para a construir. Se crio situações cuja interpretação é mais dúbia é porque não quero propositadamente tornar as coisas explícitas. Cada um é livre de ler como quiser.

Como é que reage ao papel da língua como o chamado ‘cimento’ do espaço lusófono?

Não me incomoda nada essa tendência porque de facto o que há em comum entre estes países é a língua. Não sei muito bem o que é isso de «espaço lusófono». Acho que é uma designação política que inventaram e que tentam sedimentar. O que é certo é que a língua é aquilo que todos temos em comum.

Quando falamos da lusofonia podemos também cair no erro de ignorar as várias culturas que existem em cada país. No entanto, a escrita de Ondjaki é uma escrita no e sobre o mundo…

Todas as escritas são dadas e abertas ao mundo, mesmo as culturalmente mais localizadas. É muito fácil partir do particular para o universal. É preciso é querermos as coisas que às vezes não são explícitas.

O mercado editorial está cada vez mais aberto a autores africanos. Como é que vê esta aposta crescente?

Quero sobretudo que as pessoas não se afirmem como escritores africanos mas como escritores simplesmente. O que tem que afirmar as pessoas é a qualidade da sua obra e não a sua nacionalidade ou eventualmente a cor da sua pele.

Em Ynari: A Menina das Cinco Tranças (2004) diz: “Sempre gostei muito das palavras, mesmo daquelas que ainda não conheço”. A reinvenção de palavras pode ser uma forma de exaltar a miscigenação?

O escritor, o poeta, o artista está à espera de momentos que ainda não conhece mas desconfia, induz, pressente e procura. Claro que a invenção de palavras pode ser uma simbologia para a invenção de misturas culturais que acontecem hoje no mundo.

Ondjaki surge num movimento da literatura angolana pós-literatura de combate. Sente-se, de algum modo, vítima das lutas partidárias ou civis de Angola?

Não, de modo nenhum mas também porque me procuro afastar de acções políticas como também dos efeitos que a política possa ter ao nível da minha obra. O combate continua, mas o combate é outro: o combate social, pela diversidade, pela igualdade, pelo respeito cultural, contra o racismo.

 

(conversa efectuada em 2007)

 

por Ricardo Palouro
Cara a cara | 6 Agosto 2010 | africanos em Lisboa, literatura angolana, Ondjaki, palop, teatro