Entrevista a Pepetela
Júlia Dias Carneiro entrevistou Pepetela para a BBC Brasil quando o escritor angolano estava na Bienal do Livro, no Rio de Janeiro, para o lançamento do livro O Planalto e A Estepe.
Como o senhor vê as relações entre Brasil e Angola?
As relações estão mais desenvolvidas do ponto de vista político e económico, e também no trânsito de pessoas de um lado para o outro. Nesse aspecto deveria haver uma maior fluidez. Nem é por mal, mas por uma questão da burocracia angolana, demora-se muito tempo para conceder vistos. Ultimamente, o Brasil também está retaliando. Agora, um angolano tem de pedir o visto brasileiro com um mês de antecedência. É a retaliação, também não resolve. Prejudica até empresas brasileiras, cujos trabalhadores têm dificuldade em ir trabalhar lá. Prejudica Angola, portanto, porque a empresa não está a trabalhar como deveria. Mas penso que a parte cultural é onde há menos relacionamento, e deveria ser mais intenso. É verdade que alguns escritores (angolanos) vêm ao Brasil, e escritores brasileiros vão a Angola, ainda que raramente. Às vezes vai um músico, sai um livro, aparecem algumas coisas. Mas é muito pouco, tinha que ser muito mais.
Ainda há uma disparidade grande na imagem que um país tem do outro?
Existe, sim. Os angolanos olham para o Brasil, mas os brasileiros de um modo geral não olham para Angola. Desconhecem, não sabem que existe, isso é muito desigual. Os angolanos, em seu imaginário, têm o Brasil como uma das referências principais, ao passo que os brasileiros não têm Angola sequer como uma referência.
Durante o debate na Bienal do Livro, o senhor falou no Brasil como “o irmão mais velho”. O que isso representa para Angola?
Mas é realmente, o Brasil é o irmão mais velho. É o país que se libertou primeiro, e que nós sempre vimos o Brasil como um irmão realmente – e não é só a minha família, que já tinha ligações com o Brasil, isso ocorre de um modo geral, entre as populações da costa angolana. Para alguns, era só o país do samba. Para outros, era o país do Pelé. Mas, de qualquer modo, havia um afecto particular pelo Brasil. Por exemplo, nos campeonatos do mundo de futebol, os angolanos torcem pelo Brasil. Isso vem de muito tempo. Será porque é o melhor futebol, o futebol mais bonito? Será só isso, ou será uma reminiscência de tempos antigos, em que a relação com o Brasil era a principal?
O senhor diz que o Brasil “colonizou” Angola durante 150 anos. Como explica essa ideia?
Até à independência do Brasil, 100% das exportações de Angola eram para o Brasil. A maior parte eram escravos, mas também havia outros produtos, marfim, até cera de abelha. Então, a relação com Portugal era feita a partir do Brasil. Os barcos iam de Angola para o Brasil e do Brasil para Portugal. Pessoas vinham até se tratar no Brasil. O primeiro poeta angolano com livro publicado veio tratar-se de uma tuberculose aqui ao Rio de Janeiro. Isso há 200 anos. Mas essa “colonização brasileira” acabou em 1822. Depois da independência do Brasil, deixou de haver essa relação tão próxima.
Neste ano, o mundo está vendo muitas mudanças a partir das revoltas da Primavera Árabe. Como esses movimentos foram vistos em Angola?
O regime assustou-se. Não era caso para susto, mas nitidamente o regime assustou-se. Nós temos um regime presidencialista, com um partido dominante, que nas últimas eleições teve 82% (dos votos). Esse partido (Movimento Popular de Libertação de Angola, MPLA) venceu primeiro a luta de libertação contra os portugueses e depois a guerra civil, que terminou há nove anos, e tem uma máquina que consegue controlar o Estado e o país. A oposição é muito fraca. Nas regiões onde conseguiu tomar o poder militarmente, oprimiu mais talvez do que o governo, e portanto a população afastou-se da oposição. De qualquer maneira, é um governo ainda um pouco autoritário, embora democrático nas palavras e nos textos. E teve medo realmente do que aconteceu no norte de África.
O senhor acredita que manifestações contra o governo podem ganhar força?
Ainda ontem (sábado, dia 3 de Setembro) houve uma manifestação em Luanda. Os números, dependendo dos jornais, vão dizer que eram 100 ou 300 pessoas. Pequena coisa. Mas, em vez de deixarem fazer a manifestação, a polícia impediu quando os manifestantes quiseram sair da praça. Então houve confrontos e alguns feridos ligeiros. Não foi muito violento, mas houve violência, e acho que não é preciso. É melhor deixar sair o vapor da panela do que fechar completamente. Penso que ainda não há condições no país para uma espécie de revolta de rua conseguir grande coisa. Podem partir algumas coisas. É o que aconteceu em Londres, o quebra-quebra. Isso não muda regimes, mas pode acontecer. Mas uma revolução neste momento em Angola, penso que não há condições. O povo não quer confusão. Houve 40 anos de guerra. Todas as famílias sofreram com esta guerra. Ninguém quer violência neste momento. E por isso acho que o governo não devia usar de violência, mesmo que ligeira, para com 300 manifestantes que fossem. Deixem fazer manifestações, deixem fazer todos os sábados, é bom.
A presença de empresas brasileiras está crescendo em Angola. Qual é a percepção disso no país?
É bem aceite, as empresas brasileiras têm um bom prestígio. Houve uma mudança grande. As primeiras empresas que tiveram contratos com Angola eram comerciais, quiserem ganhar dinheiro rapidamente, e os produtos eram muito ruins. Isso fez com que durante anos os angolanos não quisessem importar do Brasil. Diziam que os produtos de Portugal podiam ser mais caros, mas eram melhores. Isso começou a ser resolvido. Mas curiosamente, talvez haja mais produtos brasileiros em Angola sendo levados pessoalmente do que através de uma exportação legal. Há muitos voos de Luanda para o Rio de Janeiro e São Paulo. Os voos chegam cheios de gente que vêm comprar coisas aqui (no Brasil), enche duas malas e vai vender lá. Sobretudo roupas ou adereços. Pulseiras, colares, aqui no Brasil são baratos que acolá. Há muita gente vivendo disso, fazendo a ponte aérea das mercadorias. Isso também é uma forma de relacionamento.
O crescimento da presença económica do Brasil gera algum tipo de resistência entre os angolanos?
Não, isso não existe. Mas esqueci uma coisa importante. Há uma relação que também é desigual, da televisão. Nós lá vemos a Record, a Globo, e agora a Bandeirantes também. As telenovelas passam constantemente. Aqui,
evidentemente, não se vê televisão angolana. Há também uma forte presença
brasileira na religião, nas igrejas evangélicas. Principalmente da Igreja
Universal do Reino de Deus, que tem centenas de templos em Angola. Cada um
pode ter a sua opinião sobre religiões, mas as pessoas que crêem têm uma boa visão do Brasil. É um refúgio espiritual que os brasileiros estão levando. Portanto, isso também reforça a vontade dos angolanos virem cá conhecer.
A presença da China vem crescendo em países africanos, tirando espaço de países europeus e dos Estados Unidos. Esse crescimento é especialmente forte em Angola. O que esses investimentos representam para o país?
Isso permitiu que Angola dissesse ‘não’ ao FMI. Aliás, o FMI já estava em Angola sob condições que o país tinha imposto. Mesmo assim, depois dissemos não, não precisamos do vosso dinheiro, não queremos, acabou. Por esse lado, (a presença da China) permitiu uma certa independência. A China está fazendo muita coisa lá no nível da construção civil. Construindo edifícios, ferrovias, pontes, cidades inteiras. Ainda agora foi inaugurada uma cidade nova, absolutamente nova. Fundamentalmente, o que os chineses fazem é comprar o petróleo e construir. Em 40 anos de guerra, as estradas estavam todas estragadas, as pontes estavam partidas. Hoje não, já se pode circular para todos os lados do país em estradas asfaltadas, com boas pontes. Neste aspecto foi bom. Embora haja alguma desconfiança sobre a qualidade das obras dos chineses.
Há uma preocupação de essa influência estar crescendo muito em Angola?
Eu noto que há muita preocupação em relação aos chineses vinda de meios europeus. Sobretudo os franceses e os portugueses – que são os que têm mais interesses em Angola – estão constantemente falando da presença chinesa. Claro, os portugueses levaram uma grande pancada na construção civil. As empresas chinesas trabalham mais depressa e muito mais barato. Eu até penso que não melhor, mas são mais rápidas e mais baratas. A França está vendo a China entrar em África e está perdendo completamente a sua influência no continente. E a China é uma alternativa a esse poder francês, de maneira que (os franceses) fazem uma campanha sistemática contra a China, em livros, jornais, televisão, cinema até. É uma campanha incrível, mas acho que não adianta muito. Não sei o que o futuro vai dizer, depende muito da política da China, o que eles querem. Eles por tradição não são colonizadores. Eles penetram em todo o mundo, fazendo negócios. Não me parece que queiram um domínio, pelo menos por enquanto. Agora, claro que vão se opondo aos americanos. É um novo foco. É bom. Antes só havia um, era só um império. Agora há outros focos, Índia, China, os tais Brics, o Brasil… Isso distribui um pouco melhor o poderio mundial.
Entrevista publicada no site da BBC Brasil.