If Truth Was a Woman… entrevista a Eurídice Kala
Quais foram as influências artísticas na sua infância?
A minha infância foi um campo de treino para o que faço agora. Embora a minha mãe (Ana Arrone) não tenha sido artista, expos a arte – trazendo-me livros e música - era uma referência para o gosto que vim a desenvolver em termos sonoros e que consequentemente influenciou as minhas preferências visuais. Ela contava a sua juventude - e refletia por si a sede de cultura que envolvia a música e arte nos primeiros dias Moçambique independente. Escutávamos Bob Marley, Kool and the Gang, [ Queen ] Freddy Mercury, Prince, e muitos outros. Ela foi capaz de fornecer-me um mundo inteiro para onde eu fugia sempre que o mundo real se tornava muito áspero ou estéril. E esta entrada num espaço transcultural influenciou a abordagem para a vida que tenho neste momento. Embora tenha perdido a vida nos meus últimos anos da adolescência, foi capaz de incutir uma curiosidade insaciável em mim. Ela era magia…
O seu trabalho Will See You In December…Tomorrow retrata uma conversa com seu avô sobre suas memórias de Moçambique colonial. Que histórias quer contar através das diferentes linguagens – fotografia, vídeo, desenho?
A minha relação com o meu avô (Armando Arrone) permaneceu comigo ao longo dos anos. Sempre fomos amigos e entre partidas de futebol e ou tempo na sua oficina de carpintaria onde eu experimentava madeira, enquanto ele contava histórias de Moçambique na era colonial. Eu sou uma filha guerra fria, nasci num período muito difícil para todos os moçambicanos. Maputo encontrava-se lotada por funcionários da ONU e o país estava à beira da democracia. Herdei uma cidade e um país que se formara sem considerar pessoas como eu. Nossa constituição e as leis levaram muito tempo para se desenvolver ou até ultrapassar o estatuto precedente - por exemplo quanto a relacionamentos de mesmo sexo, a lei só foi revista em 2015; ou as leis de estupro que descriminalizam o agressor se ele se casar com a vítima; ou, por último mas não menos importante - a revolução no campo dos direitos da família que eram, até muito recentemente, regidos pela Igreja Católica. Leis obsoletas definidas durante o tempo colonial ainda permeiam a minha experiência como moçambicana hoje e, ao mesmo tempo, fornecem dicas sobre os tempos coloniais. O trabalho Will See You In December… Tomorrow (WSYDt) espelha essas conexões com a nossa história colonial e explora o que foi (in)conscientemente apropriado ou adotado na construção de uma nação.
Numa entrevista, Samora Machel (primeiro presidente de Moçambique independente) foi questionado se achava que o movimento de libertação e partido político Frelimo agiu muito cedo nas intervenções contra o regime. Sua resposta foi que nos havíamos agido num momento oportuno, mas que os ideais da Frelimo foram perdidos após a independência. Como resultado, não temos um forte sentido de identidade, e talvez seja por isso que haja pouco desenvolvimento nas artes e na cultura do país. Além disso, a estratégia de ter adoptado o português como língua oficial e franca, terá reduzido a possibilidade de diversidade em muitos contextos institucionalizados, resultando em burocracia e demagogias herdadas pelo regime. WSYDt coloca em primeiro plano diferentes narrativas - por exemplo, ligações com o Oriente que começaram entre os séculos XI e XII, com os comerciantes da Índia e da Indonésia trazendo tecidos (capulana), especiarias, etc contrariando assim uma história de binária entre o ocidente (Portugal) e Moçambique. Por consequência da nossa apropriação da língua em contextos institucionalizados como por exemplo o espaço académico, reduzem muito outras ligações com o resto do mundo. Faço a minha parte ao questionar essas influências coloniais. As histórias que conto são sobre aqueles que desafiam o arquivo deste cânone ocidental - querem intervir e expandir esse arquivo, a fim de formar novas conexões com nossas vidas presentes.
Não trabalha apenas como artista, mas também como curadora e pesquisadora, por exemplo, para a plataforma PAN!C. Qual é a sua perspectiva quanto a colaborações e redes culturais?
Fazer arte é difícil em qualquer lugar, e especialmente difícil no continente africano. O meu primeiro instinto é ser artista e ser o mais despreocupada possível. No entanto, quando se é uma jovem negra da África (exceto, talvez, África do Sul e Nigéria) é muito, muito difícil. Em Moçambique não temos estruturas para apoiar artistas. Foi por isso que me mudei para a África do Sul, onde aceitei uma posição na Visual Arts Netwok of South Africa (VANSA). Aqui estabeleci vários programas como o PAN!C, que visam estimular a produção de arte e a sua circulação em todo o continente. Por exemplo, o projeto Boda Boda Lounge - um festival de vídeoarte – tem sido fundamental na criação de plataformas que são inclusivas. Aprendi que através da partilha e participação, a diversidade tem possibilidade de acontecer. É complexo para mim lidar com uma representação homogénea da África e da cultura africana - de uma unidade superficial definida pela utilização de um determinado tecido (capulana) para as tendências da moda, cabelo natural ou por afrobeat, etc. Capulana tecido, por exemplo, não é originalmente do continente, mas representa intercâmbios interculturais que revelam uma história mais ampla. Os estilos musicais variam muito do Cairo à Cidade do Cabo, que vão desde vanguardistas, como o etnomusicólogo Luka Mukavel (de Moçambique) para movimentos como o Pungwe (Zimbabué- África do Sul). Através de colaborações tem-se vindo a estimular a criação, a circulação e intercâmbios culturais.
Considera-se feminista. Como é que este posicionamento informa a sua prática artística?
Agora sou feminista; mais especificamente, sou feminista negra do continente africano. O feminismo em Maputo pode ser ligeiramente diferente de outros contextos - por exemplo, as mulheres aqui que não se depilam, mas não estão fazendo isso como um desafio ao patriarcado - é simplesmente uma coisa cultural. Hoje, quarenta por cento do Parlamento moçambicano é composto por mulheres de vários partidos e culturas, mas isso não se traduz em vasta inclusão de mulheres em posições de poder nos vários sectores. O meu feminismo sublinha as condições de um modo localizado, as nossa incapacidade de atravessar situações adversas e tornar visível a falta de impacto sobre a vida dos moçambicanos mesmo como um sistema político aparentemente progressivo.
Como é a sua participação na Dak’Art 2016?
A minha instalação E se a verdade fosse mulher_ porque não? faz conexões entre a escravatura e tempos coloniais. Mais tarde, com a presença de elementos como o vestido de casamento branco e uma parede branca. Este trabalho pretende desafiar a construção da brancura como a ideia de pureza, criando imagens que revelam vários recursos do continente que são todos brancos - marfim, algodão, pó, etc. Mas também chega ao tempo presente e olha para os heróis africanos - a construção do herói de forma individual - e as possibilidades que o acervo tem de incluir outros parceiros, e eu reflito apresentando nomes dos seus cônjuges na conversa, no entanto, aberta a outras acrescentos e a sermos os autores das nossas histórias.
Publicado originalmente na plataforma Contemporary&, a 05/05/2016.