Nova Luanda embalada - Paulo Flores
Paulo Flores é um cantor angolano e uma referência na geração de jovens artistas que trabalham a música popular moderna. Falámos com ele quando lançou «ExCombatentes», três discos que marcam uma viragem na sua carreira. Flores mergulha o Mundo em Angola e leva a música mais longe do que poderíamos esperar.
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Tal como Angola está a construir relações intensas com o exterior, a música de Paulo Flores parece reflectir esta nova fase do país. Ambos estão a actualizar-se, a fundir-se com o Mundo e a criar novas realidades. «ExCombatentes» é o nome da trilogia que lançou em 2009, uma verdadeira pedrada no charco. Pela primeira vez gravou, compôs e cantou as músicas e os ritmos que há muito tempo queria trabalhar mas que a sua carreira ligada a uma certa linha da música popular não permitia. O resultado são músicas intensas, apaixonadas e que elevam a música angolana a outro patamar.
Baptizou os discos de «Viagens», «Sembas» e «Ilhas», de acordo com a história que cada um encerra. Existe um fio condutor e pontos em comum entre todos, embora cada um tenha uma direcção. O primeiro nasce de uma viagem que fez a alguns países africanos como o Chade, Zimbabwe ou Gabão e da música que aí ouviu. Convidou o brasileiro Jaques Morelenbaum, usou instrumentos pouco comuns na sua música como o vibrafone ou o piano Rhodes, introduziu violões africanos tocados por Manecas Costa, cantou em crioulo cabo-verdiano e avançou com segurança num funk.
Contudo, dos três discos, «Sembas» é o mais transgressor. “Em Angola vão dizer que não é semba e isso é a coisa mais fantástica.”, diz-nos em entrevista. Para isso contribuem os arranjos de cordas de Morelenbaum ou Nástio Mosquito com spoken words em ritmo kilapanga. Flores explica-nos o contexto: “O disco tem aquele semba que se faz de forma tradicional mas também aquele que já é um semba-bossa. Lembro-me que «Meu amor quando me beija» foi uma espécie de sonho que era eu a cantar, em Angola, nos anos 30, a preto& branco, com um daqueles microfones e uma orquestra. Sou filho disto tudo, da bossa nova e de todas estas influências.” Flores está a atravessar, ou melhor, a entrar numa nova fase musical que inclui declaradamente a experimentação, o risco, a inovação e a mistura de influências sem descaracterizar-se.
O interesse dos estrangeiros por Luanda está em franco crescimento, enquanto ela, a cidade, implode dentro dos seus limites. As falhas constantes de luz e água contrastam com uma velocidade de construção alucinante, um tráfego comparável ao de metrópoles como S. Paulo e um nível de vida elevado que a levou a ser ,em 2007, a cidade mais cara do mundo. “Lembro-me que há seis anos as pessoas saíam do emprego e iam à praia. Para todos nós havia uma referência que era o Tempo… esse espaço existia. (…) Hoje Luanda é como Manhattan, ou pior.”
Da antiga Avenida dos Combatentes da Grande Guerra (Comandante Valódia depois da independência), Paulo Flores vê da janela uma cidade em transformação onde alguns miúdos vendem sabonetes e camisolas junto à estrada enquanto outros grafitam Mona Lisa nas paredes. “A música africana, ou África, vive muito das imagens que os outros têm dela. Nestes discos quis fazer a imagem que nós, vivendo nos Combatentes com todas as suas condicionantes, temos de nós próprios e dos outros que têm imagens de nós. No fundo é tentar, pela primeira vez, ter uma abordagem com esta liberdade de dizer ‘eu tenho uma visão do mundo e faço parte desse mundo também’. Esta é a principal característica daquilo que entendo que foi a minha criação.”
Flores pôs-se à prova e entrou noutra pele para dissociar-se de determinados estereótipos e rótulos. Era urgente fazê-lo agora. “No mundo inteiro as pessoas vivem com medo de fazer alguma coisa musicalmente. Investem milhões de dólares mas não se vê nada audacioso, ninguém está a criar, falta carisma, iniciativa…liberdade de expressão (…) Perde-se toda a autenticidade e a possibilidade do artista fazer algo mais singular. Quero mesmo pisar terrenos onde existe uma insegurança.”
O terceiro disco da trilogia, «Ilhas», oscila entre Portugal, Brasil, Cabo Verde e Angola. Foi dada primazia às influências que marcaram a identidade e carreira do cantor. Convida Mayra Andrade que canta Vinicius de Morais, toca um blues influenciado por Muddy Waters, vai buscar Manuel de Novas (que Cesária Évora tantas vezes canta) e passa por Angola das décadas de 60 e 70 com Murimba Show.
Se o mundo tem os olhos postos na economia de Luanda, a cidade retalia poderosamente através da música. E Paulo Flores é incontornável para a construção daquele que é, segundo as suas palavras, “o novo Homem angolano”.
Fotos de Iuri Albarran
Entrevista feita em 2009, Lisboa, com a participação do Miguel Gullander.