Pacto com o diabo no bairro Buenavista
Entramos num velho pátio de uma das zonas degradadas do bairro Buenavista, em Havana. Uma senhora em cadeira de rodas, com uma perna enrolada em trapos, recebe-nos com um sorriso afectado por metade da dentadura. O cenário não é confortável nem acolhedor. A entrada feia e escura que conduz ao pátio, o ar cansado e decadente da velha mulher que sustém no colo uma caixa com moedas e outra com cigarros de tabaco negro, marca Popular, que vende à unidade. Um olhar de soslaio para dentro da casa revela um cenário condizente. O aspecto não é dos melhores, mas comum aos vários bairros da capital cubana. A cidade está praticamente toda assim: a cair de velha.
Mas é aqui o local acordado para encontrar o tata de uma das tribos congas. De olhar fixo, como quem quer saber sem perguntar, aponta para dentro de um grande espaço contíguo ao pátio. É ali que tudo acontece: os rituais e trabalhos que o líder da tribo faz em nome da sua religião. “Se acreditas em Deus estás feita aqui dentro; o meu pacto foi feito com o Diabo”.
Os paleros, praticantes da religião Palo Monte ou Regla Conga, têm fama por toda a Cuba de serem gente que só pratica o mal, fazendo trabalhos judios — macumbas preparadas contra alguém, seja para tirar sorte na vida, arranjar uma doença grave, atingir a família ou subjugar o pensamento. O tata Mendoza assegura que os seus trabalhos nunca falham, mas ressalva que nem só de trabalhos maus se compõe o palero: “Se quiseres ajudo-te a vencer uma batalha pessoal e a ter sorte num projecto. Os paus que uso servem para tudo, cada um tem uma função específica e a energia deles não falha. A sabedoria do tata é tão importante como tudo o que ele usa para conseguir os seus objectivos. Mesmo com todo o material herdado dos meus antepassados, se não souber usá-lo não me vai valer de nada. A experiência e a sabedoria são tudo aqui dentro.”.
A Regla Conga
É uma das religiões trazidas para Cuba por escravos africanos, maioritariamente do Congo e da Nigéria. É conhecida por usar a energia de paus mágicos e de seres mortos. A língua que rege os rituais é o bantu e neles manipulam-se pequenos paus ou troncos de diferentes árvores. É-lhes dado um nome consoante a sua função: salpafuera tira alguém indesejável dos caminhos; justicia encarrega-se de repôr justeza a uma situação; yo puedo más que tu confere poder num conflito interpessoal; rompe saraguey corta a má sorte; para mi traz aquilo ou quem mais se quer em certo momento. Além dos paus, a grande magia é feita através da nganga do mayombero ou macumbeiro, onde está concentrado todo o seu poder, toda a sua força.
Nganga é o nome da imagem e dos atributos próprios de cada divindade conga. O Diabo não é uma divindade, mas esta religião trabalha com os mortos e com a figura do Mal. Sem esta não faz sentido falar em Palo Monte. Cada nganga contém um segredo, um mistério que só o seu pai (tata) conhece e pode utilizar, um segredo que pertence a cada tribo e a diferencia de toda e qualquer outra na hora de entrar em acção.
Dentro delas — e a informação não foi conseguida pelo tata Mendoza, que prontamente respondeu que sobre isso não falava — estão ossos humanos, restos de animais, terra de cemitério, vinte e um paus, ervas e outras propriedades da natureza que permanecem em segredo apesar das tentativas em furá-lo. No topo da nganga de Siete Rayos, divindade que se rege pelo fogo, usada para as magias mais difíceis e de resultados rápidos, vêem-se ossos e uma caveira humana. Tão arrepiante quanto magnética, ela encerra em si um espírito, o poder de um morto. O aspecto da nganga de Mendoza é terrífico: tem grandes cornos e está toda ela embebida numa cor negro-petróleo que parece misturada com sangue. Explica-me que é a de Satanás, a mais forte. Trabalha-se com ela na Sexta-feira Santa. É a mais assustadora e estranha de todas as que estão dentro do espaço.
Cuba é assim
O ritual começa com cânticos em bantu. Acende-se o primeiro charuto e abre-se a primeira de cinco garrafas de rum que durante o ritual se vão bebendo. O rum ou a aguardente são um elemento imprescindível em qualquer cerimónia, seja na religião Conga ou na Yoruba (mais comummente conhecida por Santeria em Cuba ou Candomblé no Brasil), assim como as velas, o tabaco cubano, os dizeres, os cantares em dialecto e o bater de palmas que devem estalar alto.
O momento não é para perguntas inoportunas. O clima não é tenso, mas a energia está toda à flor da pele. Mendoza e os seus quatro afilhados religiosos cantam a plenos pulmões dando as boas-vindas aos principiantes e apresentando-os à nganga diante da qual se sentam. Um privilégio que não pode passar em vão e que os leva também ao canto, em forma de agradecimento e como sinal de pertença, consoante se entendem as palavras por eles expiradas com toda a sua força de paleros. Um dos rapazes expira o fumo do charuto para Siete Rayos, envolvendo a caveira que a encima num nevoeiro ténue e sinuoso. Passa-se a garrafa continuamente. Bebem-se largos tragos. Numa primeira abordagem à Regla Conga, há a sensação de participar num ritual em pleno coração africano, no qual as fogueiras e o abanar frenético dos corpos ajuda a marcar o ritmo que emana dos cantares e tambores que fecham um círculo de gente em transe. É dentro desse círculo que nos encontramos, mas na cidade de Havana. Cuba transpira África Negra, as raízes e as tradições religiosas, aqui, parecem não desvanecer com o tempo. As línguas bantu e yoruba são tão conhecidas na ilha como o espanhol e a maioria conhece-as e canta-as, mas apenas em rituais religiosos. A maioria também pratica a Santeria ou a Regla Conga. Todas as famílias têm no mínimo um elemento envolvido numa delas ou em ambas.
Laura, a iniciada em Palo Monte que nos trouxe a Mendoza, explicou, antes do encontro, o valor simbólico do galo nas festas congas, de como este animal ressuscita e como o seu sangue serve de veículo de ligação entre os espíritos e o mayombero. O galo, tal como o chibo, são sacrificados e oferecem-se às divindades congas. Durante as mpungu (festas profanas), passam-se de mão em mão por todos os elementos presentes na cerimónia, do mais novo ao mais velho, dos homens às mulheres. O tata agarra o galo pelas patas, de cabeça para baixo, e passa-o de alto a baixo pelo corpo de cada pessoa enquanto se entoam rezas e cantares específicos. É desta forma que se faz a limpeza dos corpos e dos espíritos. Durante todo este processo o bicho não se mexe, não tenta soltar-se, não protesta nem bica ninguém. Parece morto. É poisado no chão diante de uma vela e do altar. Permanece imóvel. Nem quando lhe atiram água para cima ou quando batem fortemente no piso com uma catana o animal reage. O momento impressiona. O galo não se esquiva e mantém os olhos fixos.
Explicam-nos depois que não se mexe porque sabe que vai morrer e não lhe adianta tentar fugir. Verdade ou não, o momento pareceu levar o galo ao transe. A sequência de catanadas no chão e a água que lhe jorram por cima não servem para justificar a passividade ou o facto de estar hipnotizado. Servem antes para revelar o grande momento seguinte, o ressuscitar. O pai da festa, deitado no chão, de tronco nu suado do calor que o rum impõe, grita ordens junto à cabeça do galo para que se mexa e comece a caminhar. E o bicho salta de rompante a esvoaçar sala fora, a cacarejar, assustado e sem direcção, atordoado. O galo tem que ressuscitar para finalmente ser sacrificado e o seu sangue escorrido para cima da grande panela de ferro de três pés que encerra a nganga da tribo. O pescoço e as patas são cortados, o sangue jorra, as patas postas dentro da panela e a cabeça colocada em cima da caveira. O ambiente mantém-se festivo e ardente, o rum e os charutos brindam as cantigas que seguem de enfiada.
Com o chibo, os momentos conseguem ser ainda mais impressionantes. Além de cada um carregar o animal nas costas por alguns segundos — e todos têm que fazê-lo — o seu sacrifício é intenso e unifica o grupo. Tal como sucede com o galo, o chibo não tem qualquer tipo de reacção para se soltar de mão em mão. Permanece impávido enquanto cada elemento o recebe, como se de um boneco de trapos se tratasse. Depois de cortada a cabeça, é lambido o sangue para que seja recebida a sua força.
Os símbolos mágicos congos são uma característica que diferencia esta religião das restantes. Cada tribo tem escritos particulares que se usam nas tábuas de adivinhação, nos trabalhos bons através da tinta branca e nos trabalhos judios pela cor preta. A inscrição deixada no trabalho identifica a tribo e o objectivo da bruxaria. O símbolo é, em si mesmo, um elemento dinâmico do sucesso do trabalho. Não é somente uma marca secreta, ele encerra o mistério do seu clã e define o tipo de trabalho que se pretende. Nunca uma magia terá efeito sem que lhe seja colocada a marca, e é de tradição fazer as macumbas às terças-feiras para terem mais força. É o dia do Diabo. “A bruxaria pode ser preparada só com o pó do trilho que alguém pisou. Sei muito bem usar essa poeira solta dentro da nganga da tribo”, explica Mendoza. Pode acrescentar-lhe ossos humanos, marcá-la com carvão e largá-la num local específico à meia-noite. Sete dias mais tarde vai levantá-la e faz um juramento com o Diabo contra a pessoa que quer atingir. Mas, avisa, quem não cumpre a palavra com o Diabo pode ser castigado com a morte.
A cerimónia continua com os participantes devidamente excitados pelo álcool e impacto da voz do tata, assustadora por vezes, tal é o poder que o timbre — minuto a minuto mais forte e rasgado — transporta. Emana calor e energia como se soltasse lava pelas goelas. Canta e grita, abre os braços e puxa todos para dentro do círculo que fazemos sentados no chão, para que nem um pingo da energia ali concentrada flua fora do seu controlo. Dentro das quatro paredes há partilha e comunhão.
O rum e os charutos passam-se com prazer a cada companheiro, ri-se em cumplicidade, entoam-se as cantigas com soltura e empenho, trocam-se beijos como em família. O ritual é deles, tudo o que ali dentro se passa é vivido em plenitude naquele momento, e intensamente.
Por fim começam as confissões e adivinhações. Mendoza aborda certeiro como uma seta os afilhados e os convidados. Fala da privacidade, das mágoas, desejos, doenças e vinganças dos participantes como se respirasse pela pele de cada um. É tempo de escancarar a vida e de esconder nada. Dentro daquele pátio “a vergonha não existe, só gente”, responde perante o pudor dos convidados. E remata, para que não restem dúvidas: “a vergonha é sinónimo de inocência, e aqui dentro não se aceitam crianças”.