Pós-apartheid. Pós-house. Isto é Spoek Mathambo
Spoek Mathambo é Nthato Mokgata: músico, produtor, DJ e designer gráfico de 26 anos, líder de uma verdadeira vaga de inovação musical saída do continente africano. Divide-se entre vários projectos musicais, como Sweat.X e PlayDoe, mas é a solo que este homem dos mil ofícios nos visita, trazendo consigo a sua banda para invadir o Lux, em Lisboa, no dia 14 de Abril. Numa entrevista à FACT magazine, aqui partilhada com o BUALA, Spoek fala da inescapável hibridização de géneros e da entusiasmante mistura da herança rítmica africana com linguagens electrónicas.
Definir a música de Nthato Mokgata, 26 anos, mais conhecido por Spoek Mathambo? Não é fácil. Afro-pop-funk, zulu-dubstep ou pós-punk-tecno poderiam ser algumas hipóteses. No excelente álbum do ano passado “Mshini Wam” havia tudo isso e muito mais, mas deixemo-nos de poesias. A música de Spoek Mathambo, natural da África do Sul, é simplesmente pop, sem os complexos a que muitos associam o termo.
Música pop vital, dinâmica, mutante, capaz de respirar estímulos à sua volta, fazendo a ponte entre o kwaito sul africano e a cultura electrónica global. Até há pouco tempo Spoek era a típica figura da cultura DJ, homem de mil ofícios, capaz de cantar, passar discos ou criar imagens como designer gráfico, mas agora assume-se cada vez mais como líder de uma banda, capaz de criar espectáculos vibrantes. É isso que se espera que aconteça no Lux, Lisboa, na próxima 5ª, em mais uma noite Hard Ass, que conta ainda com J-Wow dos Buraka Som Sistema, Diamond Bass e o inglês Seiji.
Spoek Mathambo constituiu uma das provas de que é na África do Sul que está a ser produzida alguma da música mais vibrante do momento, reflexo de uma geração pós-apartheid que se reinventou nos últimos anos.
Antes de ter lançado o álbum o ano passado, já era conhecido por outras colaborações, de Sweat.X a PlayDoe. É diferente criar sozinho?
A principal diferença é que sou eu que tomo conta de todo o processo criativo. As influências são diferentes e acabo por integrar mais sonoridades da África do Sul no meu projecto pessoal. É isso que me interessa agora.
Mas agora lidera a sua própria banda ao vivo. Como é que foi adaptar temas criados em laboratório solitariamente para o colectivo em palco ?
No início foi estranho, mas depois percebi que a reprodução exacta não era possível e começamos a não ter medo de procurar outras soluções. É isso. Gosto de espectáculos com uma grande energia e isso é possível com estes músicos. Somos todos da África do Sul mas ao mesmo tempo temos um passado muito diferente o que acaba por ser interessante. Uns ligados ao hip-hop e à electrónica e outros ao punk e rock. Será um concerto muito dinâmico em Portugal, com uma mistura de temas do primeiro álbum e alguns do próximo.
É de Joanesburgo, mas vive entre a Suécia, de onde é a sua mulher, e vários outros países, quando anda em digressão. Desde que começou a circular pelo mundo a sua visão da África do Sul transformou-se?
É inevitável não é? Diria que comecei a gostar ainda mais da África do Sul desde que comecei a viajar com regularidade. A verdade é que sinto uma energia em África, e não só no meu país, que não sinto em muitos locais neste momento.
Recentemente fez uma versão de “She’s lost control”, uma canção original dos Joy Division. O período pós-punk dos anos 80 interessa-lhe?
Gosto muito dos Joy Division, mas não diria que sou um entendedor de pós-punk. O que me interessa nesse período, nessa energia, é poder encontrar pontos de contacto com aquilo que se passa no meu país com o pós-kwaito ou o pós-house da África do Sul. É qualquer coisa de negro e rude e, ao mesmo tempo, é música de festa. Gosto dessa aparente ambiguidade. É qualquer coisa que grupos como os Joy Division também acabam por expor. Têm um lado sombrio, mas ao mesmo tempo a sua música acaba por ser muito física. Na África do Sul acontece o mesmo. De repente, estamos num clube de dança, supostamente para fazer a festa e celebrar, mas ao mesmo tempo estamos a ouvir música negra, imbuída pela raiva pós-apartheid. Gosto dessa tensão.
A música moderna da África do Sul já vinha a conhecer algum protagonismo nos últimos anos, mas o facto do campeonato do mundo de futebol se ter realizado o ano passado no país, contribuiu para que uma série de projectos (dos Die Antwoord a DJ Mujava) tivesse maior visibilidade, não lhe parece?
Sim. Desde 2009 que existia um grande interesse à volta do que se ia fazendo no país, mas é verdade que o Campeonato do Mundo, pelo facto de ser uma grande indústria, acabou por dar a ver muitos aspectos da cultura da África do Sul. O país teve muita exposição por isso, mas a verdade é que no campo da música e das artes era o tempo certo. Essa é a verdade. Nos dois últimos anos a cena pós-kwaito e pós-house estava cada vez mais forte. Era apenas uma questão de tempo até as pessoas repararem no que estava a acontecer. E no interior do país também existiu um volte face, com muita gente a interessar-se pela música. As coisas mudaram realmente muito desde 2009. O próprio país mudou e não foi apenas pela reabilitação urbana encetada nos últimos anos. Existem uma série de comunidades artísticas muito interessantes em todas as cidades. É um momento muito dinâmico para o país. Claro que continuam a existir problemas e ainda se sente restos do passado, mas estou optimista.
Para além desses aspectos também existe um ambiente global favorável, com o interesse à volta de músicas como o kuduro, baile funk ou Baltimore club music, ou de nomes como M.I.A. ou Buraka Som Sistema.
Talvez. Mas nem sempre existe uma ligação óbvia entre essas músicas.
Mas todas acabam por ser recriações locais – que nescem em contextos específicos – de linguagens globais, como o tecno, house ou hip-hop.
Sem dúvida, concordo, mas não são músicas recentes. Há vinte anos que existe tecno ou house a desenvolver-se e a transformar-se em África. Aquilo que tenho ouvido de Angola também indicia que o nível tem vindo a subir muito.
O centro do seu álbum é o kwaito, mas completamente transformado e influenciado por linguagens muito diversas, do dancehall ao dubstep.
Vivemos numa época onde é quase criminoso pensarmos em fazer música a pensar neste ou naquele género. Existe tanta coisa. É ridículo alguém dizer em 2011 que vai fazer um disco de apenas uma coisa, até porque hoje em dia tudo se mistura. É uma forma muito arcaica de fazer as coisas, essa de pensar em agradar a esta ou aquela tribo. Hoje todas as tribos se confundem. Não sinto que tenha de escolher uma tribo. Tenho informação e faço o que me apetece com ela, desenvolvendo diferentes sons e muitas emoções diferenciadas. Nenhum ser humano é apenas uma coisa só, porque é que haveria de num disco, que pretende traduzir um pouco daquilo que sou, deixar-me aprisionar por isso?
Sei que anda a preparar um novo álbum. Terá a mesma filosofia?
Sim. O meu próximo album vai sair na Sub Pop e estou a começar a trabalhar nele agora. Parece-me que irá traduzir o mesmo tipo de influências, mas trabalhadas de forma diferente. No primeiro disco a vibração era muito festiva e tinha alguns temas numa linha abstracta. Agora apetece-me escrever canções com uma estrutura mais reconhecível e a partir de um prisma mais pessoal.
Como se sente agora numa editora icónica que historicamente está ligada ao rock, tendo lançado álbuns dos Nirvana aos Fleet Foxes?
Sinto-me muito bem… [risos]. Pensei que fosse uma brincadeira quando recebi o primeiro email deles. Quer dizer, não fazia muito sentido uma editora de Seattle andar a ouvir a minha música, mas era mesmo verdade.
Entrevista de Manuel Valente na FACT magazine PT