Sou Quarteira, entrevista a Dino d’Santiago
Em todos os lugares em que se apresenta, Dino d’Santiago faz questão de reivindicar a pertença a Quarteira. Com um pé nos palcos do mundo e o coração sempre na sua terra natal, o jovem músico lança as versões físicas em CD e vinil do seu mais recente álbum, Kriola, que inclui quatro novas surpresas. Numa manhã de outono, entre gravações no estúdio, conversámos sobre o novo álbum, o movimento Sou Quarteira e o racismo.
Dino, como nasce o Sou Quarteira?
Nasce de uma canção, que escrevi, sentado ao lado da minha mãe, enquanto ela tomava o pequeno-almoço, às seis da manhã, antes de ir trabalhar. A princípio não me saía nada. Mas de repente, dei por mim a imaginar-me nas ruas de Quarteira e começaram a sair os versos:
Sou o cheiro da Avenida no Verão, sou o Blackjack da zona (…), sou os doces da Paixão (…), sou as festas da Checul no seu salão, sou o amor de Pedro entre Laura e Diniz, sou o pastel da beira-mar, que sempre quis,(…) sou o Cavalo Preto que brilhou em Leça da Palmeira.
O BlackJack é a discoteca onde íamos todos quando éramos mais jovens; os doces da paixão são os doces da senhora que os vendia em frente à nossa escola, a Maria Paixão; Cavalo Preto é a praia entre a Quinta do Lago e Quarteira e eu fui viver para Leça da Palmeira quando me juntei aos Expensive Soul; o amor de Pedro entre Laura e Diniz são os amores entre a Escola São Pedro do Mar, que fica entre a secundária Laura Aires e o 1º. Ciclo da D. Diniz. Quando acabei, toquei para a minha mãe, que filmou e eu partilhei no facebook. Às 10 da manhã já tinha mais de mil partilhas de pessoas de vários continentes, da Austrália à França e ao Luxemburgo, da Suíça aos Estados Unidos. Muita gente a comentar e a reviver outras memórias de Quarteira. Ou seja, senti que havia muita gente lá fora a identificar-se com a música.
Mas como passas dos versos da música para um movimento?
Uma coisa leva a outra e depois de um episódio em Londres, em que numa actuação minha, uma rapariga gritou «Dino, sou Quarteira!» e me mostrou como aquela canção tinha ressoado e sido partilhada entre a família e os amigos dela, pensei que tinha de fazer mais alguma coisa. Era uma altura em que os jovens daqui estavam muito descrentes e tinham de sair para as coisas acontecerem nas suas vidas. A cidade ficava fantasma depois do Verão. Comecei à procura, a tentar perceber onde estavam e o que faziam os quarteirenses da minha geração. E encontrei muito talento. Encontrei a Sara Correia — Pakita — professora e Campeã Europeia e Mundial de Capoeira; o Hugo Martins — Dudu— Vice-Campeão Mundial de BMX; o Rui Coimbra, Campeão da Europa de Futebol de Praia e muitos outros. Falei com o Miguel Jacinto, estratega de marketing, que se entusiasmou. A nós juntaram-se a Inês Oliveira e a Naomi Guerreiro e decidimos lançar um movimento. Falámos com o presidente da Câmara Municipal, Vítor Aleixo que nos deu todo o apoio.
O que é exactamente o Sou Quarteira e como funciona?
É uma plataforma de desenvolvimento local e de elevação dos talentos locais, desde o desporto às artes e à ciência. É um retrato de uma geração, que é a minha. Já fizemos um documentário, Sou Quarteira, que será lançado este mês de Novembro. Fizemos também uma exposição, Heróis, sobre os heróis quotidianos das nossas vidas, como o porteiro da nossa escola e a professora Carla Candeias que foi, e é, uma referência para muitos de nós. Ainda hoje, o que sei sobre História, aprendi com ela. Fizemos essa exposição pela cidade, com cartazes enormes, onde apareciam as pessoas que foram marcantes para nós. Há também o Festival de Música, que teve um ano zero, em 2018. Trouxemos o Branko, o Carlão e o Sacik Brow para atuar. Foi um êxito, e em 2019, já tivemos um cartaz bem maior. Aí contámos, entre outros, com Mayra Andrade, Sam The Kid e Mundo Segundo, Allen Halloween ou Mishlawi. Montámos o palco num lugar com significado especial para nós, onde era o bairro dos Pescadores, como referência a um outro tempo. Este ano, por causa das limitações aos espetáculos, decidimos colocar o foco nos talentos locais e desenvolvemos um conceito diferente: À Moda Quarteirense, em torno da música e da arte urbana.
E o que vem a seguir?
Estamos a criar um álbum de originais, dedicado ao poeta Pardal, em que participam 35 músicos locais em 15 temas. Cada canção representa uma rua de Quarteira e as suas histórias. Estará pronto em 2021 e será lançado em vinil. Nasceu também um mural, de sensibilização para a crise ambiental e contra o racismo, feito por três artistas locais de arte urbana: o Nuno Viegas, que tem a sua base em Roterdão, a Daniela Oliveira Guerreiro, e o Élsio Menau, que me eternizou a partir de uma imagem da manifestação Black Lives Matter de 6 de Junho, em que tenho nas minhas cavalitas o Benjamin com um cravo na mão, e onde aparece a inscrição Como Seria, título de uma canção minha. No mural, Como Seria é alusivo a um mundo em que se pudesse viver a liberdade do 25 de abril, com a esperança representada pela criança e eu como referência à comunidade negra.
Os ideais de abril são uma referência para ti? Achas que estão por cumprir?
Fazem-me todo o sentido. Saí do confinamento com o Branko, na Avenida da Liberdade, em Lisboa, para assinalar o 25 de A+abril e tocámos em livestream, na avenida fechada. Era importante assinalar essa Utopia. Utopia, porque a intenção ficou no passado, não vingou. Talvez se concretize na geração do Benjamim. Os ideais do 25 de abril estão por vingar na aceitação do que contribuímos para que o racismo exista. Somos o país que exportou 9 milhões de escravos, num total de 16 milhões que saem de África para o outro lado do mundo. E é preciso chegar a Washington, ao Museu da Escravatura para veres ali a tua quota. Fomos os maiores esclavagistas. Toda a nossa coroa, toda a nossa riqueza vem do sangue de alguém. Eu vivi a outra versão da história. Sentia-me como o herói, o conquistador ensinado na escola.
Falava-se disso em casa?
Os meus pais não me falavam disso em casa. Foi preciso chegar aos 32 anos para o meu pai me contar como o padre César, em Sines, o protegia na igreja para ele não ser agredido. Quando vou a Cabo Verde pela segunda vez, em 2010, dou-me conta do racismo que se vive poe cá. A primeira vez que estive em Santiago, em 1987, foi uma experiência dantesca, não lhe entendi a beleza porque só conseguia ver pobreza. Não havia água potável, não havia luz. Os meus pais, crentes, iam sempre à missa no cimo da montanha, de burro. Não entendi nada daquilo e ficou o choque como memória. Até que o meu pai me disse que queria construir lá uma casa para ir para lá viver, depois da reforma. Quis perceber melhor porque é que ele queria ir para aquele sítio e em 2010 fomos os dois juntos. Comecei a perceber o que o ligava àquela terra e, aproximei-me ainda mais dele. Os meus pais protegeram-me sempre muito para eu não crescer com estigma. Só já bem adulto é que adquiri noção de algumas coisas que vivemos. Como sou do bairro, habituei-me muito cedo a coisas como ser seguido por um segurança de cada vez que entrava numa loja. E em Cabo Verde não havia disso. Éramos todos iguais. Foi lá que me apercebi do racismo de cá. Quando voltei, pensei «eu não estou no meu país. Por mais que tenha nascido aqui eu nunca vou ser um português inteiro, porque sou filho de imigrantes, porque sou negro». Decidi que tinha de ver isto num outro prisma, de mostrar às novas gerações que, independentemente disso, podes ser tudo, podes triunfar.
Continuas a sentir esse racismo no quotidiano?
Gosto de pensar que agora os seguranças andam atrás de mim porque sou o Dino d’Santiago. (risos) Mas a verdade é que sim, há racismo. No meio musical, as rádios começaram a passar mais kizomba quando a presença angolana no capital destas empresas era mais evidente. De repente, Angola tem problemas económicos e a kizomba passa de moda. Há uma censura não declarada. Os géneros que estão a vencer prémios, que têm maior sucesso no youtube, não passam na rádio. Os artistas chegam às pessoas porque felizmente existem plataformas individuais. Falo também dos direitos de autor. Grande parte dos produtores destes géneros musicais urbanos, afro, não estão registados e o seu trabalho dá muito a ganhar. Tenho vindo a incentivar estes músicos a registarem-se, até porque têm uma série de direitos. Todos os artistas do À Moda Quarteirense estão registados na Sociedade Portuguesa de Autores.
Ser filho de imigrantes condicionou o teu futuro?
Fui uma criança que teve a sorte de crescer numa Quarteira que conta com o Centro Comunitário António Aleixo, com uma equipa de mulheres muito dinamizadoras. Comecei a frequentar o Centro muito jovem, com onze anos. Foi lá que tive o primeiro acesso a bons materiais para desenhar, que fiz aulas de pintura, de dança e de teatro. E foi a partir do centro comunitário que participei num intercâmbio internacional de jovens, em Marselha. Tinha 17 anos e essa viagem marcou-me muito. Eu já conhecia expressões francesas pela madame Beatrice, mãe do meu amigo Miguel. Foi na casa deles, onde ela nos acolhia à tarde, que comecei a escrever as primeiras letras e a fazer samples sobre música clássica, tradicional e de intervenção francesa. Nesse Verão em que vamos duas semanas para Marselha, apercebe-me de que os participantes franceses gostavam do mesmo que nós: hip hop. E de futebol, Zizou! Eram todos filhos de argelinos, de emigrantes como os nossos pais. Ouvíamos o Slim Shady, que o Eminem tinha acabado de lançar, e fazíamos coreografias. Na primeira semana tínhamos workshops de dança hip hop, artes plásticas e construção de instrumentos com lixo. Escolhi pintar um mural com o rosto da Lauryn Hill, a partir da capa do Miseducation, o álbum dela que eu estava sempre a ouvir e que continua a ser o meu disco favorito.
Foi aí que decidiste ser músico?
Na altura, eu queria estudar Arquitetura ou Belas Artes. Mas aqueles momentos de convívio sempre à volta do hip hop, a cantar, a dançar as coreografias, e aquela identificação com o grupo francês, mexeram comigo. Ali senti que não éramos marginais, que éramos artistas. E o bichinho da música cresceu mais um pouco. Eu já cantava, desde miúdo, no coro da Igreja. Foi aí que comecei a minha formação musical. Quando voltámos de Marselha, comecei a fazer mais sons de hip hop em casa do Miguel. Aí fiquei muito dividido. É precisamente em 2000 que nós editamos a primeira canção, que saiu na revista Hip Hop Nation de Portugal. E é essa música que me torna conhecido para a esfera do Sam the Kid e outros.
E surge então a participação na Operação Triunfo?
Sim, em 2002 fui para a OT. Fazia só hip hop e foi graças a este género que comecei a escrever as minhas letras, porque no hip hop tens de escrever as tuas letras. O Funaná eu ouvia só em casa. Quando era adolescente, queria ser cool, ouvir o Tupac, a cena americana que chegava a Portugal. Fui muito influenciado pelo american dream. Em 2008 já canto uma morna dedicada à minha mãe, em crioulo, mas é quando vou a Cabo Verde, em 2010, que tudo muda: as sessões de terço com a minha avó, seguidas de jantares com 30 pessoas a contar as histórias do quotidiano, dos campos e da agricultura. Tudo isso me inspirou. Comecei a escrever e em 2013 nasce o álbum Eva, em homenagem à minha sobrinha. É quando ela nasce, de um parto difícil, que ganho coragem e decido apresentar-me como Dino d’Santiago.
Depois de Eva, vem Mundu Nôbu, que é um êxito enorme e te leva a ganhar as principais categorias dos Prémios Play. Este ano lançaste o Kriola...
Kriola é o álbum sobre a linha de Sintra que fala a língua da Cesária Évora. Que fala da agressão que Cláudia Simões sofreu, que fala do assassinato de Luís Giovani. Mas é um disco que vem para unir. É sobre esta cultura que se multiplica e se assume, com os seus sons misturados, sobre a multiculturalidade que sentes no teatro, no cinema, na moda. Kriola vem celebrar isso. Há mais de 14 crioulos de base lexical portuguesa, há mais que nos une do que nos divide.
O tema Kriolo, com o Julinho KSD, é mesmo uma celebração, branco com o preto é uma geração de ouro, cantamos nós em crioulo. Nhôs Obi — Escutem, em português — tema com o Vado MKA, é mesmo sobre tudo o que acontece de mau nas comunidades negras, nos bairros, mas que não tem a importância devida nas notícias. Com este tema senti que podia morrer agora e deixava a minha mensagem dita. A letra fala de como matam os nosso filhos para, de forma indireta, enterrarem as nossas mães; fala sobre essa pressão constante para te mostrar que não és daqui e que, à menor crise no país, essas comunidades são as primeiras a ser atacadas. No Kriola assumo tudo e peço que entrem na roda, que façamos parte do mesmo círculo, que venham beber da cultura que tanto temem e percebam o quanto nós bebemos da vossa cultura.
Saiu num momento muito delicado das vidas de todos…
Kriola foi lançado em pleno início do confinamento da pandemia. A editora tinha algumas dúvidas sobre se seria o momento, mas eu senti que era uma responsabilidade minha. Sou de uma geração em que nos sentávamos ao domingo, com a família, a ouvir os discos novos. O país estava confinado, toda a gente estava em casa, era o momento. E foi um êxito. A Rolling Stone, a Folha de São Paulo,o Público, o Expresso, todos me deram destaque. O álbum acabou por receber mais atenção. Os jornalistas identificaram-se com os temas, com a urgência. Tiveram tempo para ouvir com atenção e esmiuçar. Valeu a pena. Primeiro foi editado digitalmente com 8 temas e agora, em Novembro, sai em CD e Vinil com 4 novidades: uma versão do tema My Lover. Com o Nelson Freitas, Morna, dedicado aos refugiados e que foi lançado na plataforma Colors, e os temas Flan Pamodi e Chega pra Lá.
Publicado originalmente no 1º número da revista Loulé, dezembro 2020.