Vivências em Cuba durante o regime de Fidel Castro, entrevista a Júlio Machado
Júlio Machado nasceu em 1966, em plena época pós-revolução de Cuba. Passou a sua infância com os pais e quatro irmãos. Estudou advocacia até ao 12º ano, mas não concluiu os estudos académicos por razões laborais. Alistou-se no exército, entrou para a Direção Geral de Operações Especiais em 1986, no qual desempenhou funções importantes que lhe permitiram estar em contacto direto com o líder do país, Fidel Castro.
Júlio Machado foi segurança privado do líder soberano cubano; fez parte da equipa de segurança especial que protegia a mansão de Fidel, tendo-o acompanhado também em campanhas eleitorais e em missões diplomáticas. Vive em Portugal há mais de vinte anos. Júlio Machado conta-nos a realidade de Cuba nos finais do século passado, um dos países mais fechados e boicotados do mundo, com entradas e saídas controladas, imprensa escrutinada pelo governo e poucas informações fiáveis sobre a realidade cubana. Devido ao embargo dos EUA a Cuba, el bloqueo, o país viveu uma acentuada crise económica que pior seria sem a ajuda internacional da URSS e RDA, principais aliados económicos. Pelo seu testemunho, temos uma ideia da crueza do quotidiano do povo cubano, especialmente o das classes mais baixas.
Conte um episódio marcante das suas vivências em Cuba.
Como é sabido, a situação era difícil. Talvez o episódio mais marcante para todos os cubanos foi o embargo dos EUA. São problemas políticos, mas afetou-nos. Também trabalhei na segurança pessoal de Fidel Castro, mas as maiores lembranças que tenho, prefiro guardá-las.
Como foi trabalhar na segurança pessoal do Fidel Castro?
Éramos um grupo chamado DGOE, Direção Geral de Operações Especiais. No nosso destacamento estávamos responsáveis por assegurar a proteção de membros dos mais altos cargos do governo, incluindo o presidente Fidel Castro. Campanhas e reuniões governamentais, missões diplomáticas e controlo das saídas e entradas do país eram alguns dos nossos compromissos. Trabalhávamos em sintonia com a Polícia de Segurança Nacional. Muitas das nossas missões tinham um caráter confidencial, mas posso dizer que tanto podíamos operar quer em Cuba quer no estrangeiro, como foi o meu caso em Angola, onde trabalhei durante dez anos.
Quando se alistou nesse grupo?
Em 1986. Foi uma das melhores decisões da minha vida. Tive o privilégio de acompanhar uma das pessoas mais importantes da história do mundo. Fidel Castro era um homem singular. Sério, firme e um verdadeiro apaixonado por Cuba. Tudo que ele fez foi com o intuito de desenvolver a sua pátria.
Quais foram as maiores limitações que o regime impôs na sua vida?
Cuba é um regime socialista, portanto não podíamos ter contacto com pessoas de países capitalistas.
Sentiu dificuldades a nível de saúde, economia e/ou oportunidades de emprego?
A saúde e o ensino são bens gratuitos. Por isso nesse sentido não estávamos muito mal. Mas havia miséria e pobreza no país.
E a qualidade no sistema de saúde?
Muito bom, agora é que piorou. Antigamente era-se atendido a horas e via-se que os médicos tinham os utensílios necessários para curar os pacientes. Atualmente, é diferente. O mundo evoluiu e Cuba ficou para trás. Os médicos continuam a ser muito bons, mas em termos de material médico estão muito desfalcados. Há falta de equipamentos de raio X, seringas, entre outros.
Era possível viajar ou sair do país?
Era impossível sair do país. A população já recebia pouco e o governo fazia questão de aumentar muito o preço das passagens de avião para dificultar mais ainda a vida.
E se alguém tivesse saído do país e quisesse voltar para visitar a família?
JM - O Estado obrigava a trabalhar. A partir do momento em que se saía do país, já não se podia voltar a entrar. Temos vários casos como o Willy Chirino e outros cantores que estão proibidos pelo governo de entrar no país.
Relativamente ao acesso a produtos alimentares, existia algum tipo de entraves aos mesmos? Quais eram os alimentos mais difíceis de comprar?
Há pessoas que morrem sem experimentar carne de vaca. Porque era impossível tê-la em Cuba.
Porque o país não produz carne bovina?
Produz, mas era tudo exportado. E o pouco que sobrava ia para os hotéis e para o governo. A comida era racionalizada. Tínhamos um livrete que dizia o que se podia comer e a quantidade. Arroz, massa, feijão, comida enlatada, pouco mais….
Mas num regime tão controlador, havia certamente um mercado informal…
Sim, claro. Havia muito contrabando. Era bastante recorrente na ilha. Tanto controlo leva a isso!
EUA e Cuba, conjuntamente com os países latino-americanos, tinham assinado um tratado de assistência recíproca em 1947 que pressupunha o fornecimento de armas apenas como forma de defesa soberana de cada um dos estados-membros. Todos os estados-membros se defendiam como um bloco face às ameaças externas. Porém com a revolução civil em Cuba iniciada por um grupo de rebeldes liderado por Fidel Castro, as armas financiadas pelos EUA foram usadas para combater o regime regente de Fulgencio Batista, logo o EUA viu-se obrigado a impor um embargo de armas a Cuba. Com a vitória de Fidel Castro e a implementação do regime socialista no país, os EUA alargaram o embargo a todos os níveis (importação, exportação, turismo…) impondo até sanções a países terceiros que negociem com Cuba.
Desde a revolução cubana até finais do séc. XX, desenvolveu uma profunda aliança de Cuba com os blocos socialistas: a ex-RDA e a ex-URSS como parceiros económicos e políticos. Porém, a queda do Muro de Berlim e a dissolução da URSS na década 90 provocaram consequências no país. Como foi essa outra fase em Cuba?
Foi horrível. Aumentou a pobreza e a miséria, havia muita escassez de comida, que ainda por cima era racionalizada. Houve uma saída massiva em 1980 e em 1994, por mais difícil que fosse sair do país. Muitos pegavam num pneu e tentavam a sua sorte no oceano para chegar principalmente aos EUA. Outros tentavam simplesmente a nado.
Muitas pessoas morriam nessas tentativas de fuga. De facto, entre Cuba e EUA ainda é uma distância considerável.
Cuba está a 90 milhas de EUA. Cerca de 180 km. O país estava tão mal, que mesmo apesar dos enormes riscos de percorrer essa enorme distância via marítima, muitas famílias tentavam a sua sorte.
De Miami, certo?
Sim, mas também existe uma zona mais perto, Key West, que fica a cerca de 40 milhas. Aliás muitas das pessoas que conseguiram chegar aos EUA no final do século XX oriundas de Cuba, obtiveram nacionalidade americana rapidamente no regime do Bill Clinton. Essa foi uma das estratégias americanas para enfraquecer Cuba.
Qual é a principal atração no desporto?
O basquetebol, basebol, o boxe são os principais desportos no país. O futebol não é muito visto.
Se pudesse fazer uma retrospectiva desde que saiu de Cuba, a situação por lá melhorou ou piorou?
Piorou bastante. Apesar de atualmente haver uma maior abertura do governo de Miguel-Díaz Canel, a população continua muito pobre, o contrabando aumentou demasiado, visto que a disponibilidade de alimentos está cada vez mais escassa. O peso cubano cada vez mais vale menos. O sistema de ensino está antiquado, há falta de materiais na escola. Os hospitais não têm todas as máquinas requeridas para suprir as necessidades das pessoas. Muitas pessoas formadas em medicina e engenharia andam a deixar de exercer a sua profissão para irem trabalhar no setor do turismo, que rende muito mais a nível financeiro, tendo as pessoas possibilidade de receber gorjetas em dólares, que é muito valioso por parte dos turistas. Globalmente, está um caos.