A África que anda a fazer suar Lisboa

25 de Maio é o Dia Mundial de África, por isso, a Nota Positiva quis viver a cidade ao ritmo do continente quente. Do novo B.Leza às noites africanas do Chapitô, passando por almoços com coladeira e aulas de quizomba, respira-se uma nova africanidade em Lisboa. Nela, brancos e negros partilham a mesma dança e a cachupa é acompanhada de vinho do Tejo.

Associação Caboverdiana (foto, Diana Chaves)Associação Caboverdiana (foto, Diana Chaves)

Bartô, vai tê qui dançá
“Leve-leve”, como em São Tomé, “malembe”, como em Angola. No Bartô, bar do Chapitô, os domingos têm concerto marcado para as 22h, mas não começam antes das 23h, seguramente. São 22h48 e os músicos chegam calmamente do jantar. “Vamos aproveitar a noite, que ‘tá’ fixe!”, grita do palco Simon José, cantor angolano que anima mais uma noite africana do Bartô (programa que aquece a primeira colina de Lisboa desde os anos 1980).

À segunda música, já se grita “aiué!” e os pares rodopiam na sala. Parece que é fácil, mas enrolar a anca daquela maneira não é para todos – não é por acaso que o continente africano tem mais curvas que o nosso. “Mama África” tem de subir pela espinha, como quem faz funge para acompanhar a moamba.

Rente às colunas, Maria penteia o cabelo louro e bate o pé na casa dos 50. “Não sei o que acontece, mas há qualquer coisa em mim que me puxa para dançar e eu tenho de ir”, confessa. E vai! Tem raízes africanas? “Não. A única ligação que tenho a África é ser de Lisboa.”

foto, Ricardo Camposfoto, Ricardo Campos

Terá sido a mesma condição a atirar Marta Lança, programadora cultural da Zona Franca, que organiza as noites do Bartô (Chapitô) desde outubro, à cultura africana, em 2003. A jornalista e produtora partiu para Cabo Verde com o fim de criar a revista Dá Fala. Dali viajou para Angola, Moçambique, S.Tomé e por aí afora.

De regresso a Lisboa, repara que “a música africana é cada vez mais valorizada, não só pelos africanos, como pelos portugueses, turistas, Erasmus”, por isso, as noites do Bartô estão a crescer. Marta criou ainda o Buala [website dedicado à cultura africana contemporânea], porque havia imensa coisa interessante a acontecer e os países não se conheciam uns aos outros”. “Fala-se da lusofonia numa perspetiva teórica e diplomática, mas, na verdade, isso funciona mais aqui para Lisboa do que em África”, considera.

A morna em corpos quentes
“Boa noite. Bem-vindos ao B.Leza.” A frase volta a ouvir-se junto ao Tejo, no Cais do Sodré, a nova morada da casa-mãe da interculturalidade lisboeta. Na parede de vidro escancarada para o Tejo, as silhuetas dançantes, refletidas, deslizam com as ondas.

O homem mestiço, de camisa aos quadrados, estende a mão à senhora do Martini e da perna cruzada. Morna: a música e a atitude. Mas suficientemente quente para os fazer fundir nos braços um do outro. “Há muitos divórcios e casamentos feitos no B.Leza mas, acima de tudo, há muitas amizades”, conta Sofia Saudade e Silva, sócia do clube.

“O B.Leza nasceu de uma história de amor”, em 1995, no Palácio Almada Carvalhais. 12 anos depois, uma ação de despejo contra o Casa Pia Atlético Clube – que subalugava o espaço ao B.Leza – atrapalhou as entrelinhas. Atrapalhou mas não matou. Após cinco anos à procura de casa, hoje revivem-se as noites de morna e coladeira. “Havia saudades do B.Leza”, comenta Sofia. Por isso é que, para além de um público jovem e renovado, continuam a ver-se os clientes do passado.

foto, Ricardo Camposfoto, Ricardo CamposA levitar sobre o Tejo, os casais enrolam, encostam, ondulam, se embalam. “Com o B.Leza, notei que os lisboetas começaram a ouvir mais música africana e que os africanos começaram a ser mais aceites na cidade”, analisa a responsável. Nesta sexta-feira, Calú Moreira faz acreditar que Lisboa é o retrato da lusofonia a várias cores. É “um acreditar nas pessoas, na sua mistura e na capacidade que elas têm de se relacionar”. Como nas palavras de Sofia sobre o sonho B.Leza.

DJing Africa
Aos finais de tarde de sábado, a Avenida 24 de Julho não é assim tão dura. O rádio sintonizado na Antena 3 abre a janela para uma África urbana, atual e sem fronteiras. Ouvimos “Música Enrolada”, programa que conta com os beats dos Irmãos Makossa: Nélson, da margem sul, e Paolo, de Itália.

Os manos juntaram-se no virar do milénio, “quando a world music estava a despontar em Lisboa”, e desde então andam à procura dos ritmos afro com assinatura mappa mundi. Ou seja, para eles, tanto a música como Lisboa são mistura.

“Quando meti o pé em Lisboa, em 94, começou a minha relação com África”, atira Paolo, recuando no tempo: “A cultura africana era viva. Havia festas, comunidades africanas fortes, muitos projetos da Guiné, de Angola, com músicos europeus. Sentimos que fizemos parte desse movimento e que ele está novamente a ganhar força, com a reabertura do B.Leza e do Ritz Clube e com sítios novos como o Arte & Manha ou o Clube Ferroviário”, onde passam música.

Nélson reconhece o conceito de fusão na pele. Filho de mãe angolana e pai português, nota que o público lisboeta é recetivo ao som que passam, porque está “mais acostumado à noção de mistura e à africanidade”. E Paolo completa com o corpo: “Lisboa é uma cidade africana; inspira e respira africanidade. E a interculturalidade é isso: dar e receber.”

Interculturacidade
Cachupa no prato, vinho português no copo. O retrato é a filosofia do Centro InterculturaCidade, em São Bento. O centro é a materialização do sonho de Mário Alves, que vê nas diferenças de cor da pele a possibilidade de jogar com uma paleta mais próxima da perfeição.

Associação Caboverdiana (foto, Diana Chaves)Associação Caboverdiana (foto, Diana Chaves)

Esta associação sem fins lucrativos promove, desde 2004, “o diálogo entre culturas” através de conferências, filmes, ações de formação e do incentivo às artes e à criação, num espaço que recebe todos, sem distinções. Há jantares temáticos e festas, apoio aos imigrantes, aulas de português e de crioulo cabo-verdiano, adultos e crianças. No InterculturaCidade, a distância entre o moçambicano e o paquistanês é a mesma que da garrafa de tinto ao prato de cachupa.

“Vamos à mercearia da senhora do Bangladesh e não sabemos o nome dela. Há guineenses que trabalham em Portugal na construção civil, mas que no seu país eram bailarinos. Temos de quebrar isso e respeitar a diversidade”, defende o diretor do centro.

Perto da meia-noite, Maio Copé canta África. Duas salas ao lado, na oficina, trabalha-se em madeira e barro. Portugueses e africanos usam o espaço para exprimir o que lhes vai na alma. “Mais tarde, podemos fazer uma exposição ou vender algumas peças”, contam.

Tudo isto é uma forma de valorizar a identidade e o empreendedorismo nas comunidades migrantes. E é um meio para integrar com igualdade, como explica Mário Alves: “Ninguém tem de preencher uma ficha para entrar no centro. Se precisam de alguma coisa, nós damos, tal como fizeram com os portugueses que emigraram para França nos anos 1970.”

Quizomba, semba e pés descalços

foto, Ricardo Camposfoto, Ricardo Campos

“A força ‘tá’ no muxima [coração em Kimbundu, de Angola] !” Assim encoraja o professor Petchú os participantes do ÁfricAdançar, o congresso internacional de danças africanas que se realiza há cinco anos em Lisboa. A música vem da Nigéria, o professor, de Angola, e os alunos, do mundo. Todos estão moídos e a sala, por mais arejada que seja, cheira a sumo de glândulas sudoríparas.

Hoje, Petchú dá aulas de danças tribais, mas os últimos 18 anos em Lisboa (na Escola 1001 Danças) têm sido a ensinar muita quizomba, rebita, semba, tarrachinha, entre outros géneros. Quando chegou a Portugal, nos anos 1990, “as danças africanas não estavam propriamente na moda”, afirma o professor. Agora, a quizomba, particularmente, “é muito procurada, porque é uma dança muito social. Permite o abraço, o carinho, a relação humana, que é o que todos procuramos”, explana Petchú. Por outro lado, antes havia “o problema do contacto, do toque e do cheiro a suor; agora não há nada

disso”, nota o dançarino. Esse processo de “libertação” fez internacionalizar a música africana. A prova é que 95% dos alunos de Petchú são europeus.

Almoços de coladeira
A cachupa é um prato lento que se faz com o amor da morna: em lume brando, com o calor a subir e a misturar os temperos à carne. “Leva aí umas quatro horas e, antes de comer, vamos bebendo grogue”, conta José (nome fictício), de 74 anos, à mesa da Associação Caboverdeana. Dizem que às terças e quintas este espaço perto do Marquês de Pombal vira “a cantina dos executivos de Lisboa”, mas, para além de fatos e gravatas, também há gente di Kabu Verdi que vem matar saudades de camisa aberta ao calor.

Ainda não são 13h30 e Zezé Barbosa, músico residente, avança para uma primeira faixa. Soa a fado com tempero: deu em morna. E por uma questão de temperatura, talvez, a associação é, desde os anos 1960, um ponto de encontros, namoros e afeto.

foto, Ricardo Camposfoto, Ricardo CamposMas não é só dos ritmos de Cesária e dos pratos da dona Azita que vive esta casa. “Temos apresentações de livros, conferências, debates, exposições, filmes… Prestamos apoio aos imigrantes, temos um gabinete jurídico e uma biblioteca para estudantes de mestrado e doutoramento”, enumera Mário de Carvalho, presidente da associação.

Os cabo-verdianos constituem a terceira maior comunidade de imigrantes em Lisboa. Foi a História que os juntou e essa condição de homens e de tempo tem fortalecido a ligação, que será, cada vez mais, estendida a outras comunidades, garante o presidente.

Na relação mais próxima aos olhos, Zezé desenha os acordes da multidão gingante. São 14h30 e dá-se o fim de uma cerveja gelada. “Dança?” Nesta casa, até a Nota Positiva dança. E assim Lisboa se agarra a África: no amor de uma coladeira.

 

originalmente publicado em Nota Positiva

por Rute Barbedo
Cidade | 28 Maio 2012 | B-leza, bartô, dança, musica africana, noite