A Lisboa menina e moça de "Donzela Guerreira": conversa com a realizadora Marta Pessoa
“No fundo, a história da ‘Donzela Guerreira’ é de uma mulher que se quer superar.” Através de imagens de arquivo, retalhos de dois universos literários vindos de escritoras “apagadas” por um regime de 40 anos ditatoriais e de encenações vistosas, Marta Pessoa em colaboração com a argumentista Rita Palma, delineiam uma constelação com luz nos rebordos da capital. Lisboa é o centro das relações, dos afetos, das memórias e das palavras que se vão amontoar no percurso de uma escritora aficionada, Emília Monforte (Anabela Frígida), quase como um heterónimo de Maria Judite Carvalho, que resiste ao patriarcado da sua sociedade e persiste em vencer os nichos que muitos querem impor.
Falámos com a realizadora desta obra de várias vozes, Marta Pessoa, um filme que esteve presente na edição de 2019 do Indielisboa e que estreia em sala num dos momentos mais conturbados da história da distribuição / exibição. Donzela Guerreira promete fazer jus ao seu nome, enfrentar as adversidade que a rodeiam nem nunca atirar a “toalha ao chão”.
Começo esta conversa com a previsível questão da origem deste trabalho.
O projeto surgiu através de dois caminhos diferentes, que no fundo, acabaram por ter a mesma origem. Primeiro como uma curta-metragem, muito simples, inspirada num texto no Romanceiro de Almeida Garrett – “Donzela Guerreira” ou a “Donzela vai à Guerra”. Uma pequena narrativa de domingo à tarde em que uma senhora, de uma certa idade, sai de casa como uma guerreira que não se sujeita às regras. Este projeto não foi apoiado, porém, não guardei mágoa alguma.
O outro caminho é que há mais de dez anos tentei adaptar o “Tanta Gente, Mariana” de Maria Judite Carvalho, o qual também não foi apoiado. Não sei bem porquê … quer dizer, quando digo isto, suponho que tenha sido, ou o argumento não era suficientemente bom segundo os júris, ou que não havia a sensibilidade para com o trabalho de Judite Carvalho. De momento, ela tem obra completa editada, tornando-se fácil entrar numa livraria qualquer e adquirir todo o seu trabalho. Mas devo dizer que demorei 20 anos a juntar as suas publicações em alfarrabistas, era uma escritora muito invisível até há pouco tempo. O que não é caso único.
Isto prolongou-se até eu, por fim, decidir escrever sobre os textos da Maria Judite Carvalho, o qual descobri numa determinada altura da minha vida sem mistério. Estudei na Escola de Cinema, vivi em Benfica, e a escritora transmitia / traduzia toda a minha experiência na cidade, dos espaços e das pessoas o qual me ia envolvendo. Judite Carvalho era sobretudo uma escritora da cidade e da solidão, não com isto afirmar que sou uma pessoa solitária. [risos] Mas a sua escrita, as suas descrições, as pessoas com que retratava, assim como o quotidiano levavam-me constante a revisitar esse universo.
No entanto escrevi alguns textos, não sendo o “Tanta Gente, Mariana”, nem mesmo estritamente biográficos da escritora, mas que transmitiam o percurso de Judite Carvalho, na sua vida pessoal como profissional e, durante esse processo, misturei o universo de outra escritora, Irene Lisboa, também da cidade e que esteve presente na minha vida através dos manuais escolares. Tal como a Judite, foi uma mulher que tentou, por via do seu modo de vida, enfrentar um regime patriarcal. Ainda fundi textos meus sobre a relação de uma mulher com o pai e com mãe, e aí entrando as respetivas vozes opostas.
O projeto foi uma sucessão de textos literários, e não em forma de um guião convencional, entreguei à Rita Palma [argumentista] e “vê lá o que conseguimos fazer com isto?”.
Resumindo, as coisas foram construindo com Lisboa, com as personagens extraídas de Maria Judite Carvalho e Irene Lisboa, das suas vidas e ainda uma parte … muito pequenina … da minha relação com a cidade e com a minha família.
Maria Judite de Carvalho, assim como a Irene Lisboa são figuras ainda desconhecidas na literatura portuguesa, possivelmente “graças” ao Estado Novo que difundia valores patriarcais. Durante muito tempo, Sophia de Mello Breyner foi a reconhecida escritora portuguesa …
Permita-me que faça um parêntesis, a Sophia só foi reconhecida escritora depois do 25 de Abril, antes era conhecida como a mulher do Sousa Tavares, ou seja no Estado Novo as escritoras eram somente consideradas como mulheres de alguém.
E foi através destas escritoras “invisíveis” que tentou concentrar as suas ideias, intimidades e vivências no filme?
Sou muito pouco dada a autognose. Grande parte do que está no livro não são aflições, dores nem estados de alma, é mais uma criação ficcional. De facto, eu não penso nos meus sentimentos, nem do meu “eu” íntimo, é algo mais físico, o de me lançar pela cidade. É complicado de explicar, mas também não será estranho visto que Donzela Guerreira é um filme onde Lisboa é representada por imensas fotografias de arquivo. Mas também foi assim que construí a narrativa e com as personagens. A expressão mais simples será uma reflexão sobre o tempo e a cidade como personagem principal. Uma personagem silenciosamente zangada, sabendo que as mulheres não são consideradas escritoras. Obviamente que junto pequenas partes da minha biografia ou, mais concretamente, a relação com a minha infância e com a minha família.
E quando à personagem da Etelvina? A personagem doméstica crucial na educação, sobretudo sentimental, da Emília. Houve alguma Etelvina na sua vida?
Houve várias Etelvinas. Todos nós, principalmente os da minha geração ou da Rita [Palma], tivemos uma pessoa como esta Etelvina. Aquela pessoa que nos foi próxima sem ser família. Porque por vezes aquela que enxugava as nossas lágrimas com o avental nem sempre era a avó. Por isso não há uma Etelvina, e sim várias.
Voltando à invisibilidade das mulheres no regime salazarista, cito o início de A Donzela Guerreira, em que a nossa protagonista é entrevistada para um programa radiofónico, cuja anfitriã frisa, especializado a ouvintes [no feminino]. Acrescentando que ela introduz a convidada, Emília, como uma escritora para mulheres. Assim eram elas limitadas naquele tempo.
Ela escreve. Friso, ela escreva. A altura é que se dizia que a escrita dela era direcionada para mulheres. Todavia, nenhuma mulher quer escrever somente para mulheres, ou realizar filmes somente para mulheres, ou pintar para mulheres apenas, era uma ditadura profundamente patriarcal, que as restringia. Enquanto escritoras, as mulheres participavam em artigos de jornal unicamente direcionados para o sexo feminino, porque era a única via de exercerem essa arte. No caso de Maria Judite Carvalho – estou sempre a regressar a ela, mas dá para generalizar – ela também começou por escrever esse tipo de crónicas, penso que se intitulavam de “Diários da Mulher”. Depois da Primeira República, em que havia uma certa sensação de progresso na vida das mulheres, surge a Ditadura Militar e o Estado Novo e, com isso, quem foi completamente anulado? Foram as mulheres. Foram fechadas em casa. Este é o peso de 48 anos de ditadura. A própria entrevistadora dirige-se ao seu público – mulheres – sendo ela uma entrevistadora de mulheres apenas. Dificilmente entrevistaria um homem. Os homens eram os reis do teatro e da revista, o resto eram coristas. Por isso escolhi Dina Félix Costa (um atriz que deposita carinho nas suas personagens) para ser essa entrevistadora tecnicolor, que se coloca numa posição de nicho, algo de simplista, e por usa vez, indica a entrevistada numa espécie de armadilha. Por isso mesmo, quando ela desaparece, ela é referida pela Emília “como uma possível mulher solitária”. Este é um dos poucos momentos da minha mise-en-scène clássica.
E a reconstituição histórica, a Marta Pessoa trabalha através de imagens de arquivo.
Sim, através de imagens de arquivo.
Há aqui uma pesquisa, seleção e recriação através do trabalho de arquivo?
Isto não veio subitamente de uma ideia luminosa, mas sim de um já anterior de pesquisa. Tenho a sensação que os meus filmes agarram-se uns aos outros e ainda estou no processo de saber porquê. Mas o meu filme anterior também utilizei imagens de arquivo, também fiz essa exata pesquisa, e o que aparece são movimento de aproximação das personagens que estão dentro e não propriamente à cidade, não com essa dimensão. Tem uma dimensão de vigilância aos corpos por vezes desfocados, o qual soam manchas na imagem. Portanto, o que ficava de fora era a cidade, e eu fiquei com aquelas imagens na cabeça, porque estava a gostar de vê-las realmente. Eram imagens de uma cidade no início do século, mas que ainda reconheço. Mas todo este gesto não resumiu num gesto nostálgico, mas sim de um reconhecimento, o de percorrer aqueles caminhos.
Digamos que, no final de Donzela Guerreira a narradora auto-intitula-se de “narradora-salvadora”. O filme precisa ser salvo por esta narradora?
Isso é um pergunta com dupla intenção. [risos] Se o filme precisa ser salvo ou o narrador salva o filme? Bem, se falamos de uma sequela, à beira de um franchise? [risos] Quem levará Emília para o outro lado da margem? [risos]. Para ser sincera, não sei até que ponto é a narradora que salva ou que vai salvar a vida dela. Não sei se há narrações que nos possam salvar, digamos assim. Mas esta Donzela Guerreira tem muito de Silvestre, de João César Monteiro, ou de Joana D’Arc, não precisa de ser salva por nenhum príncipe… ou seja, por nenhum homem. Ela quer ser como é, superar os diferentes campos de batalha, sem ter que travestir.
Supondo que transcrevessemos este filme para os tempos de hoje, as mulheres não enfrentariam estas adversidades nas suas ascensões.
Mas teria outros. Em certa parte fiquei otimista em relação ao filme, por ter a perceção que muitos destes obstáculos já não existem. Mas temos outros que cada vez mais estão a agravar. Porque raio é que a mulher, fazendo o mesmo trabalho que o homem, continua a receber menos? Se este filme passasse para a nossa atualidade, obviamente iria focar nessa diferença díspar salarial. Porque é algo que continua a não entender. É absurdo! Obviamente que há outros problemas, mas não sairíamos daqui.
Em relação aos Três Vinténs, como surgiu este projeto? E gostaríamos saber se o devemos chamar de produtora ou de coletivo?
É produtora, a empresa, bastante pequena, frisa isso mesmo. A base é a seguinte, os Três Vinténs sou eu, a Rita Palma e o nosso ‘senior’, o João Pinto Nogueira. Conhecemos-nos há bastante tempo… há mais de 20 anos, juntamos-nos através daquelas telefilmes da SIC [SIC Filmes], que serviu de escola para muita gente da minha idade … vínhamos de um lado mais técnico do cinema e começámos a realizar e a escrever e, sucessivamente, as estruturas foram surgindo. Nós queríamos fazer os nossos filmes e acolher os filmes de outros, apesar de termos dificuldades nesse ramo, mas que já acolhemos como o caso da obra do Pedro Filipe Marques – “O Lugar que Ocupas” (2016).
Novos projetos?
Há novos projetos. Há projetos antigos. Há projetos antiquíssimos. Há projetos do qual já não lembro da sua génese e há um que parou devido à pandemia. Aliás, estávamos a filmar um documentário no topo do Peneda Gerês, em Castro Laboreiro, durante o mês de fevereiro e quando cheguei ao cimo e fechei-me em casa devido à pandemia. Neste momento, o projeto está interrompido, e nem sei como reiniciá-lo. O documentário consistia percorrer todo o país, e agora nem sei como convencer as pessoas a entrar na casa delas. Aliás como se faz um documentário desta natureza em tempos de pandemia? Como vou aos Açores filmar uma fábrica e voltar a Castro Laboreiro? Este projeto já tem uma longa história e pelos vistos é para continuar.
Por outro lado, recebi apoios para um novo documentário, que ironicamente também é “para andar por aí”. Nem sei como fazê-lo. Penso que todo este panorama pandémico nos tornaram bastante imóveis, e a primeira crise foi obviamente financeira, porque as pessoas sem dinheiro não vão …. literalmente … a lado nenhum. O mesmo acontece com os filmes e nem sei que futuro é reservado aos documentários face a esta realidade e os novos procedimentos que nos é impostos.
Artigo originalmente publicado por Cinema Sétima Arte a 08/11/2020