A outra história brutal da Alemanha: deve o “Quarteirão Africano” de Berlim ser renomeado?
Enormes fotografias a cores decoram o túnel azul bebé da Afrikanische Strasse (“Rua Africana”), uma das estações do U-Bahn, metropolitano de Berlim: uma girafa sorridente, uma manada de zebras na savana, um par de suricatas sussurrando entre si. O cenário que evocam é remoto: à superfície, com os seus prédios modernistas, encontramos pequenos negócios, e uma população maioriatariamente de baixos rendimentos, o Afrikanisches Viertel (“Quarteirão Africano”) dificilmente se distingue de qualquer outro bairro da cidade. Sem nenhum jardim zoológico que se descortine, e com meramente 6% da sua população constituída por africanos, apenas o nome das ruas — Rua de Zanzibar, Rua do Congo, Rua dos Camarões — parece estar em consonância.
Apesar desse carácter indistinto, o Quarteirão Africano tornou-se recentemente o epicentro de um debate apaixonante sobre memória histórica e paisagem urbana, opondo aqueles que querem que a área permaneça como está a um número crescente de activistas e organizações que reivindicam a renomeação do bairro, assim como de outras ruas.
“Trata-se de um debate sobre como lidar com a história tão negligenciada do colonialismo alemão,” diz Tahir Della, director da ONG Iniciativa das Pessoas Negras na Alemanha e defensor da renomeação. Della e outros levaram recentemente a cabo uma animada acção, na qual encenaram uma cerimónia de renomeação de uma das ruas, cujas placas foram substituídas por outras criados por eles, e recolhendo assinaturas para uma petição contra as velhas toponímias.
O debate faz eco da recente controvérsia em torno da campanha Rhodes Must Fall (“Rhodes Deve Cair”), exigindo o derrube das estátuas de Cecil Rhodes presentes em universidades da Cidade do Cabo a Oxford, numa resposta ao seu assumido racismo e envolvimento com o colonialismo britânico. Por outro lado, e em defesa da manutenção das estátuas, outros referiram o legado filantrópico de Rhodes, assim como a necessidade de proteger a liberdade de expressão.
A história do Quarteirão Africano remonta a finais do século XIX, quando o comerciante de animais Carl Hagenbeck elaborou um grandioso projecto para Berlim: um jardim zoológico permanente, exibindo animais selvagens e humanos.
Anos antes de albergar a Conferência de Berlim de 1884-85, na qual as potências imperiais se digladiaram pelo controlo de África, já a Alemanha abraçava entusiasticamente o espírito do colonialismo. Na esteira do sucesso das suas exibições de “povos exóticos” (Völkerschau) por toda a Europa, o jardim zoológico de Hagenbeck seria uma celebração do projecto colonial alemão e dos seus despojos, desde o sudoeste africano alemão (actual Namíbia) até à África oriental alemã (actuais Burundi, Ruanda e interior da Tanzânia). Hagenbeck morreu de uma mordida de cobra em 1913, e o posterior resultado da Primeira Guerra Mundial frustrou definitivamente a sua proposta. Por essa altura, contudo, já o Quarteirão Africano tinha emergido como marca permanente na paisagem urbana, com as suas ruas e praças evocando países africanos e heróis coloniais alemães.
“É um insulto contra as pessoas negras que passam por ruas que homenageam aqueles que cometeram os mais sérios dos crimes em África”, diz Della, referindo-se a exemplos como a avenida Petersallee, originalmente nomeada em honra do administrador colonial Carl Peters — homem cuja violência lhe granjeou as alcunhas de “Homem da Forca Peters” e “Mãos Sangrentas”, assim como a admiração de Adolf Hitler.
Forçada após a Primeira Guerra Mundial a pôr termo à sua experiência colonial, a Alemanha votou ao esquecimento a maioria dos detalhes menos lisonjeiros deste período, no qual deteve colónias em territórios correspondentes ao que são hoje a Namíbia, Tanzânia e Camarões, tendo igualmente presença em partes dos actuais Estados do Togo, Burundi, Ruanda, Quénia, Moçambique e Gana. Durante a sua presença no continente africano, exploradores e colonos alemães lincharam e escravizaram homens, violaram mulheres e raparigas, e deixaram povos inteiros morrer à fome em campos de concentração.
Em 1904-05, no que é hoje a Namíbia, cerca de 65 mil Hereros, assim como metade dos membros da tribo minoritária Nama, foram mortos na sequência da sua insurreição contra o opressivo domínio colonial. No entanto “a maioria dos alemães nem fazem ideia que o país teve em tempos uma presença colonial em África”, afirma o activista de origem tanzaniana Mnyaka Sururu Mboro, membro da Postkolonial, uma ONG com sede na área que faz campanha pela renomeação das suas ruas, assim como pela erecção de monumentos oficiais em memória das vítimas do colonialismo nas cidades alemãs.
Numa cidade aparentemente especialista em monumentalização e memorialização, o passado colonial da Alemanha, e por extensão a história por detrás do Quarteirão Africano, esteve até há muito pouco tempo ausente da consciência pública. Como afirma o especialista em geografia política Sinthujan Varatharajah, “apesar de a Alemanha ser frequentemente louvada pelo modo como lida de forma crítica com a sua história Nazi, ainda tem dificuldade em reconhecer que o Holocausto foi precedido por esta história de colonialismo e genocídio”.
Muitos dos que defendem a manutenção dos nomes das ruas afirmam, no entanto, estar a combater precisamente essa “amnésia histórica”. Karina Fulusch é uma porta-voz da Pro Afrikanisches Viertel (PAV), uma associação de moradores que se opõe ao que afirmam ser um debate “politizado e ideológico” em torno do nome das ruas. Citando um residente local, Johann Ganz, Fulusch afirma que “o simples desaparecimento do mapa de controversos nomes de ruas não põe fim à necessidade de uma discussão aprofundada sobre o legado colonial da Alemanha.”
“O argumento de que a renomeação iria apagar esta parte da história demonstra que os que estão contra a renomeação não sabem o que estão a defender”, responde Tahir Della. Apesar de o PAV referir, na sua argumentação, o património histórico e valor turístico do Quarteirão Africano no seu presente estado, muitas das ruas de Berlim foram sujeitas a múltiplas renomeações – durante a ascensão do Nazismo, depois da sua queda, e dos dois lados do Muro de Berlim.
Para além do precedente, afirmam os activistas, existem vários nomes mais merecedores de honra, tais como os escritores negros W. Du Bois e Audre Lorde - ambos estudantes na Alemanha. “Pessoas negras têm feito parte da vida da Alemanha desde há séculos”, afirma o cientista político e activista anti-racista Jamie Schearer-Udeh. “Gostava que as crianças negras aqui pudessem também saber sobre os marcos positivos na história das pessoas negras na Alemanha”.
Algumas concessões já foram feitas no que diz respeito à renomeação das ruas. Em 1986 o governo local tomou a iniciativa pouco habitual de re-dedicar a Petersallee, mantendo o nome original. Desde então, em vez de Carl Peters, a rua presta homenagem a uma figura da resistência anti-Nazi, o Doutor Hans Peters. No cruzamento com a Afrikansiche Strasse, uma minúscula placa com o nome do novo homenageado foi anexada ao sinal da rua. Os defensores da renomeação, que consideram essa medida “uma batota”, estão igualmente descontentes com o sinal erguido no limite sul da área, cujos dois lados oferecem duas distintas versões da história do bairro.
Por outro lado, esses mesmos activistas tiveram motivos para festejar em 2010, quando Gröbenufer, uma rua do bairro de Kreuzberg cujo nome prestava homenagem a um negociante de escravos do século XVII, foi renomeada em memória da poeta afro-alemã May Ayim. Entretanto, o debate continua em torno do nome de uma das estações do U-Bahn, Mohrenstrasse: “Mohr”, cuja tradução literal é “mouro”, é um termo geralmente considerado depreciativo.
O debate em torno do Afrikanisches Viertel ganhou nos últimos meses maior visibilidade, após a formação, por uma deputada local, de um júri para discutir a renomeação das ruas, assim como a chegada da questão à imprensa nacional, com editoriais, não exclusivamente mas na maioria, a favor. Entre os defensores da renomeação, alguns chegaram mesmo a cobrir os sinais identificando as ruas com as suas próprias sugestões, para ira dos residentes locais. Foram publicados posts em blogues por grupos dos dois lados do debate, e alguns oferecem visitas guiadas da área abordando a sua história. Qualquer que seja o desfecho, Schearer-Udeh acredita que estas conversas são necessárias e só pecam por tardias: “A discussão sobre mudar ou não o nome das ruas forçou um debate público sobre um capítulo da história que não é muito conhecido, e talvez possa ajudar a alterar a percepção de que o colonialismo alemão não foi assim tão mau.”
Uma vez conhecida a verdadeira história por detrás do Quarteirão Africano, torna-se contudo impossível olhar da mesma forma para as suricatas ou girafas da estação do U-Bahn. Agora, sob a superfície, parecem apenas ecoar o pecado original da área - fantasmas dos sonhos aterradores de Carl Hagenbeck.
Este artigo foi oiriginalmente publicado no jornal GUARDIAN.