Jovens negros portugueses levam brutalidade policial a tribunal

Há onze meses foram constituídos arguidos, tendo sido acusados de invadir uma esquadra.

Porém, uma vez que no ano passado o caso fora arquivado, Flávio Almada, Celso Lopes, Rui Moniz, Miguel Reis, Paulo Veiga e Bruno Lopes testemunham agora não como acusados, mas enquanto vítimas, num julgamento sem precedentes que afastou do serviço 17 agentes da PSP – a polícia pública de Portugal.

O novo caso, a decorrer em tribunal actualmente, rejeita a versão dos acontecimentos tal como foi transmitida pelos agentes da polícia, e acusa-os de agressão física, rapto agravado, tratamento desumano, e de incitamento à discriminação, ódio e violência por motivos raciais – bem como de injúria e falsificação de testemunhos e documentação.

Rui Moniz, de 26 anos, uma das alegadas vítima, denuncia que foi forçado a permanecer imóvel, de rosto para baixo, no mesmo chão sobre o qual os agentes da polícia caminhavam, e que estes limparam os pés no seu corpo.Rui Moniz, de 26 anos, uma das alegadas vítima, denuncia que foi forçado a permanecer imóvel, de rosto para baixo, no mesmo chão sobre o qual os agentes da polícia caminhavam, e que estes limparam os pés no seu corpo.

“Nunca vimos tantos agentes da polícia em julgamento, acusados do mesmo,” diz Gonçalo Gaspar, advogado de defesa.

De acordo com José Fernandes, um advogado da equipa que representa seis das alegadas vítimas, todas homens, jovens e negros, “é a primeira vez que a polícia têm sido acusada por algo do género em Portugal – só o facto de a acusação ter acontecido já é uma vitória para nós”.

O bairro da Cova da Moura em Lisboa, onde a maior parte dos queixosos reside, é reconhecido pela sua  comunidade orgulhosamente cabo-verdiana.

Várias manifestações tiveram lugar em Lisboa contra o racismo e a violência policial.Várias manifestações tiveram lugar em Lisboa contra o racismo e a violência policial.

Mas a relação entre os residentes e a polícia tem sido tensa, com vários surtos de violência grave nos últimos anos, que envolveram o assassinato de Ângelo Semedo, de 17 anos, às mãos da polícia, em 2001, e a morte de um agente da polícia em 2005.

“Estes bairros, predominantemente negros, são sujeitos a um policiamento excepcional”, diz Fernandes, o advogado. “

“E eu sei disso porque cresci num deles. Muitas vezes aparecem em carrinhas blindadas e a usar máscaras … As pessoas têm muito medo deles”.

Entretanto, falando em defesa dos seus clientes polícias, Gaspar diz: “É um bairro muito problemático, onde há bastante crime e problemas sociais. Neste casouma certa força foi necessária.”

 

Os agentes insistem que a esquadra de Alfragide foi “invadida”, no seguimento de uma operação nas ruas da Cova da Moura nesse mesmo dia. Durante as diligências em tribunal, no entanto, um novo relato dos factos veio à luz,  de acordo com as vítimas.

Várias testemunhas atestam que foram arrastadas para a esquadra da polícia ou nela permaneceram à força, e que a situação assim se manteve durante dois dias, sem que tivessem lugar quaisquer acusações, período durante o qual sofreram insultos raciais e foram fisicamente agredidas.

As contradições começam a surgir quando se fala da operação policial nas ruas de Cova da Moura, na qual a polícia afirma que lhes foi atirada uma pedra. Durante esta mesma operação, Jailza Sousa, Neuza Correia e Celso Lopes foram atingidos – aparentemente inadvertidamente – com balas de borracha.

Um quarto elemento, Bruno Lopes, disse aos juízes que foi abordado pela polícia num café ali próximo, por agentes que lhe perguntaram: “Estás a rir de quê?”, antes de o atingirem com um bastão no rosto, arrastando-o, a sangrar, para dentro da carrinha da polícia e levando-o assim para a esquadra.

Flávio Almada, uma das vítimas, diz que os agentes da polícia “pareciam estar a gostar” de o agredir fisicamente.Flávio Almada, uma das vítimas, diz que os agentes da polícia “pareciam estar a gostar” de o agredir fisicamente.

Flávio Almada, de 35 anos, conhecido na comunidade como organizador e activista, diz que foi isolado pela polícia, tendo-se dirigido à esquadra para averiguar o que se passava com Bruno Lopes, de cuja detenção tinha conhecimento.

“Um deles apontou para mim e disse: ‘Apanhem esse, que tem a mania que é esperto, declarou em testemunho.

Uma vez dentro da esquadra da polícia, Almada diz que foi vítima de agressões físicas e insultos raciais por vários agentes da polícia.

“Disseram que ‘o lixo fica é para o chão’, depois atiraram-me para o chão e davam-me pontapés e socos”, disse ele, relatando também que tiveram lugar vários insultos raciais. 

“Depois alguém me pontapeou na face, estava a sangrar bastante e um dos meus dentes partiu-se. Davam-me pontapés e socos… Pareciam estar a gostar do que estavam a fazer”.

Fotografias tiradas imediatamente após a libertação das alegadas vítimas e entregues em tribunal mostram os arguidos com feridas e a sangrar.

“Parecia num inferno”, relatou aos juízes.

Entretanto, Rui Moniz, de 26 anos, disse aos juízes que foi abordado por agentes da polícia, ao sair de uma loja onde foi pedir informações acerca de um serviço de televisão por cabo destinado à sua mãe, junto à esquadra de Alfragide.

Segundo Moniz, os agentes da polícia disseram: “olhem, aí vem o amputado”.

Tendo sofrido um AVC em criança, Moniz coxeia e usa uma tala no braço.

Pelo menos 15 caos foram abertos contras políticas na Amadora.Pelo menos 15 caos foram abertos contras políticas na Amadora.

Após os agentes da polícia terem perguntado se os estaria a filmar, Moniz diz que lhe atiraram o telefone para o chão e lhe deram socos na face, antes de o arrastarem para a esquadra da polícia.

“Um deles pediu a minha identificação”, disse Moniz em tribunal, “e quando olhou para ela disse: “Olha, este é mesmo português”, ao que outro agente da polícia respondeu “ele não é português, é pretoguês” – novamente um insulto racial.

Moniz prosseguiu, descrevendo que foi obrigado a ficar deitado no chão, com a cara encostada ao chão – o mesmo chão sobre o qual os agentes caminhavam – e que esfregaram os  sapatos no seu corpo.

“Uma mulher apareceu para limpar o sangue do chão, e disse “Isto não tem nada a ver comigo, isto é tudo com os meus colegas”, disse em tribunal.

Até ao momento, os agentes da polícia negaram todas as acusações que lhe têm sido feitas.

“Sentem-se revoltados, sentem que têm sido vitimizados”, diz o advogado de defesa, Gaspar Gonçalo, “e sofreram tanto pessoal como profissionalmente”.

Alguns dos réus afirmaram perante os juízes que o caso gerara danos no seu bem-estar psicológico, embora muitos continuem em serviço em diferentes locais, desde que o juiz negou uma petição para que fossem suspensos do trabalho, enquanto durasse o julgamento.

Os agentes da polícia beneficiam também de apoio legal, e outros tipos de apoio, incluindo dos sindicatos da polícia.

Na Cova da Moura, há sentimentos ambivalentes acerca do julgamento e sobre qual será o seu desfecho. Para Fernandes, que trabalha naquele local há vários anos “este caso é visto pelo público em geral de cima para baixo, mas a comunidade aqui vê-o de baixo para cima. As pessoas sabem que, caso corra mal, vão sofrer as consequências.”

Ainda assim, Semedo sente que o caso é de “enorme importância – não só porque é um forte indício de que a polícia não pode fazer tudo o que deseja com impunidade, mas também porque a atitude aqui tem sido sempre a de que “este tipo de coisa nunca dá em nada”. Mas agora as pessoas começam a aperceber-se de que pode afinal dar em alguma coisa”.

Desde que este caso se tornou público, na município da Amadora, foram abertos pelo menos 15 outros casos contra agentes da polícia.

Os três juízes irão ouvir os testemunhos de mais de cem pessoas e espera-se que o julgamento decorra, o mais tardar, até ao final do ano.

“Pessoalmente, eu preferia não passar por tudo isto – claro que preferia”, admite Almada, falando acerca do julgamento. “Mas temos de quebrar o ciclo do silêncio”.

 

Translation:  Sara Santos

por Ana Naomi de Sousa
Corpo | 25 Novembro 2018 | Alfragide, Cova da Moura, julgamento, LBC, negros, violência policial