As invisíveis
“Esse que não é meu filho, não protejo, nem bendigo nem alimento (…) Não me incomodem com os lamentos e as chatices, eu moro no país do futuro dos novos prédios e da telecomunicação, a mim não”, escrevia o autor angolano Ondjaki em 2013.
Estamos em 2019, e fala-se em ventos de mudança. As recentes restruturações no panorama político e na estrutura do MPLA, com a chegada de João Lourenço, têm sido consideradas passos importantes no combate à corrupção.
No entanto, a recente implementação do programa ‘Operação Resgate’ tem suscitado alguma controvérsia sobre o modo como o governo enfrenta a ‘ilegalidade’ das vendas ambulantes e do mercado informal.
Desde a implementação da ‘Operação resgate’ em novembro circulam pelas redes sociais , maioritariamente pelo whatsapp e facebook, inúmeros posts e vídeos que denunciam a violência policial durante as ‘rusgas’ que retiram tanto a mercadoria, como os rendimentos das mulheres zungueiras.
O termo ‘Zungeira’ deriva da palavra ‘Kuzunga’ em Kimbundo, que significa ‘circular, deambular, ou movimentar-se de um lugar para o outro’. Vários apontam que este tipo de ofício ganhou mais presença após a independência em 1975, impulsionado pela situação precária económica. No seguimento do final da guerra civil em 2002, o aumento das populações nos centros urbanos e a crescente movimentação de ‘deslocados’ foram também fatores que contribuíram para a dinamização do mercado informal em Angola.
Desde o período da guerra que as mulheres começaram a assumir responsabilidades e atividades económicas que anteriormente eram da exclusiva responsabilidade dos homens. O rendimento da mulher no setor informal tornou-se imperativo para a sua sobrevivência e das suas famílias. Sem estruturas de sobrevivência e sem acesso à escolaridade: são estas as mulheres que desafiam a ordem social imposta. A cidade torna-se um espaço de opções e alternativas de sobrevivência.
Atualmente, a resistência das Zungeuiras face às restrições tem levado a pequenos protestos, e despoletado uma reação violenta por parte das forças policiais. Em fevereiro circulavam fotografias de uma jovem brutalmente agredida por um polícia e deixada inconsciente num bairro habitacional.
No entanto, o maior protesto ocorreu depois do assassinato da jovem Juliana Cafrique de 28 anos no Bairro Rocha Pinto em Luanda, a 12 de março, por parte de um polícia. Juliana foi brutalmente assassinada depois de implorar que não lhe retirassem os seus produtos, supostamente diante do seu filho de seis meses.
Mãe de três filhos pequenos, era o único sustento da família, o seu marido estava desempregado. Juliana é o exemplo de muitas mulheres que hoje em dia são as principais fontes de sustento das suas famílias – num panorama económico frágil onde as oportunidades de emprego são escassas. Como muitas das Zungueiras que são migrantes do interior do país – Juliana era originária de Libolo, província do Kwanza-Sul. Teria vindo para Luanda à procura de melhor qualidade de vida.
É importante salientar a amplitude de modos como as mulheres enfrentam a sua participação no mercado informal. Algumas jovens encaram o mercado informal como uma oportunidade de trabalho temporário, enquanto estudam ou equilibram múltiplos trabalhos. Para muitas famílias, esta é a única via de rendimento.
Por vezes, muitas das zungeiras ocupam também lugar em mercados ‘formais’ – oscilando entre o mercado ‘oficial’ e informal, de modo a que não se deve homogeneizar estas atividades.
A subsequente revolta que se deu no bairro Rocha Pinto deve ser enquadrada numa crescente frustração por parte do povo, perante órgãos de estado que lidam com indiferença para com a vida do ‘outro’. No dia 12 de março, em que Juliana Cafrique perdeu a sua Vida, não houve qualquer movimentação ou tentativa de prestação de auxilio pelas autoridades competentes.
Hoje, o crescente número de protestos assinala a desilusão com a violência social e estrutural que os mesmos enfrentam perante a indiferença dos órgãos estatais. Nos musseques há inúmeras mortes que continuam a não ser registadas e propositadamente silenciadas.
A reação violenta da população deve ser encarada perante um contexto de autocensura em Angola assim como da política de medo de revolta, que se deve maioritariamente a um legado de guerra e aos acontecimentos incertos do 27 Maio de 1977. O massacre que se seguiu ao alegado golpe de estado – e a sua subsequente repressão são alguns dos fatores contribuintes para o silenciamento do povo.
No entanto, desde 2012 que há um crescente ressentimento pelas políticas do governo – confirmado pelo gradual aumento de protestos.
A “Operação Resgate”, colocada em prática a seis de novembro de 2018, tem como objetivo reforçar a autoridade do estado – e de reduzir o que é denominado pelo estado como os “fatores desencadeadores da desordem e insegurança” – visando a prevenção da imigração ilegal , e a proibição de venda de produtos não autorizados em mercados informais.
No entanto, é importante enquadrar a Operação Resgate no panorama ideológico do quadro do MPLA, e a consequente visão de ‘modernização’ que tem guiado o seu percurso de restruturação pós-guerra.
Do mesmo modo, é premente enquadrar este atos desmedidos de violência por parte das forças policiais no panorama político angolano atual – onde o desejo de progresso posiciona as populações mais pobres como obstáculo, levando a práticas de exclusão.
Em Angola, continua a existir aquilo que o autor Ricardo Soares Oliveira1 denomina como a construção de paz iliberal: o reerguer do pais é predominantemente baseado na consolidação de poder político e económico, priorizando uma visão elitista.
A produção quotidiana de espaço nos musseques, e a dinamização do mercado informal — não estão em harmonia com a imagem de uma Luanda contemporânea que o governo pretende construir e internacionalizar.
O assassinato de Juliana Cafrique é importante ser enquadrado diante de um plano governamental que trata com indiferença aqueles que não se ‘assimilam’ diante a visão do MPLA para uma ‘Angola Moderna’. Este é o projeto que designa uma ‘Política de Pertença’ .
Hoje é de máxima importância que nos recordemos do nome de Juliana Cafrique, e de muitos outros que a antecederam e continuam a ser sujeitos a injustiças, face a uma ausência de programas sustentáveis que ofereçam alternativa. Infelizmente, estas continuam a ser práticas institucionalizadas, e não casos isolados.
O caso de Juliana Cafrique relembra-nos duma verdade desconfortável em Angola: que nem todos aproveitam dos direitos á cidadania.
- 1. Soares de Oliveira, Ricardo. “Illiberal peacebuilding in Angola.” The Journal of Modern African Studies 49:2 (2011): 287-314.