Banlieu

Nayef (após tossir colocou uma voz grave e, com o dedo indicador, apontou para o centro da câmara que o filmava)

- Disseste-me que sou um idiota por ter queimado a Biblioteca. Um verme por ter grafitado aqueles prédios com as placas de Alojamento Local na zona cinzenta da cidade. Depois, chamaste-me capitalista, porco, burro e incoerente porque parti as vitrinas da NIKE, do LIDL, por ter trazido uns pares de Airmax e sacos de comida para o bairro. Continuaste a chamar-me de burro, burro, burro mais de trezentas vezes, contei. Na televisão, no jornal, nas caixas de comentários e nas redes sociais fizeste questão de não me ouvir, de não me ver. Eu que continuasse a desempenhar o meu papel de delinquente. Pintaste a minha cara de fantasma com o epíteto: o inimigo dos subúrbios, o que vinha para assustar quem me pudesse ver. Continuas a não querer ouvir-me?

(com as mãos a descer lentamente dos olhos até ao pescoço)

Esta cara está tatuada: jovem, negro, árabe, do bairro. Pobre. A tua biblioteca continua em chamas (desculpa, mas não foram os comentadores moderados que começaram este jogo do Nós e Eles, dos responsáveis e dos delinquentes?), e o Ministro do Interior, que prospera nos negócios imobiliários urbano-turísticos, que inaugurou dezenas de bibliotecas pelo país, oferece-nos apenas uma resposta: colocar quarenta e cinco mil polícias nas ruas todas as noites? Será que ainda faz sentido frequentar a biblioteca para estudar?

Eu sou da juventude marginal, insubmissa, dos bairros pobres, das pessoas que esqueceste. Afastaste, talvez por medo. A minha indignação contra o Estado, contra a polícia que matou mais um de nós, não pode ser silenciada. O próximo serei eu.

E se o Ministro da Justiça, que estudou nas melhores universidades, perante esta manifestação geral de desespero, só tem uma solução a oferecer, prender os jovens, então, para que serve a universidade?

Se o Presidente da República, que frequentou as mais conceituadas mediatecas, bibliotecas e bons colégios, seguramente com vários pares de AirMax sem ter partido vitrines, escolheu esses ministros e os mantém. Se esse presidente, que enfrentou a ira dos pobres pelo aumento do preço da gasolina ou da idade da reforma, não encontrou outra resposta além de ferir, mutilar e matar pobres desarmados com armas pesadas; se ele, com uma cabeça de Tintim, perante a dor e a raiva incendiada pelo assassinato de um menor, afirma que a revolta é mera consequência dos videojogos e das redes sociais, então para que serve frequentar lugares como as bibliotecas?

A médiathèque Jean-Macé de Metz Borny ardeu na noite de 30 de junho A médiathèque Jean-Macé de Metz Borny ardeu na noite de 30 de junho

Na biblioteca, nas faculdades e nas escolas pode aprender-se coisas, aprofundar conhecimento, até amar o pensamento. Mas, no fundo, é isso que o governo odeia. Eles, que frequentaram todos esses lugares, mandaram prender o responsável de uma editora em Londres sob o pretexto de que ele participara numa manifestação contra a nova lei da idade de reforma. Então, por que devemos procurar o conhecimento?

A escola republicana como um elevador social? Quanto mais quanto tempo dura essa mentira? 

Penso no meu pai, Karim. Frequentou uma faculdade medíocre num subúrbio medíocre onde ainda sobrevivemos de forma medíocre. Esta história, que ele não se cansava de contar, aconteceu há cerca de quarenta anos:

“O ministro da Cultura costumava enviar artistas para visitarem as nossas escolas, éramos alunos dos guetos pobres, árabes e negros. Um dia, foi lá uma escritora. Infelizmente, era uma idiota. Entrou na sala de aula, cruzou as pernas e disse apenas: 

“Escrevo para encontrar a morte”. 

Então, o Mamadou, que era o meu melhor amigo, e um tipo corajoso, sacou de uma butterfly e disse-lhe: 

“Se quiseres, podemos resolver isso aqui e agora”. 

A mulher gritou por socorro, gritou, gritou, gritou e o Mamadou acabou por ser expulso da escola. Essa mulher nunca mais voltou àquela zona. Mamadou nunca mais voltou à nossa escola. Dedicou-se ao negócio para o qual somos treinados desde que nascemos, como os ministros são esperados nas salas de aula das melhores faculdades. Percebemos que Mamadou estava no negócio errado no dia em que ele chegou ao bairro ao volante de um Mercedes SLK cinzento. Era um descapotável lindo. Apesar do seu negócio, todos no bairro gostávamos dele. A cada visita, trazia ténis Airmax para todos os putos do bairro. Infelizmente, um dia Mamadou foi morto. Na verdade, nunca soubemos exatamente como ele morreu. Se não tivesse sido expulso da escola, a sua vida poderia ter sido diferente.

Passado um ano do incidente com aquela escritora histérica, outro escritor visitou a nossa escola. Gustav, corajoso para comparecer após o acontecimento, chegou à sala de aula com um sorriso no rosto, cumprimentando todos e oferecendo-se para ler uma história. Durante uma hora, ouvimos o texto que explorava a capacidade da literatura para alterar a nossa percepção, outra forma de olharmos a vida. Naquela sala de aula, ouvia-se a respiração de cada um de nós. No final, Gustav revelou que aquele texto fora escrito por um homem chamado Franz Kafka e prometeu-nos contar porque o tinha escolhido. Antes disso, no entanto, desejava saber o que pensávamos sobre aquele texto, se o permitíssemos. Pediu-nos, por favor, que escrevêssemos as nossas ideias.” 

Quando o meu pai recordava aquele momento, a emoção apoderava-se dele. Acredito que aquele encontro com Gustav mudou a sua vida: 

“Não posso esquecer como Gustav sorria ao fazer esse pedido, ele transparecia uma inspiradora calma e confiança em nós. Não era educação, era respeito, não era distância, era uma atenção profunda pelo que tínhamos para dizer. Fomos tratados como nunca. E de seguida todos escreveram, foi um festim de palavras. Antes de sair da sala de aula, aquele escritor disse-nos que tinha a impressão de que alcançaríamos grandes coisas juntos. No final desse ano, reuniu os textos que escrevemos num livrinho. E confrontou o que escreveramos com frases de Faulkner, Malraux e Camus. Na primeira página desse livrinho estava escrito: Porque qualquer um pode escrever.”

 

ficção escrita a partir desta notícia. 

por Francisco Mouta Rúbio
Cidade | 16 Julho 2023 | biblioteca, frança, juventude, Marselha, Paris, revoltas, rua, tumultos