Sim aos Comboios, Não aos Saloios*
(Um texto sobre a peça de David Greig e uma carta à Europa)
aviso: este texto deve ser lido em voz relativamente alta, mas não deve ser lido em estações de comboios, muito menos em bares, pois contém linguagem potencialmente ofensiva e aborda uma peça em que se fuma, fode, bebe-se vodka e cerveja e dizem-se palavrões em palco. No texto também.
Antes de apanhar o comboio para esta Europa (peça de David Greig, encenada por Pedro Carraca dos Artistas Unidos) caminho descalço em direção ao São Luiz. Depois de uma farta refeição com molhos e purés inspirados nas fumegantes Frankfurt e Viena, encontro um sem-abrigo por baixo da arcada escura do Teatro São Carlos. Boa noite, mas não tenho moedas. Ele acena com a mão escondida dentro de uma luva preta. O frio da calçada portuguesa sobe-me pelos ossos e acelero as pernas até um lugar aquecido a três ou quatro filas do palco. A olhar para os frescos no tecto azul do teatro estão duas senhoras a tentar uma selfie impossível. Olho em frente, encontro outro sem-abrigo atrás do pano descoberto. Aliás, dois: Sava e Katia pernoitam numa estação cinzenta onde NÃO HÁ COMBOIOS. As fronteiras começam a dissipar-se. Num jogo de espelhos 2023 encara o rosto de 1994, as rugas escondidas por idênticas máscaras tragicómicas reconhecem-se. Uma terra sem-nome, esquecida no coração da Europa, partilha os mesmos medos com os habitantes das unhas do velho continente. No dia 10 de Junho de 1995, ali tão perto do São Luiz, um grupo de neonazis foi celebrar o dia da raça através de uma caça ao preto. Por fim, mataram Alcindo Monteiro como se soprassem as velas do bolo de aniversário, era o Dia de (louvar) Portugal. Em 2023 um dos participantes desse grupo, que acusou Mamadou Ba de o difamar, viu a sua honra e bom-nome restabelecidos pelos tribunais da República Portuguesa. Continuamos na Europa sem fronteiras e com a bandeira dos direitos humanos erguida bem alto, seja 1994, 1995 ou 2023.
Já devia ter apanhado o comboio para esta peça no domingo anterior, mas não cheguei a tempo à estação. Costuma acontecer por aqui, perdermos comboios. Falhei a chance de presenciar outro protesto pelo clima (a interrupção do início da peça), por parte de activistas climáticos que entenderam as regras de ouro para brincar ao jogo mediático. Tal como Berlim e os seus companheiros low-brow perceberam como colocar o nome da sua terra-natal na capa dos jornais ou como obrigar ministros a visitar as ruínas da estação onde os comboios deixaram de parar. Tal como os novos velhos políticos percebem que, para ascenderem, devem excitar a comunicação social esfomeada — enquanto regam com álcool as feridas das democracias. E a violência da guerra começa assim, não é? Quando nos viciamos nesse frenesim alucinante do sangue a esguichar a qualquer hora, em qualquer direcção.
Meu continente,
Terra descendente de valas comuns, campos de concentração, muros, massacres, cercos e guetos o que aprendeste nos últimos vint´anos? Porque continuas a convencer-nos da tua superioridade moral enquanto a lógica colonial, que te construiu e enriqueceu, te corrompe? Estás presa aos erros do passado, perdida entre visões de uma mesma história. Será que ainda não ensinaste a história aos teus partidários? Quando não há comboios as pessoas não se movem, ainda te lembras? E os homens não podem ser pedras. Poucas são as personagens poéticas que, como Adele, conseguem sorrir ao ver os comboios ao longe e imaginar. Talvez o teu maior problema, Europa, tal como o de Berlim, seja “a falta de imaginação”. É por estas alturas que, com a desculpa da técnica, se queimam livros, utopias, princípios e depois quaisquer meios servem para justificar o fim. Quando não há emprego, quando não se estende a mão, quando os imperativos financeiros afogam a humanidade, as pessoas tornam-se presas dos lobos saloios* que nunca deixam de circundar as cidades. Lobos à espera para atiçar a gente zangada pelas cidades esquecidas. A rédea está solta. Sem o Estado Social que fundaste, sem a liberdade que desenhaste tu não existes Europa. E perante esta dor os comboios que te atravessavam vão sucumbindo enferrujados. Comboio que não sai da estação é bomba-relógio a tilintar. Europa, a tua identidade vende-se por um imóvel na Rua dos Quinhentos Mil Euros? Ou dum milhão dourado? Por uma foda na casa de banho da estação? É esse o valor para se ser Europa? Aqui, com muito dinheiro qualquer humano é legal. Todos queriam apanhar comboios para te percorrer e afinal agora as tuas fronteiras são travões, são frágeis reféns dos traços mais fétidos de todos. Desenham-se nos púlpitos do parlamento faixas simplistas, gritam-se muretes frágeis, esboçam-se portos sem-abrigo, no café e no bar calculam-se números de “pretos que nos vêm roubar o trabalho”, borra-se a pintura toda por todo o continente. Quando as canetas de feltro secarem, os pincéis enxaguarem e a “tua pela esticada”, toda esticada até rasgar, deixar de interessar fechar-nos-emos todos em casa a tentar decorar essas linhas perigosas que nos dividirão. Quando a fábrica de lâmpadas fecha, não se servem sopas e os comboios param o Moroco deixa de ser o “tipo agradável, porreiro e engraçado” e transforma-se no inimigo sombrio a quem vamos esbofetear porque sim. A cigana continuará a ser a puta-alvo que suja o nosso destino porque sim. O refugiado a tal víbora que suga as nossas últimas gotas de sangue podre. Tu, Europa, começa a ser claro, estás a tornar-te uma distopia. Serás recordada assim? Um cadáver que segura um cartaz a dizer “somos tão bons para o resto do mundo”. Mas “uma manifestação pacífica deve resultar nalguma coisa” e para isso “é preciso um bom slogan, tal como um bom acrónimo”, o chefe da estação Tret até tem razão. E as bombas começam a cair no teu quintal. Tens o peito cheio de lágrimas e cicatrizes, mas já as esqueceste. Perdeste o braço direito em janeiro de 2020. O braço esquerdo está dormente de tanta bala, tanta bomba que há meses te atordoam. Obliteraste esse braço — nesta era do sangue constante o enfado é uma questão de dias — e agora é a perna esquerda. Nova dor. Mais bombas e balas a subirem-te por esse corpo pesado, estendido. A fome e a sede secam-te alguns membros e começa a faltar-te cabeça, a tal memória. Demoras a reagir e a voz falha-te. Ainda se houvesse comboios. Pareces estar a ruir. E continuas, depois de 1914, 1936, 1939, 1994, ainda em 2023 a ser incapaz de gritar Parem a Guerra, mas ainda pintas paredes com “Estrangeiros Rua”! Mas tu não és também estrangeira? Não seremos nós os filhos estrangeiros? És um ser falho orquestrado por vozes desafinadas num extremo que cresce dentro de ti. Estás a endireitar-te cada vez mais até ficares estirada, imóvel, esticada como essa pele por onde vão deixar de se desenhar as linhas de todos os comboios europeus. “Como é que é possível ouvir isto em pleno século XXI?”, tornou-se um lugar demasiado comum, uma junção de palavras ocas que ganham fuligem ao serem agitadas e nada acontecer. Um comboio (in)quieto. Um conjunto de membros (des)estacionados a assistirem ao enorme continente soçobrar. Cadáveres e corpos sobrealimentam a televisão arco-íris que nos distancia do “diálogo, ainda te lembras como funciona uma conversa, Adele? Eu digo-te qualquer coisa e tu respondes”. Um ressentimento cresce e inflama Berlim. Em Roma, Estocolmo, Helsínquia, Budapeste, Cracóvia, talvez Paris, uma lista sem fim, também aumenta. Violência rima com consequência e a gramática não é um acaso. A culpa será do “parasita preto, cigano, da esquerda, da mulher, do patrão”, do que estiver mais à mão. E sabemos: a culpa morre estrangeira. Um europeu podia apodrecer em 1994 em poucos meses. Perdia o emprego, perdia a mulher e “estou fodido, estás fodida, estamos F-O-D-I-D-O-S”. Em 2023 olhamos para trás, para a frente e para os lados e vemos que um Homem Fodido aprende a matar, violar e destruir uma estação de comboios, uma família. Muitos Homens Fodidos podem destruir uma nação, um continente. Mas também eles foram Europa, não são diferentes de nós.
- não me refiro a quem é dos arredores de Lisboa, a norte do rio Tejo ou quem trabalha e vive no campo, mas aos grosseiros que revelam falta de educação, civilidade ou bom gosto, dos que agem de forma desonesta (muito obrigado, Priberam).
EUROPA DE DAVID GREIG
ENCENAÇÃO PEDRO CARRACA / ARTISTAS UNIDOS
Europa mostra personagens em movimento, física e emocionalmente, algumas agarrando-se dolorosamente às certezas do passado, outros procurando novos destinos e experiências. Uma estação ferroviária abandonada numa cidade fronteiriça sem nome. Os comboios já não param ali e a cidade vai-se tornando vazia e introvertida. Uma história íntima sobre privação de direitos, desconexão, amor e saudade, passada numa qualquer pequena cidade europeia perdida num mundo maior. A resposta de David Greig à guerra civil nos Balcãs e às forças da globalização, que não perde atualidade na Europa em que vivemos.