Cabo Verde, História e a continuidade colonial
Para muitas pessoas não faz sentido falar do colonialismo nos dias de hoje. Na “melhor” das situações, defendem que o colonialismo um dia existiu, mas foi interrompido, inaugurando-se, assim, uma nova fase na história do mundo. Tudo linear e simplista!
O colonialismo nunca foi, nem haverá de ser, apenas um processo de ocupação de determinado território, controlo dos variados recursos nele produzidos. O colonialismo é, como ensinou o nosso ancestral Frantz Fanon, a violência no seu estado puro. Isso mesmo, violência em estado puro. Violência total! Não é uma violência esporádica ou ocasional! Não é algo eventual ou pontual. Ela é permanente e contínua! Física, contra os corpos dos sujeitos colonizados. Psicológica, por se tratar de um terror psicológico! Sexual, contra os corpos negros! Epistémica, causando um epistemicídio permanente. Cultural, tentativa de um genocídio.
No próximo mês de novembro vai completar mais um ano do “pacto colonial”, preparado na capital alemã, Berlim, nos anos de 1884-1885. Um século antes do tão aclamado e criticado “Consenso de Washington”, preparava-se um grande “consenso” que viria marcar indelevelmente, entenda-se violentamente, a vida do continente. A “partilha de África” do jeito como é falada e ensinada parece-me bastante superficial e “soft”. A redefinição, abusiva, arbitrária e cruel, da cartografia africana não teria todo esse alcance se não visasse, acima de tudo, um esquartejamento, balcanização, fragmentação da história, da memória, da cultura, da identidade, da própria humanidade do povo africano.
Portanto, toda e qualquer luta no continente, hoje e amanhã, não pode ignorar ou menosprezar, sob pena de cair no fracasso, o lugar do “Consenso de Berlim” e o seu peso na renovação permanente do imaginário colonial que se construiu globalmente acerca de África e das africanas e africanos. Sem botar fogo nesse “consenso”, será extremamente difícil se alcançar uma verdadeira libertação do continente africano. Infelizmente, a maior parte dos “nossos” dirigentes, os de ontem e os de hoje, ignora, intencionalmente ou não, o impacto deste facto! No seu lugar, falam de questões “nacionais”, do seu respectivo “Estado”, da sua “pátria”, etc. Ignoram eles que o que chamam de “nacional” é apenas uma invenção/criação colonial? Bando de berlinistas!
E em Cabo Verde, o que está sendo feito nesta matéria, pelo menos por uma mera discussão? Nada! Essa é a resposta: NADA! Em Cabo Verde, o “projeto” político “nacional” (entenda-se do Estado) é o BRANQUEAMENTO! Da história, da memória, do imaginário, dos patrimónios (materiais e imateriais). As velhas teses (não tão velhas assim) luso-tropicalistas, claridosamente partilhadas nestas ilhas, fizeram escola. Aqueles que consideravam Gilberto Freyre um “messias” deixaram um legado enorme nesta matéria. Aliás, o próprio Estado assumiu este legado com toda a convicção. Por esses motivos assumiu-se essa postura perante a história: BRANQUEAMENTO permanente e total.
Sendo assim, tornou-se quase heresia falar da história da escravatura, do colonialismo e do neocolonialismo neste país! Não se fala desses assuntos porque o Estado e a elite (política e “intelectual”) não gostam. Não se fala porque assim vamos afetar a nossa relação com Portugal, ou a Europa de forma geral. Nem se pode falar destas questões por sermos nós tão “específicos”, tão “especiais”, tão “ singulares”!
No lugar de uma posição de contra-colonização permanente, como aclama o grande quilombola António Bispo, em Cabo Verde vai havendo, cada vez mais, uma veneração do nosso passado colonial. No lugar de uma catarse histórica, Cabo Verde prefere orgulhar-se deste passado. Os símbolos, as marcas, as figuras coloniais, ao invés de serem removidos (no sentido mais profundo do termo), vão sendo re-erguidos. Eles estão sendo renovados, “rejuvenescidos” e revitalizados! Esta situação foi sintetizada numa única frase, proferida “sabiamente” pelo atual Primeiro-Ministro dessas (des)afortunadas ilhas: “O nosso lugar natural é a Europa”. Literalmente… É essa mesma pessoa que mostrou a sua (profunda) vontade que Cabo Verde entrasse na União Europeia, já que o Reino Unido optou por Brexit…
Há bem pouco tempo, um dado Ministro, um “biscateiro” do imperialismo, afirmava que Cabo Verde e os EUA têm uma relação diplomática de 200 anos (1818-2018). 200 anos… Algo de errado? Tudo de errado! Como é possível falar de uma relação de 200 anos se Cabo Verde, praticamente na mesma altura que o Ministro proferia aquele “discurso”, celebrava (embora não tenhamos tantos motivos para o fazer!) apenas 43 anos de independência política? Faz algum sentido falar de duas centenas de anos de diplomacia, se Cabo Verde era apenas uma colónia portuguesa? Se naquela altura (1818) ainda nem a própria escravatura tinha sido abolida, mesmo que apenas formalmente, deste território, algo que viria a acontecer 60 anos depois? Para ele o que existe é apenas uma linha de continuidade histórica. É a isso que me refiro quando falo de “continuidade colonial”.
Por tudo isso é que a estátua de Diogo Gomes se mantém intacta, em pleno Plateau, simbolizando a preservação do mito da “descoberta”. A praça “principal” de Plateau carrega ainda o nome de Alexandre Albuquerque! Nessa mesma base ideológica, também foi inaugurada recentemente uma rua Fernão Magalhães. As ruas, avenidas, estradas, instituições carregam nomes que remetem diretamente para o colonialismo. Por essa mesma razão que a Polícia Nacional (será ela nacional?) comemorou os seus 140 e tal anos. Da mesma forma, é com base nesse princípio de BRANQUEAMENTO que há pouco tempo se encenava, na Cidade Velha (símbolo maior da escravatura nestas ilhas), a presença dos jesuítas em Cabo Verde, gastando uma fortuna para a sua realização…
Enfim, exemplos não faltam… O que falta, na realidade, é um acordar cultural e político, de modo que permita uma luta pela descolonização, da história, da memória e do espaço público. A juventude, assumo desde já o meu engajamento, deverá criar e dinamizar essa “agenda” de contra-colonização… É a principal luta que devemos assumir, por nós, pelos ancestrais e pelas próximas gerações.