Cafés e cinemas da Almirante Reis que contam uma história da resistência
Deste lado mais popular da cidade, também os teatros, cafés e cinemas da avenida tiveram um papel importante na revolução. Foram refúgio de ativistas e intelectuais a conspirar. Um roteiro da Egeac percorreu-os.
Aquilino Machado caminha a passos largos, a marcha interrompida apenas quando mais um prédio em ruínas lhe desperta a atenção. É geógrafo, mas poderia ser arqueólogo, daqueles dos filmes, a ler nos escombros um passado precioso. “Ali, funcionou o teatro tal. Lá, tal cinema. Acolá, o café tal”, discorre, sem titubear. E assim, uma hora e dois quilómetros e meio depois, um século de história da avenida Almirante Reis passou diante dos nossos olhos.
A Liberdade pode ser a avenida-símbolo do 25 de Abril, mas outras vias de Lisboa também tiveram papel importante de resistência nos anos sombrios. A Almirante Reis tem algo a dizer sobre o assunto: sobre os seus teatros, cafés e cinemas que foram refúgios de ativistas, intelectuais e artistas, reunidos em volta de uma chávena a conspirar e, principalmente, a sonhar com outros melhores dias, livres dos tons de cinza do Estado Novo.
Resgatar esta memória foi o objetivo da série de visitas guiadas que a EGEAC realizou durante o emblemático mês de abril. O guia desta viagem no tempo foi o geógrafo com espírito de arqueólogo Aquilino Machado, 53 anos, nas horas vagas professor do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, um aficionado em tempo integral no papel dos cafés na construção da identidade lisboeta.
Sopram os ventos republicanos
Foi com um café no Largo do Intendente que teve início a nossa conversa. E não começa no Intendente por acaso. “É aqui que nasce, antes da Primeira República, o eixo viário que se transformaria na Almirante Reis”, explica Aquilino.
O chafariz, removido do largo para uma praceta vizinha, marca o fim da Rua da Palma e o início da então avenida Dona Amélia, que em seguida receberia o nome de uma das figuras-chave da Revolução Republicana, em 1910.
Os ventos republicanos sopraram as velas dos primeiros teatros e cinemas da Almirante Reis, de cariz popular, em contraponto ao público aristocrático e burguês da Av. da Liberdade. Um destes teatros, vizinho ao chafariz, era o Real Colyseu de Lisboa, que além de encenações teatrais, recebia espetáculos circenses. O vaudeville de outrora cedeu lugar ao monótono entra e sai de carros de uma garagem. A poucos metros, num edifício hoje parcialmente encerrado, funcionava o cinema Rex.
Até ao golpe de 1928 caminhavam pela Almirante Reis operários, sindicalistas, anarquistas, militantes do pensamento livre. Ali, mesmo, no Intendente, funcionava a Associação do Registo Civil, que cumpriu um papel importante na luta pelos direitos civis e de independência da Igreja, que na época época reclamava para si a tutela de homens e mulheres, do nascimento à morte. A associação pregava a igualdade entre os géneros, realizava divórcios e defendia o funcionamento laico dos cemitérios.
Alemanha, Portugal e Chile
Nesta época, a Almirante Reis terminava na Praça do Chile. “Para além, só havia hortas”, conta Aquilino. Antes das verduras e legumes, porém, a cerveja. Vizinha à praça, erguia-se, monumental, a Cervejaria Germânia, de 1912, que em 1916, movida pelos ressentimentos da guerra, adotaria o nome de Portugália. O espaço comportava ainda mesas de bilhar e também um cine-esplanada, ao ar livre. Dessa parte, esse efusivo passado está hoje sepultado em silenciosas e tristes ruínas.
“A Praça do Chile também limita um traço arquitetónico bem peculiar da Almirante Reis, de largura estreita, se comparada à Liberdade, com 25 metros, e prédios com a tipologia característica dos edifícios de rendimento que, aos poucos, foi sendo substituída pelo traçado modernista”, explica Aquilino. Apenas depois a avenida avançaria em direção ao Areeiro, já com ares do Estado Novo, mais ampla, tão ampla que ganharia uma alameda.
A ditadura militar, que culminaria no Estado Novo, paulatinamente calou as vozes contraditórias ao regime que passaram a sussurrar em cafés e nas antessalas dos cinemas, como o Imperial (depois, Pathé) ou ainda o Lyz (posteriormente, Roxy), este último hoje um prédio comercial, que se destaca dos vizinhos pela vistosa abóbada que salta na avenida, herança dos tempos de espaço de projeção.
Surrealistas a saltarem sobre as mesas
Não muito longe, uma loja de aparelhos de audição guarda as memórias do ruidoso movimento surrealista português. Era o Café Hermínius, onde os surrealistas António Pedro, Marcelino Vespeira, António Domingues, Fernando Azevedo e Mário Cesariny reuniam em insólitas tertúlias, com direito a saltos sobre as mesas. Aquilino recorda um testemunho do próprio Cesariny sobre o Hermínius como o palco de sátiras e de “recusa violenta da ditadura”, mas que, nas palavras do poeta, “era tudo tão estranho que a polícia não alcançava”.
Mais adiante, as portas fechadas de um comércio inativo encerram as histórias de outro café, o Pam-Pam, ponto de encontro de intelectuais e profissionais liberais, um ambiente bem mais comportado que a vizinhança surrealista do Hermínius. Aquilino chama à atenção para o nome, uma onomatopeia, seguindo ao modismo dos anos 1950 de se atribuir aos estabelecimentos nomes que mimetizavam um som, como a pastelaria Tique-Taque, que funcionou em outra via histórica, a avenida de Roma.
Durante a caminhada, Aquilino aponta aqui e acolá para a sede de alguns sindicatos, bem como para um cartaz a convocar os trabalhadores para a passeata do 1º de Maio. “O facto de, historicamente, essa manifestação percorrer a Almirante Reis e não a Av. da Liberdade é um exemplo de um espírito de resistência desse tempo, de luta pelos direitos”, conta.
Este espírito teve como catedral o Cinema e Café Império, na Alameda. O café, ainda em operação, foi durante anos o ponto de encontro dos lisboetas, entre eles, alguns conspiradores, claro. “Há um conto do Fernando Namora que se passa aqui”, ressalta Aquilino, referindo-se a Dois Ovos ao fim da Tarde, uma divertida história que envolve o famoso pintor Luís Dourdil, os tais dois ovos do título e o processo de confeção do portentoso painel que decora o espaço.
O Cinema Império teve um destino menos digno. Desde que abriu as portas, foi a sala preferida dos cinéfilos de Lisboa e celebrou a chegada do 25 de Abril com uma sessão de O Couraçado Potemkine, de Eisenstein. Mas nem o titânico cinema foi capaz de resistir à concorrência das salas dos centros comerciais e, em meados dos anos 1990, acabou convertido num templo pentecostal. Desde então, os ideais laicos, de liberdade e diversidade nunca mais entraram em cartaz.
O trecho final e mais recente da Almirante Reis, entre a Alameda e o Areeiro, não é relevante para Aquilino, pelo menos no resgate das memórias de resistência democrática, como se ter sido concebido pelos arquitetos salazaristas fosse uma mácula indelével. Afinal, se o Estado Novo era simpático às amplas avenidas, o mesmo não pode ser dito sobre como lidava com pensamentos igualmente amplos.
*Artigo originalmente publicado em Mensagem de Lisboa a 24.04.2021