Cidade (des)continuada: racismo, espaço e mobilidade na AML

A relação entre os corpos e o espaço é inescapável, sendo através do segundo que os primeiros se cumprem enquanto agentes móveis e livres, e exercitam os seus direitos de cidadania. Contudo, o que importa nomear é a privação do pleno acesso ao espaço a determinados corpos, os corpos de pessoas negras, das comunidades ciganas/Roma e migrantes.

Partindo da tese de bell hooks acerca da antítese margem-centro, a vedação do acesso ao centro dos corpos racializados atua enquanto instrumento de periferização desses mesmos corpos, segregados pelos caminhos de ferro:

“To be in the margin is to be part of the whole but outside the main body. For black American living in a small Kentucky town, the railroads track were a daily reminder of our marginality. Across those tracks were paved streets, stores we could not enter, restaurants we could not eat in, and people we could not look directly in the face. Across those tracks was a world we could work in as maids, as janitors, as prostitutes, as long as it was in a service capacity. We could enter that world, but we could not live there. We had always to return to the margin, to beyond the tracks, to shacks and abandoned houses on the edge of town” (hooks, 2000, p. 16).

É neste exercício de compreensão da territorialidade e da mobilidade como linhas de restrição e punição de corpos, que as políticas públicas para o território encerram em si uma estrutura de controlo de acessos e restringem a cidadania dos grupos de pessoas racializadas. Esta limitação ao poder de deslocação e de aceder, tem como forma absoluta o encarceramento da população negra – em Portugal, uma investigação de Joana Gorjão Henriques, datada de 2017, informa-nos de que 1 em cada 73 pessoas dos PALOP está presa, número dez vezes superior à proporção existente para as pessoas com cidadania portuguesa (Henriques, 2017). Esta realidade imprime nos corpos negros uma dimensão psicossocial da violência racista – uma vivência policiada da ocupação do espaço e o medo concreto do encarceramento.

Cidade e a periferização dos corpos

Maria Nilza Silva, investigadora do Brasil, aquando do estudo do caso da cidade de São Paulo, constata que o povo negro é estruturalmente excluído do território central e de maior valor no mercado imobiliário e realocado nas periferias precarizadas e ausentes de serviços e infraestruturas (Silva, 2006). Inclusive, o espaço que cada corpo ocupa caracteriza-o socialmente e de forma essencialista, pelo que as pessoas moradoras de determinados bairros periféricos e estigmatizados de São Paulo, negam frequentemente a sua pertença a esses territórios (Silva, Ibidem). O território revela-se, assim, um intrumentos de dupla marginalização das populações racializadas, a partir da privação efetiva do acesso a serviços essenciais ao pleno exercício de cidadania – saúde, educação, cultura, trabalho (…) – e da caracterização essencialista destas pessoas a partir de discursos de perigo e criminalização associados aos espaços que habitam.

Os recortes da Área Metropolitana de Lisboa (AML) e a organização e reorganização do espaço urbano têm sido escrutinados e denunciados pelo movimento social e parte da academia, como Ana Rita Alves e Rita d’Ávila Cachado, nomeadamente o estudos dos bairros autoproduzidos e das Áreas Urbanas de Génese Ilegal (AUGI), assim juridicamente nomeadas e estigmatizadas (Câmara Municipal de Lisboa, 2022), alvos de débeis projetos de requalificação e programas de habitação social. O final da década de 1970 é marcado pelo aumento da construção em situação irregular e autoproduzida na AML, na sequência de múltiplos fatores: 1) o fluxo de migração de pessoas dos países colonizados por Portugal e recém-independentes; 2) o fluxo de migração de pessoas do interior rural do país para as áreas urbanas; 3) o acordo entre o Estado português e o Fundo Monetário Internacional (FMI) para o decréscimo da promoção da habitação pública e cooperativa (Cachado, 2013). É face a esta imagética que, em 1993, o Programa Especial de Realojamento (PER) emerge a partir da vontade política de apagar a existência de bairros em situação irregular e precarizados nas margens das Grandes Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto (Cachado, Ibidem), no caso da primeira com grande representação na circunvalação da antiga Estrada Militar, e em contexto de afirmação e renovação da identidade de um Portugal moderno no quadro europeu – sucedem-se os eventos, em 1994, Lisboa Capital da Cultural e, em 1998, Exposição Mundial, cuja porta de entrada pelo aeroporto da Portela era ladeada por bairro autoproduzidos, o Bairro da Quinta da Vitória e o Bairro da Torre.

O PER, em oposição ao Serviços de Apoio Ambulatório Local (SAAL), como assertivamente descrito por Rita d’Ávila Cachado, vincou a dupla periferização das pessoas moradoras dos bairros a eliminar do imaginário da cidade, repositando-as em grandes blocos de habitação social e anulando o seu agenciamento e apropriação sobre os lugares originais de habitação, bem como os vínculos socio-emocionais e de suporte estabelecidos, e privilegiando a construção precária de baixo custo dos blocos habitacionais (Cachado, 2013). O caso do PER da Ameixoeira, atual freguesia de Santa, é paradigmático desta realidade ao ter realojado pessoas do bairro autoproduzido das Galinheiras, mas também de outros territórios da AML.

Sobre o presente processo, importa sublinhar a dimensão racial que envolveu o PER na sua génese e implementação, tornada visível por Ana Rita Alves na publicação de leitura obrigatória Quando Ninguem Podia Ficar. Racismo, Habitação e Território (2021) – a racialização destes espaços non gratae, enquanto territórios vazios de civilidade e de urgente intervenção, cristalizada nas representações mediáticas e na consequente perceção do PER enquanto resposta habitacional para pessoas negras, das comunidades ciganas/Roma e migrantes.

O PER, em acréscimo à preservação da imagem desviante e estigmatizada associada a estes espaços de habitação social e a quem os ocupa, relocalizou os corpos precarizados e racializados da AML num espaço duplamente periférico marcado pela inacessibilidade, pois a expansão urbana e o fortalecimento do mercado especulativo, resultante da transferência da promoção da habitação do setor público para o setor privado – o parque habitacional público, em Portugal, representa 2% da oferta, embora o Direito à Habitação esteja consagrado na Constituição -, havia recolocado parte dos bairros autoproduzidos às portas dos grandes centros urbanos (Alves, 2021). Regressando a bell hooks, a criação de aglomerados habitacionais racializados e periféricos, de identificação e mapeamento imediatos, é essencial para a preservação do valor do centro, e é esta fronteira sanitária, que define quem ocupa e quem pode permanecer no centro urbano, que o poder político se recusa a quebrar.

(I)mobilidade

O pleno direito à cidade é indissociável do acesso à mobilidade enquanto veículo para os serviços, o lazer e postos de trabalho, contudo é nos espaços periféricos da AML que a mobilidade é mais precária e definida pela inexistência de transportes públicos que sirvam eficientemente a população, o que resulta numa real dependência dos transportes individuais de passageiros, obrigando as pessoas que habitam nestes espaços à aquisição de viaturas, ou numa política de exaustão dos corpos (Vergès, 2020) – o acesso à mobilidade, a par do acesso à habitação digna, saúde e ao trabalho com direitos, define os corpos brancos enquanto eficientes e os corpos racializados e invisibilizados como corpos esgotados. De acordo com Françoise Vergès, a reprodução social é indesligável desta equação, sendo o trabalho invisibilizado da limpeza da cidade – escritórios, refeitórios, escolas, hospitais, estações, centros comerciais (…) – realizado maioritariamente por mulheres racializadas. Contudo, ao contrário da sinalização explicita dos espaços de habitação social e periféricos preservada pela sua arquitetura, planeamento e materiais de construção de baixo custo, enquanto zonas “naturalmente” marginais, o trabalho de manutenção das infraestruturas do centro da cidade realizado pelos corpos racializados que os habitam deve ser invisível – “Não devemos nos dar conta de que o mundo onde circulamos foi limpo por mulheres racializadas e superexploradas.” (Vergès, 2020, p. 24).

No contexto da crise pandémica, as fronteiras que restringem o acesso ao espaço e aos recursos que nele se estabelecem – comércio, saúde, educação (…) – adquirem contornos mais evidentes enquanto instrumento político de segregação dos corpos racializados e precarizados. No caso do Casal da Mira – bairro com 760 fogos construído no âmbito do PER, na Amadora –, as pessoas moradoras constatam um vazio de serviços no território, que se encontra totalmente segregado pela inexistência de transportes públicos que parem no epicentro do bairro (Alves, 2021); e no caso do Casal de São José – bairro com 145 fogos (soma da 1º e 2º fase) construído no âmbito do PER da Câmara Municipal de Sintra –, em que a distância para o centro de Lisboa via transportes públicos é de aproximadamente uma hora, entre a carreira 460 e o percurso de comboio da estação Algueirão-Mem Martins às estações do Rossio ou Entrecampos, enquanto a mesma distância percorrida de carro é reduzida para metade do tempo – trinta minutos. Voltemos aos corpos das mulheres racializadas que limpam os lugares do centro da cidade, àquelas que percorrem a Linha de Sintra sem um contrato de trabalho formal, e cujos corpos cansados carregam duas horas de movimento diário entre as suas casas e os seus locais de trabalho, e este espaço temporal será sempre um eufemismo entre tempos de espera e um terceiro transporte que as conduza do ponto de chegada ao centro da capital para o seu destino último – e se esta narrativa se avizinhar abstrata para algumas pessoas, com certeza não para quem faz do comboio o seu meio de transporte diário e se cruza com estas mulheres e as suas bagagens, que se cumpram as múltiplas recomendações e que a tarefa de recolha de dados étnico-racias seja realizada. Esperamos e continuaremos.

De facto, a ideia de território é definida pelas linhas que o rasuram a partir dos corpos e das vidas que o habitam (Rolnik, 2003), e se nos referirmos aos espaços recortados e ocupados pelos corpos racializados, as narrativas revelam-se condenatórias, o que os torna alvo de um policiamento criminoso e políticas sanitárias de contenção de imaginários danos sociais.

O presente diálogo inicia-se com a afirmação de que a relação entre os corpos e o espaço é absoluta, importa findá-lo com uma segunda – a trilogia corpo-espaço-história. O território, a cidade, é um repositório de memórias coletivas, ainda que as narrativas dominantes se agarrem às placas toponímicas, às praças e lugares de relevo, mas são exercícios fundamentais aqueles que recuperam a memória histórica da presença dos corpos racializados, e periferizados, no bairro da Madragoa – o Bairro do Mocambo – da sua resistência e das bolsas de mandinga, ou em São Bento, a partir do século XVI (ReMapping Memories, 2022). Os bairros da Madragoa e São Bento encontram-se hoje num espaço central e branqueado, cujo valor económico e turístico se define, também, pela ausência das presenças percecionadas como desviantes, mas que moram nas suas paredes e memória. O antropólogo Michel-Rolph Trouillot compreende a história como um instrumento de dominação cultural e social, evidenciando o objetivo do poder instituído em silenciar a presença dos grupos subalternizados, apagando o seu passado, e perpetuando as narrativas eurocêntricas dos vencedores (Trouillot, 1995). A tese de Trouillot é, também, uma leitura assertiva da organização dos espaços urbanos, em que a AML não é exceção.

Bibliografia

Alves, A. R. (2021). Quando Ningúem Podia Ficar. Racismo, habitação e território. Lisboa: Tigre de Papel.

Cachado, R. d. (2011). Realojamento em zonas de fronteira urbana. O caso da Quinta da Vitória, Loures. Forum Sociológico, 23-31.

Cachado, R. d. (2013). O Programa Especial de Realojamento. Ambiente histórico, político e social. Análise Social, pp. 134-152.

Henriques, J. G. (19 de Agosto de 2017). A justiça em Portugal é “mais dura” para os negros. Público.

hooks, b. (2000). Feminist Theory. London: Pluto Press.

Lisboa, C. M. (Abril de 2022). Áreas Urbanas de Génese Ilegal (AUGI). Obtido de Câmara Municipal de Lisboa: https://www.lisboa.pt/cidade/urbanismo/planeamento-urbano/areasurbanas-d...

Lugares de Memória. (Abril de 2022). Obtido de ReMapping Memories Lisboa - Hamburg: https://www.re-mapping.eu/pt

Rolnik, R. (2003). A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: FAPESP.

Silva, M. N. (2006). Nem para todos é a cidade: segregação urbana e racial em São Paulo. Brasília: Fundação Cultural Palmares.

Trouillot, M.-R. (1995). Silencing The Past: Power and The Production of History. Boston: Beacon Press.

Vergès, F. (2020). Um Feminismo Decolonial. São Paulo: Ubu.

por Catarina Valente Ramalho
Cidade | 13 Abril 2022 | Bell Hooks, cidade, comunidades ciganas, Corpos, migrantes, racismo