Desenterrando a esquecida história da escravatura em Lisboa
Para todos os efeitos Lisboa, a capital portuguesa é indubitavelmente linda, mas tal como muitas cidades que serviram também como entrepostos mediterrânicos, está construída sobre sangue. No começo do séc. XV, os portugueses lançaram-se naquilo que seria o comércio moderno de escravos da costa ocidental africana que eventualmente deu origem ao terror da Passagem do Meio. Lisboa tornou-se então o centro da escravatura dentro de Portugal, no qual famílias portuguesas abastadas ecomerciantes adquiriam escravos africanos para trabalhar nas casas luxuosas e nas docas movimentadas ao longo do rio Tejo.
Apesar da importância da escravidão na formação de Portugal e do seu império ultramarino, esta horrenda história da submissão “negra” é completamente abafada na memória pública lisboeta. Em contraste ao (recentemente criado e bem tardio) Museu da História e Cultura Afro-Americana nos EUA ou ao Museu Afro-Brasileiro em São Paulo, Brasil, não há museus deste género ou um memorial público de condenação tal como em Nantes, França. Mais recentemente, apesar de tudo, um museu de escravatura foi criado no histórico mercado negro “Mercado de Escravos” no sul de Portugal, no porto de Lagos, o qual é considerado o primeiro local de troca comercialde escravos africanos na Europa. No entanto, Lisboa permanece ainda largamente calada face ao seu legado de terror branco e cativeiro negro.
Algures entre 1441 e 1444, (não há consenso histórico sobre o ano exato), os primeiros prisioneiros negros do oeste de África chegaram à praia portuguesa de Lagos. Muitos, mas muitos dos prisioneiros capturados acompanhariam este primeiro grupo de 240 escravos africanos. Enquanto Lagos viu a criação do primeiro mercado decomercialização de escravos em Portugal (e na Europa como um todo), Lisboa tornou-se rapidamente o centro administrativo e mais tarde, o centro físico do tráfico de humanos. Com o passar de duas décadas, o centro português de comércio de escravos passou de Lagos para Lisboa, onde as autoridades régias conseguiam monitorizar o comércio de perto.
Em 1486, a Coroa Portuguesa criou a Casa de Escravos de Lisboa que foi estabelecida para processar a chegada, tributação e eventual venda de prisioneiros africanos dentrode Lisboa, assim centralizando e formalizando o comércio. Localizado perto dos estaleiros navais e docas de embarcação do rio Tejo, escravos africanos oriundos de Arguim, Benim e do Congo foram conduzidos acorrentados para a prisão da Casa dos Escravos antes da sua avaliação física e do seu leilão na praça pública conhecida como Pelourinho Velho. Numa tentativa de solidificar o monopólio do comércio de Lisboa, em 1512, o rei português ordenou que todos os escravos que entrassem em Portugal, teriam de desembarcar em Lisboa – penas e multas pesadas esperavam a todosaqueles que não cumprissem a ordem. O historiador John L. Voigt estima que cerca de10% da população era negra (quer escravizada quer livre) durante o século XVI.
Com o passar do tempo, um bairro negro chamado Mocambo (localizado atualmenteno bairro de Santa Catarina) formou-se no noroeste de Lisboa como um refúgio dosnegros. Segundo as notas do historiador James H. Sweet, Mocambo foi designado apartir da palavra Kimbundu (língua autóctone de Angola) para esconderijo e eventualmente ficou associada com quilombos (comunidades escravas foragidas) no Brasil e na maior parte do mundo atlântico português. Sob o pavimento da atual Rua do Poço dos Negros, situa-se uma enorme sepultura de escravos africanos no queantes costumava ser Mocambo.
De facto, tal como Sweet descobriu, Mocambo era “largamente conhecido comoum espaço poderoso espiritualmente, talvez como uma memória comum eincorporada de todos os africanos mortos ali enterrados.” À noite, descendentes deafricanos em Lisboa juntavam-se nos principais cruzamentos de Mocambo em São Bento para invocar os poderes do mundo espiritual para fins de adivinhação e cura,” tal como o escravo nativo africano José Francisco Pereira que enterrou diversos talismãs nos ditos cruzamentos em 1730. Hoje, não há uma memória pública destelocal sagrado para as comunidades da diáspora africana em Lisboa – é simplesmente um peculiar canto com bancos para os jovens adolescentes portugueses.
Mas Naky Gaglo, um histórico guia turístico togolês agora estabelecido em Lisboa, está mudando fortemente esta história de silêncio público. Naky lançou a “African Lisboa Tour”, que consiste numa atraente e histórica visita guiada de 4 horas pela Lisboa negra desde a escravidão até à história cultural e política das mais recentes imigraçõesdos povos da diáspora luso-africana de locais como Angola e Cabo Verde (de facto, esta visita guiada inclui uma paragem num fantástico restaurante cabo-verdiano).
Enquanto fazia uma investigação de arquivos no início deste mês, tive a sorte de fazeresta visita-guiada com Naky e aprendi muito sobre a esquecida história da escravatura em Lisboa e a atual vida negra. Naky começa o seu roteiro na Praça do Comércio, ocoração da baixa de Lisboa no rio Tejo, onde escravos africanos foram levados para a Casa do Comércio. Porém, como Naky bem relembrou-me, houve africanos em Lisboa muito antes da emergência do comércio de escravos em 1440, particularmente elites do reino do Congo que vieram a Lisboa para estudar teologia, tradução e astronomia.
Para minha surpresa, esta tour de Naky mostrou-me que havia afinal uma estátua pública em Lisboa dedicada à abolição da escravatura no império português, a estátua de Marquês de Sá Bandeira, um liberal político português que decretou a abolição do comércio transatlântico português de escravos em 1836. Tal como muitas estátuas do mesmo género, esta estátua centra sem problemas o General Bandeira na história da abolição portuguesa, enquanto que a estátua greco-romana de uma mulher acorrentada segurando uma pequena criança situa-se abaixo dele em gratidão pelo decreto do general. Há uma história fascinante por detrás da real identidade desta estátua de uma anónima mulher escrava, uma história relacionada com a Lisboa negra do séc. XIX, mas terão de ir na tour de Naky para descobrir.
Desenterrando a esquecida história da escravatura em Lisboa, Naky está reconhecendo e reescrevendo a história do passado horrendo de Lisboa. Incrivelmente, apesar dos quatros séculos de sequestro e servidão negra, não existem memoriais reais públicos na cidade que se debate seriamente com o significado e o legado de longa data da escravatura portuguesa. Como Naky afirmou no início e no final do roteiro, esta falha para reconhecer a história africana por trás da criação de Lisboa não passou de uma “escolha política”. Naky está certo, mas até lá, ele está a fazer justiça com as suas próprias mãos.
Artigo originalmente publicado por Black Perspetives a 26/06/2017