Londres, quem são os verdadeiros selvagens?

Tumultos, casamentos reais e recessão. Tudo isto não é novo. Em 1981, quando o desemprego atingiu o máximo dos últimos 50 anos, e o racismo era dominante, ocorreu um tumulto em Brixton, sul de Londres, desencadeado pela morte de um adolescente negro sob custódia policial. Os distúrbios estenderam-se a todo o país, sobretudo em áreas económicas deficitárias e de elevada tensão racial. No meio disto, Lady Diana Spencer casou-se com Charles, príncipe de Gales; 30 anos depois, o filho William desposou Kate Middleton. Esperava a realeza distrair-nos do espectro do desemprego e de vidas passadas em dívida? Nunca o poderemos saber.

NA TERÇA-FEIRA, 4 DE AGOSTO, fui entregar um presente a um amigo em Tottenham, no norte de Londres. Esta zona tem uma das comunidades mais etnicamente diversificadas do país e a maior taxa de desemprego da capital. Já escurecia quando apanhei o autocarro de volta a casa para Walthamstow. A viagem mal começara quando o motorista anunciou uma manobra de emergência. À medida que nos afastávamos do percurso normal vimos imensos carros da polícia, com os seus flashes azuis, e fita a restringir uma determinada área. Não o sabíamos, mas por detrás da fita jazia o corpo de Mark Duggan, 29 anos. Pai de quatro filhos, negro, fora morto a tiro pela polícia.
Quarenta e oito horas depois, familiares e amigos do falecido rumaram à esquadra policial de Tottenham, exigindo explicações. Após várias horas, continuavam sem respostas. A frustração decorrente do desrespeito pela vida de Duggan enfureceu alguns dos presentes. Daí a pouco, várias zonas da Tottenham High Road estavam a arder. Na noite que se seguiu, fiquei na cama a ouvir as sirenes e os helicópteros enquanto a polícia tentava dispersar um pequeno tumulto e os saques em Walthamstow High Street. Seguiram-se outros bairros, não só em Londres, mas em todo o país. No total, cinco pessoas morreram e 2511 foram detidas durante 160 incidentes de tumultos e saques.
Ao contrário de 1981, os manifestantes responderam à brutalidade da polícia saqueando das lojas artigos desportivos, perfumes, televisões de ecrã plano e até caixotes do lixo. Theresa May, ministra do Interior, descreve-o como «criminalidade pura». David Cameron, o primeiro-ministro, diz que os agitadores têm «um código moral perverso… a ausência completa de autodomínio». Fileiras de comentadores falaram de «violência inconsciente» e «juventude inconsciente», repetindo os clichés inconscientes uns dos outros. Enquanto isso, os tabloides classificaram os agitadores como «selvagens».

TUMULTOS DE UNS E DE OUTROS
Poucos negarão que os saques e os motins constituem um comportamento criminoso. O que é menos claro é se os agitadores são mais «perversos» ou imorais que todos nós, especialmente os da classe dominante, tão pontos a colocar-lhes etiquetas. Remetendo-nos ao teórico literário Edward Said, não deveríamos pedir aos nossos líderes para terem em conta o seu próprio passado bem como o do nosso país, não só pela culpa mas também por autoconsciência?
Comecemos pelo primeiro-ministro. Em 1987, quando estudava na Universidade de Oxford, fez parte do Bullingdon Club – clube exclusivamente masculino e o correspondente na classe alta a um gangue urbano – e, numa noite de copos, partiram a montra de um restaurante. À semelhança dos mais atléticos amotinadores vistos nos nossos ecrãs em agosto, Cameron fugiu quando a polícia apareceu. Mas o seu amigo Boris Johnson, que tal como Cameron frequentava uma das mais caras escolas do mundo, a Eton College, passou a noite na prisão. Hoje Johnson é o presidente da câmara de Londres.

Nick Clegg, o vice-primeiro-ministro, teve também um confronto com a autoridade. Numa viagem de adolescentes à Alemanha, embebedou-se com um amigo e juntos pegaram fogo a duas estufas repletas de preciosos catos, recolhidos em várias partes do mundo ao longo de décadas. Tal como Cameron, Clegg fugiu. Só o admitiu no dia seguinte, quando confrontado com a verdade. O professor de Botânica, cuja coleção Clegg destruiu, foi convencido a não apresentar queixa.
Esta história tem semelhanças assinaláveis com os recentes distúrbios. Carla Rees, uma flautista de 34 anos, perdeu a sua valiosa coleção de flautas quando os jovens em protesto queimaram o seu apartamento no sul de Londres. É absurdo pensar que, se forem descobertos, os responsáveis por este ato indesculpável não sejam acusados e condenados. A possibilidade de que lhes seja oferecida clemência e de subirem aos mais elevados cargos no país é ridícula.

É fácil encontrar mais provas da «criminalidade pura» dos políticos britânicos. Em 2009, foram divulgados à imprensa pormenores sobre reembolsos de despesas feitas por deputados. Descobriu-se que muitos políticos defraudaram o sistema em milhares de libras, alguns até em dezenas de milhões. Alguns deles são membros do atual executivo. Outros, como Gerald Kaufman, foram ministros do Partido Trabalhista. Tal como os nossos saqueadores, Kaufman tem uma queda por televisões. Gastou 9000 libras numa com um ecrã de 40 polegadas, quando o orçamento oficial era de 750 libras. O antigo ministro do ambiente classificou o seu apetite por compras como «um pouco disparatado» e não sofreu consequências por saquear os cofres públicos.

David Beswick teve menos sorte. Durante os recentes tumultos, este homem de 31 anos colocou uma TV de 37 polegadas no seu carro. Foi condenado a 18 meses de prisão.

FORA DO TEMPO
Alguns quilómetros a sul do local onde Mark Duggan foi morto fica a City de Londres, o amado paraíso fiscal britânico. A «Square Mile» (milha quadrada), como é conhecida, alberga banqueiros, contabilistas, e outros profissionais selvagens das finanças e do direito. Estas são as pessoas cujo comportamento irresponsável deitou por terra o sistema financeiro global. Impulsionados pela liberalização financeira lançada por Margaret Thatcher nos anos de 1980, os seus esquemas de salários multimilionários aumentaram exponencialmente o preço dos terrenos em Londres, dificultando muito mais a vida a todos quantos estão a ser afastados para a periferia profunda. Isto é «francamente, doentio», para roubar outra das expressões de Cameron sobre os recentes tumultos.
Nem por isso, dizem os nossos políticos.
Para tentar livrar-nos da confusão em que os banqueiros nos colocaram, o Governo embarcou em cortes alargados. Em Tottenham, o orçamento de três milhões de libras para os serviços da juventude foi reduzido a metade. No próximo ano, descerá mais um milhão. Também sofreu um corte o orçamento para apoio à educação, que subsidia em 30 libras semanais estudantes de famílias com baixo rendimento, o que limita as ambições dos adolescentes que tentam escapar à pobreza.
Os cortes são uma das esperanças do Governo para reduzir a dívida. Outro caminho é o que o ministro dos Negócios e Inovação, Vince Cable, chama respeitosamente de «estímulo quantitativo». Imprimir moeda, por outras palavras. Esta estratégia foi usada por outros países, como o Zimbabwe, e ridicularizada pelos media britânicos e a elite política.

A hipocrisia não acaba aqui. Cameron pensa aumentar os poderes da polícia sobre redes sociais como Twitter, Facebook e BlackBerry Messenger. Fazendo eco dos regimes autoritários, o primeiro-ministro diz que «a livre circulação de informação pode ser usada para o bem. Mas também pode ser usada para o mal». A ironia não se perdeu em nações estrangeiras, tantas vezes objeto da crítica britânica. A Xinhua, agência de notícias chinesa, comenta: «Podemos questionar-nos porque é que os líderes ocidentais… tendem a acusar indiscriminadamente as outras nações de vigilância, mas… assumem o direito de vigiar e controlar a Internet.»


O ritual de condenação com que os nossos políticos discutem as nações estrangeiras assemelha-se à forma como falam do seu próprio povo, em particular dos pobres e das minorias étnicas. Um académico proeminente, ao falar sobre os motins na BBC, disse que o Reino Unido tem um problema por causa dos «intrusos» da Jamaica e de «brancos que atuam como negros». De facto, David Starkey é um historiador da Grã-Bretanha do século XVI. Poder-se-ia pensar que ele teria pelo menos um bom conhecimento da história de intrusão do seu país – colonialismo, escravatura e império – durante 500 anos. Mas apenas obtivemos dele um balbuciar racista.
No Reino Unido de hoje, é como se os nossos líderes vivessem num túnel do tempo. A cada passo, é apontado o dedo imperial e libertada a retórica racista. Parecem incapazes de mostrar humildade ou de perceber que é o sistema que nós criámos que é inconsciente, perverso e selvagem.

fotos de Felix Wang

artigo publicado originalmente na revista África 21, setembro 2011

Translation:  Teresa Sousa

por Lara Pawson
Cidade | 14 Setembro 2011 | londres, motins, periferia, rios