O que faço eu no reto de Paul Theroux?
The Last Train to Zona Verde, Paul Theroux
O LIVRO COMEÇA NO NORDESTE DA NAMÍBIA. Paul Theroux está no mato com um grupo de bosquímanos !Kung, deliciando-se com a nudez, a pele dourada, o riso e a aparente inocência destes «caçadores-recolectores [t]radicionais». À sua frente, uma jovem cai de joelhos: «Tinha um rosto lindo, de elfo, um pouco asiático – mas sugerindo igualmente o rosto de um extraterrestre – que muitos dos San possuem. Ou seja, pedomórfico, o rosto inocente e atraente de uma criança.» Ele observa atentamente enquanto ela cava um vegetal de raiz no solo: «A cada colher e punhado de areia, os seus olhos brilhavam, os seios abanavam e os mamilos tremiam contra a Terra, uma das pequenas excitações desta excursão.»
Lendo esta enxurrada de paternalismo, este fantasiar de um «outro» exótico, poderíamos pensar que Theroux entrou numa espécie de jogo literário pós-colonial em que caricaturiza os diários dos homens brancos que, durante séculos, procuraram justificar o seu poder e privilégios em África. Mas estaríamos errados: ele está mesmo a ser sincero. Página após página, o autor revela o pouco que aprendeu ao longo de 50 anos a viajar pelo mundo, incluindo seis como professor na «África rural» quando estava na casa dos vinte anos. «África atraiu-me porque ainda é tão vazia», escreve ele, conseguindo ignorar toda a abundância de provas em contrário.
O seu desejo pela simplicidade inata dos africanos, em que ele acredita, é alimentado, previsivelmente, pela sua necessidade de fugir a uma vida dominada pela «vulgaridade» de prazos, telefonemas e emails dos outros. Seria uma felicidade, escreve, «viajar desconetado, longe do olhar ou do alcance de alguém». Presumivelmente, então, está feliz por excluir o «olhar» das pessoas que o poderão ver na sua jornada. Para Theroux, eles não contam.
Mas a sua busca pelo «bom selvagem» é o que incapacita: não demora muito até que a deceção se instale. Theroux fica aborrecido ao descobrir que os caçadores-recolectores que observou estavam a representar as tradições dos seus antepassados como funcionários do Living Museum, apoiados por uma associação de caridade alemã. Atraiçoado na sua procura por «um lugar intocado no planeta», conclui amargamente que «estar errado e desiludido parece uma consequência inevitável de qualquer viagem africana séria». O que ele quer exatamente dizer com a palavra «séria» é algo que fica por explicar.
Na Cidade do Cabo – inacreditavelmente descrita como «a única cidade de África com pretensões de grandeza» – ele caminha em torno das townships, condenando a «juventude ociosa» e interrogando infinitamente os seus guias sobre a ortografia de palavras desconhecidas. Sente-se que se deleita na tentativa de os atrapalhar, vangloriando-se numa ocasião sobre o seu conhecimento superior de Ntiskana, profeta Xhosa; e noutro caso, tira prazer em provocar um homem sobre a morte de Amy Biehl, um norte-americano, que usufruía de uma bolsa de estudo Fulbright e foi assassinado em Guguletu em 1993. Mas por mais irritante que seja ler isto, nada nos prepara para as impressões de Theroux sobre Angola.
Olhando para um mapa, ele descreve a fronteira entre a Namíbia e Angola como «uma terra desconhecida e por descobrir». Ousa referir-se a Angola como «sobretudo terra incógnita» e até como um país em «isolamento». Estas descrições são inconcebíveis mesmo se considerarmos apenas uma lista histórica básica que inclua a chegada dos portugueses no século XV, a escalada do Cristianismo, o comércio transatlântico de escravos, o colonialismo português, a relação com a Guerra Fria, as indústrias internacionais de petróleo e diamantes, e mais recentemente o afluxo de chineses, para não mencionar os principais investimentos financeiros de Angola em Portugal e a explosão da música kuduro em todo o mundo. Mesmo ao nível micro, há muitos angolanos que vivem nos musseques de Luanda, mas viajam por todo o mundo para comprar roupas e pequenas peças de mobiliário que vendem quando regressam a casa. Isolada? Não me parece. Desconhecida para provincianos dos EUA? Sem dúvida.
Semanas antes de Theroux pôr os pés em Angola, ele afirma que mesmo entre «os mais resistentes viajantes, os backpackers e os que viajam sem destino, ainda estou para conhecer alguém que tenha realmente atravessado a fronteira para Angola».
Gritar com o livro
Como alguém que viveu e trabalhou em Angola – e que viajou por terra de Windhoek para Luanda em 2008 – quando eu li isto, dei por mim a gritar com o livro que tinha nas mãos. Enquanto Theroux descreve o posto fronteiriço do sul como «a fronteira do mau kharma», «a zona de decrepitude e da fome», dois anos antes eu fui aí recebida de braços abertos, por homens e mulheres que me elogiaram generosamente por conversar com eles em português. De Santa Clara ao Lubango, Bailundo, Sumbe e Luanda – às vezes à boleia, às vezes a bordo de um candongueiro – embora seja verdade que muitas das estradas estavam em péssimo estado e que alguns polícias fossem um pouco torcidos, não encontrei «bloqueios na estrada e multidões… um mundo de mentiras e esquemas … um mundo de abuso», em que «os hotéis eram terríveis, a comida era nojenta, as pessoas eram desconfiadas e por vezes hostis». Na verdade, eu escrevi aos meus familiares a dizer que estava a ter uma das melhores experiências da minha vida.
Incapaz de articular mais do que algumas palavras em português, é impressionante que Theroux só pareça gostar das pessoas que consigam conversar com ele em inglês. Quase todos os outros são descritos como «improdutivos», «crápulas», «gananciosos» ou «exaustos», ou mesmo «mudos e brutalizados», independentemente do que tenham para dizer sobre o mundo ou sobre ele próprio.
De facto, o autor norte-americano admite ter ficado perplexo quando a União dos Escritores Angolanos rejeita a sua oferta para lhes fazer uma palestra em inglês sobre literatura. Em vez disso, ele acaba no Clube Viking – que, pela minha experiência, não passa de uma reunião de grande parte de expatriados, onde o tédio da dependência do álcool, ego e da língua inglesa parecem prosperar – e goza de «uma noite agradável».
No final deste livro desagradável, Theroux, ainda em Luanda, explica a sua decisão de não continuar a subir a costa ocidental de África. Está perturbado tanto pela falta de estradas como pelas más condições das estradas existentes. Pensa em apanhar um avião como alternativa, mas de imediato rejeita a ideia: «Não se vê nada a uma altura de 30.000 pés». Mas terá ele visto alguma coisa ao nível do solo? Parece que não. No seu capítulo final – «O que faço eu aqui?» – ele alega que para viajar em África «especialmente nas cidades de horror da África Ocidental urbanizada», é preciso ter «a habilidade e o temperamento de um proctologista». No entanto, para esta leitora, enquanto me esforçava através do seu texto, as únicas fezes que vi foram as que sujavam as páginas que tinha à frente.
Paul Theroux
Paul Edward Theroux nasceu a 10 de abril de 1941 em Massachusetts? EUA. Um de sete irmãos, é filho de pai franco-canadiano e mãe italiana. Cresceu como escuteiro e católico. Apesar de ter passado grande parte da adolescência a ler, acreditava então que escrever era «incompatível com ser homem – dinheiro e masculinidade». Depois de se formar com um bacharelato em artes, em 1963, fez treino com o Peace Corps (Corpo da Paz) e foi enviado para o Malawi. Contudo, depois de ter apoiado um adversário do primeiro-ministro Hastings Banda, Theroux foi expulso do Malawi e do Peace Corps. Mudou-se para o Uganda, onde ensinou inglês na Universidade Makerere. Em Kampala conheceu também a mulher, e foi aí que nasceu o seu primeiro filho, Marcel. Trocou o Uganda por Singapura, onde em 1969 nasceu o seu segundo filho, Louis. Em 1975, Theroux publicou o seu primeiro livro de viagens, O Grande Bazar Ferroviário, que se transformou em best-seller e lhe deu reconhecimento como escritor. Escreveu até hoje 16 livros de não ficção e 29 de ficção, e ganhou diversos prémios. Divide-se atualmente entre Cape Cod e Hawai, onde vive com a sua segunda mulher.
publicado originalmente na revista Africa 21, nº 79, novembro 2013