Luanda, virada para o futuro negligencia o seu passado

Luanda, selva de gruas e de torres novas resplandecentes no coração de um país em plena reconstrução depois de uma guerra civil de 27 anos, transforma-se a olhos vistos, em detrimento de um património arquitectónico com vários séculos.

A cidade baixa, por trás da marginal, essa grande avenida bordejada de palmeiras ao longo da baía, e a cidade alta, onde se instalaram os portugueses à chegada Luanda, em redor da Fortaleza de S. Miguel e da actual Presidência, poderiam ser um verdadeiro museu a céu aberto que contaria a história de Angola através das diferentes vagas de influências.

Inicialmente, houve o estilo “chão”: uma estética arquitectónica muito depurada, com casas robustas e austeras no exterior e mais luxuosas no interior. Esta foi a arquitectura mais expandida em Luanda durante todo o período da escravatura, que durou cerca de 300 anos, entre a chegada do explorador Paulo Dias de Novais e meados do século XIX. A seguir, a partir de 1850, viu-se surgir um estilo português colonial neo-clássico com edifícios de influência barroca. E depois, nos anos 50, quando apareceram os novos bairros residenciais para alojar, nomeadamente, os quadros das empresas de café e os funcionários da companhia de caminhos-de-ferro, apareceu um novo estilo arquitectónico, muito modernista, inspirado por intelectuais brancos independentistas, que se opunham ao ditador português Salazar. Estão neste caso, nomeadamente, as primeiras torres, tais como o edifício do Banco de Poupança e Crédito (BPC) no centro da cidade.

Foi esta história que os alunos de arquitectura da universidade Lusíada, orientados por Ângela Mingas, arquitecta apaixonada, decidiram fazer reviver; é esse, aliás, o nome da campanha que eles criaram: “Reviver”. O objectivo: desenvolver o turismo cultural em Luanda, sensibilizar a população para a preservação do património, e impedir que este património histórico se degrade mais, ou pior, que seja destruído.

Um domingo por mês, mais ou menos, é organizado um passeio a pé para mostrar que no canto de uma destas ruelas sombrias e insalubres, ao pé de um novo arranha-céus a brilhar, se encontra um pedaço de história, escondido num edifício em ruínas. Descobrem-se os mosaicos ainda sumptuosos e adivinha-se o verde-garrafa das paredes do Grande Hotel de Luanda, hoje num estado lastimoso, deixado ao abandono depois de um incêndio ou o “sobrado” de Alfredo Troni, um intelectual dos finais do século XIX, abolicionista, fundador do primeiro jornal angolano (o Jornal de Loanda, em 1878).

Os “sobrados” são as últimas casas que datam do tempo da escravatura. “O soalho destas casas era feito com a madeira com a qual se enchiam os porões dos navios de escravos que voltavam vazios do Brasil”, conta Ângela Mingas. “E as paredes eram em adobe (uma técnica à base de terra crua), fabricados com uma mistura de terra e de conchas apanhadas pelos pescadores da Ilha. São características que já não se encontram …” e cujos últimos vestígios estão em vias de desaparecer: “Em três anos, metade dos sobrados que restavam em Luanda foram destruídos. Hoje só restam 14…”

O que desespera esta arquitecta militante é que “é muito difícil acabar com este processo de destruição. Porque a lei não amedronta. Há um problema de impunidade.”
“E depois existe sempre o argumento politicamente correcto segundo o qual o país tem outros problemas para resolver” depois das destruições da longa guerra civil (1975-2002).

Luanda foi concebida durante a era colonial para abrigar 500 mil habitantes. Mas a sua população aumentou dez vezes mais durante o conflito e a cidade tentacular acolhe hoje cerca de um terço dos 18,5 milhões de Angolanos (segundo a ONU).

Alguns edifícios da era colonial foram de facto restaurados, como o do Banco Nacional de Angola, instalado na marginal. Mas “uma grande parte do património está em ruínas” diz com tristeza Ângela Mingas. “Porque existe aqui uma falsa ideia do progresso e da modernidade, associada a edifícios novos”.

Sentado na esplanada do Clube Naval, na baía de Luanda, Eleutério Faria olha desolado para a paisagem de gruas e de novos edifícios chineses. “É uma completa loucura!” Este homem, na casa dos sessenta anos, dirigiu o Gabinete angolano do Conselho Internacional para a Conservação de Monumentos Históricos (ICOMOS), ligado à Unesco, até ao início dos anos 90. “Uma das primeiras leis votadas na altura da independência foi a do património cultural. Nessa época, havia vontade, mas faltavam os meios, recorda ele. Depois nos anos 90, com a mudança de política (nota da redacção: o abandono do marxismo), as pessoas começaram a vir fazer negócios e destruíram esta herança para construir torres”. Na verdade, existe um Instituto Nacional do Património Cultural (INPC) que tem como missão recensear os edifícios antigos e colocar placas nos imóveis classificados, o que em teoria os protege. Mas, muitas vezes, o Instituto é confrontado com os factos consumados. Sónia Domingos, que dirige o INPC há alguns meses, admite que “por vezes, se chega ao gabinete na segunda-feira de manhã e há imóveis classificados que foram destruídos durante o fim-de-semana!”. O mercado imobiliário atingiu níveis vertiginosos nestes últimos anos no centro da capital angolana, que dispararam pelo afluxo de expatriados e pelo boom petrolífero. Instituições e sedes de empresas invadiram o centro da cidade, uma das mais caras do mundo, onde os apartamentos se alugam a preço de ouro: até 15 mil dólares por mês por quatro assoalhadas num edifício novo. Face à atracção do lucro, a preservação do património arquitectónico passa para segundo plano. Eleutério Freire pensa que é necessário encontrar uma forma de ajudar os proprietários destas casas classificadas a restaurá-las. E sobretudo, no seio de um mercado imobiliário tão competitivo, é preciso que o Estado lhes conceda contrapartidas financeiras para os dissuadir de vender os seus bens a promotores. “Poderia pensar-se, por exemplo, em dar a estes proprietários terrenos fora da cidade”, pensa ele, para os compensar da sua quebra de lucros.

Uma colega de Ângela Mingas quis comprar um sobrado na cidade baixa, que estava em mau estado, para o restaurar e nele morar. Mas um promotor imobiliário que queria o terreno para aí construir um edifício de oito andares ofereceu dois milhões de dólares pagos em mão ao proprietário, conta a arquitecta. “Não se consegue lutar contra isto”.

 

Translation:  Maria José Cartaxo

por Cécile de Comarmond
Cidade | 1 Outubro 2010 | luanda, património, sobrados