Panorama: fantasmas latentes

aqui tudo parece 

que era ainda construção

e já é ruína.

Caetano Veloso

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Qualquer conversa ou reflexão sobre a história da arquitectura e do urbanismo em Angola não pode iniciar sem que se reflicta sobre o projecto colonial e o seu impacto na formação das cidades angolanas.  

Por um lado, podemos afirmar de forma mais geral que qualquer cidade é fruto de uma articulação do tempo – passado, presente e futuro e, como tal, um objecto de múltiplas identidades e experiências; por outro lado, esta interacção nem sempre acontece de forma pacífica.

A história das cidades em Angola é, como diz Isabel Castro Henriques “a expressão de um processo de domínio colonial, revelado na materialidade do espaço urbano e dos seus edifícios, assim como na organização social, permeável aos ritmos da história económica e política”. O processo de urbanização foi um dos princípios activos da política do Estado-Novo e permitiu e legitimou um processo de produção arquitectónica e urbanística que, no contexto angolano, deu origem a obras que contêm em si uma linguagem estética particular, tropicalista, assente em princípios da arquitectura do movimento moderno, adaptados ao lugar, à geografia e ao clima locais.

O arquitectónico Moderno-Tropical não representa de todo os princípios colonialistas do Estado novo, e serviu de base para uma ruptura e para a construção de uma narrativa de um ideal de sociedade igualitária e democrática que nunca realmente se instalou. Não só o plano de urbanização significou um apagamento dos lugares existentes e a imposição de novos ideais de sociedade, como a utopia de liberdade do movimento moderno falhou consideravelmente.

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O período pós-independência vê o surgimento de outras edificações, reflexo de novas ideologias políticas, tais como complexos habitacionais construídos por intervenientes russos e por cubanos, entre outros.

Após o termino da guerra civil, Angola viveu um boom económico, resultado da subida do preço do petróleo e da emergência de um modelo económico capitalista. Estas mudanças permitiram o florescimento de projectos sob a sigla da reconstrução nacional, como grandes projectos habitacionais, infra-estruturas; e também de projectos grandes imobiliários de cariz privado.

Panorama, de Mónica de Miranda Panorama, de Mónica de Miranda

O surgimento e escala dos novos projectos imobiliários e no campo da intervenção urbana é proporcional ao estado de abandono em que se encontra o legado arquitetónico mais antigo. A ineficácia de projectos de preservação e/ou restauro das antigas edificações, neste contexto, não se restringem a concepção e ao restauro técnico, mas esbarram em questões políticas e desinteresse económico, assim como na impossibilidade de dissociar o património edificado do seu contexto histórico.

Restaurar aqui não significaria somente a recuperação das formas edificadas, mas um olhar crítico para a história e o estabelecer de uma dialéctica entre o passado e o futuro, urdindo laços entre a forma edificada e novos usuários, a criação de novas memórias.

Estes conceitos, apesar do muito que se tem discutido em relação ao património edificado, acabam atropelados por interesses comerciais e por uma relação conflituosa com a história – se o legado arquitectónico representa ainda um passado que se quer cada dia mais distante, os crescentes arranha-céus e novas centralidades são o simulacro da “nova Angola”, carregam um subtil desejo de apagamento da história da arquitectura.

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Resquícios de diferentes intervenientes – políticos, económicos e sociais são visíveis e materializados na morfologia das cidades, é o que as torna singulares; é também nestes espaços que se desenham (novas) relações de identidade, cada vez mais distintas e singulares, fruto da acção da memória de diferentes grupos socais. 

É esta geografia de tensão entre o passado presente e um presente incerto, com as descontinuidades espácio-temporais típicas das locações trans-históricas (pós-coloniais), que serve de ponto de partida para Panorama, o projecto de investigação Pós-Arquivo de Mónica de Miranda, e que explora as ligações passadas e presentes de memórias coloniais e pós-coloniais. Trabalhando com e sobre uma multiplicidade de meios – fotografia, vídeo e instalação – a artista, cujo percurso académico e artístico se articula à volta de temas como arqueologias urbanas e geografias pessoais, desenha um processo crítico de desconstrução histórica e (re) construção da memória colectiva Angolana.

Panorama é o título do projecto e também o icónico hotel construído na década de 60-70 na Ilha de Luanda, onde os hóspedes tinham uma visão panorâmica da baía de Luanda e do oceano Atlântico, um dos mais emblemáticos e charmosos hotéis em Luanda, há muito desactivado e relegado ao abandono. O hotel traz consigo a simbologia da viagem, dos trânsitos diaspóricos, é um dos elementos arquitectónicos recorrentes nas explorações da artista. Em Hotel Globo (2015), obra que tem como ponto de partida o hotel construído na década de 50 na Baixa de Luanda, o edifício adquire um estatuto de quase resistência às mudanças aceleradas em seu redor; Panorama materializa a decadência, é um navio naufragado, resignado à própria sorte.

Panorama, de Mónica de Miranda Panorama, de Mónica de Miranda

Mas Panorama não se refere apenas ao Hotel e abre um amplo conjunto de significados – uma visão multifacetada e integral de vários objectos ou temas. Este duplo significado assume-se por um lado, como estratégia narrativa e por outro lado como estratégia de representação.

A dualidade entre passado e presente (e futuro), permeia o projecto como um todo, e está patente em obras como Fall (Queda) ou Angolan House (Casa Angolana).  A primeira, uma alusão directa à queda do império e ao contexto para o qual somos transportados - as quedas de Kalandula. Aqui, uma antiga pousada colonial é engolida pela natureza. A paisagem repousa intacta e imponente e absorve a arquitectura.

A segunda remete imediatamente para a “Casa Portuguesa”, reflexo do debate sobre a identidade política, cultural e artística e das manifestações de procura de uma identidade original portuguesa. Aqui, somos confrontados com a ideia de uma Casa Angolana, totalmente preservada, mas que não se assume completamente como tal. A Casa Angolana é moderna e reflexo do debate sobre a origem da arquitectura moderno-tropical e sua autenticidade. O tratamento dado às imagens, com uma intervenção em cera dão às imagens uma dimensão temporal de eternidade, remetendo à urgência de preservar o estado físico e consequentemente, a memória.

A inclusão de personagens crípticas como as Gémeas em Karl Marx e When words escape, flowers speak amplificam o significado de identidade, gémeas carregam em si uma dupla identidade que confunde ou se sobrepõe, mas é sempre distinta e individual; a ficcionalização da história com micronarrativas acrescenta dimensões temporais que remetem não só ao passado colonial, mas também a história mais recente de Angola e ao futuro.

A instalação , desenvolvida especialmente para esta exposição conta com a colaboração do artista Soundslike Nuno (Chullage) na construção da paisagem sonora. Uma bailarina clássica observa a cidade do alto do prédio do livro, enquanto uma orquestra de cordas toca uma composição com acordes descontínuos, numa performance em diferentes locações, à procura do acorde perfeito. Composto como uma sinfonia da cidade, o filme é um estudo sobre a cidade actual, seus ritmos e transformações, onde os personagens transitam entre o ser parte integrante, agentes ou meros observadores de uma história em construção.

Panorama, de Mónica de Miranda Panorama, de Mónica de Miranda

Panorama não é uma arqueologia urbana, nem somente uma meditação sobre a presença dos passados coloniais em contextos pós-coloniais, sobre a memória individual versus memória colectiva. As imagens não são um registo, elas existem num espaço fronteiriço, que permite uma reflexão mais ampla sobre estratégias de formação das identidades individuais e colectivas que, tal como antecipado por Homi K. Bhabha “Initiate new signs of identity, and innovative sites of collaboration, and contestation in the act of defining the idea of society itself”.

Ao sublinhar a forma como o império adquiriu uma feição material no quotidiano urbano, permeando e condicionando o imaginário colectivo, Panorama revela fantasmas latentes, por vezes escamoteados pela aceleração do tempo e do espaço e lembra-nos da necessidade de distintas interpretações da realidade envolvente, e de nos concentrar-mos nos momentos produzidos na articulação de diferenças culturais enquanto momentos de confronto, em contraponto com a amnésia histórica, e cruciais para a construção de qualquer sociedade.

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A propósito da exposição Panorama (em exibição em Luanda na Galeria do Banco Económico até 25 de Janeiro 2019) da artista angolana Mónica de Miranda, a arquitecta e curadora da exposição Paula Nascimento escreve sobre a reflexão do projecto colonial e o seu impacto na formação das cidades angolanas como ponto de partida na observação do projecto pós-arquivo da artista.

A propósito da exposição Panorama (em exibição em Luanda na Galeria do Banco Económico até 25 de Janeiro 2019) da artista angolana Mónica de Miranda, a arquitecta e curadora da exposição Paula Nascimento escreve sobre a reflexão do projecto colonial e o seu impacto na formação das cidades angolanas como ponto de partida na observação do projecto pós-arquivo da artista.

 

 

por Paula Nascimento
Cidade | 29 Novembro 2018 | arquitectura, arte contemporânea, colonial, Hotel Globo, Hotel Panorama, luanda, Mónica de Miranda, pos-colonial, tropical