ReMapping. Descolonizar Lisboa e recuperar a memória dos esquecidos no mapa da cidade

O remapeamento das memórias de Lisboa e Hamburgo foi o objetivo do ReMapping Memories Lisboa – Hamburg: Lugares de Memória (Pós)Coloniais, do Goethe-Institut Portugal. Susanne Sporrer, diretora do instituto, e Marta Lança, coordenadora do projeto, explicam a importância de descolonizar a cidade e fazem o balanço destes dois anos que se assinalam a 28 de maio, com uma festa que é para continuar.

Marta Lança, coordenadora do projeto ReMapping Memories Lisboa-Hamburg, e Susanne Sporrer, diretora do Goethe-Institut, em Lisboa. Foto por Rita Ansone.Marta Lança, coordenadora do projeto ReMapping Memories Lisboa-Hamburg, e Susanne Sporrer, diretora do Goethe-Institut, em Lisboa. Foto por Rita Ansone.

Nos mapas oficiais, ruas e monumentos, das cidades de Lisboa e Hamburgo, dois históricos centros nevrálgicos do colonialismo europeu, a história é contada, até hoje, do ponto de vista dos colonizadores. Mas são cada vez mais as vozes que exigem trazer à luz os outros lados da história: o dos que resistiram, o dos que foram feitos escravos, o dos que viveram e vivem, construíram e constroem, todos os dias, estas cidades.

Foi dessa urgência que nasceu o ReMapping Memories Lisboa-Hamburg: Lugares de Memória (Pós)Coloniais, uma iniciativa do Goethe-Institut, em Lisboa, através do qual se recriam, através de textos, artigos, entrevistas e obras gráficas, novos mapas das cidades, contextualizando lugares de memória e repensando a relação das mesmas com o colonialismo, a resistência anticolonial e a presença africana, de maneira a inscrever outras histórias na memória coletiva e a encontrar estratégias de descolonização das cidades.

O projeto assinala a 28 de maio dois anos de reflexão, com uma grande festa, que só não é um grand finale porque a ideia é que Lisboa (e Hamburgo) pegue no ReMapping Memories e lhe dê continuidade, tornando-se assim “Cidade Igualitária: Lisboa por vir”. A diretora do Instituto, Susanne Sporrer, e Marta Lança, coordenadora do projeto, explicam a importância de descolonizar a cidade.

Contribuir para descolonização de Lisboa e Hamburgo, através do remapeamento de memórias das duas cidades. É este grande objetivo do projeto ReMapping Memories. Como surgiu a ideia?

Susanne Sporrer – A ideia surgiu em 2018, quando a discussão em Lisboa sobre o Museu das Descobertas estava ao rubro. Na Alemanha, também havia uma discussão intensa sobre o novo Fórum Humboldt no reconstruído Palácio da Cidade, em Berlim, e, em França, o presidente Emmanuel Macron tinha acabado de encomendar uma pesquisa sobre a restituição do património africano roubado.

Era a primeira vez, na minha perspetiva, que em vários países da Europa se discutia a descolonização, não apenas no meio académico. A discussão tinha chegado à política e aos media e envolvia a opinião pública, as pessoas.

No Goethe-Institut trabalhamos sempre de forma bilateral e por isso achámos que era boa altura para fazer uma comparação entre uma cidade na Alemanha e uma cidade em Portugal sobre os vestígios e monumentos, coloniais e pós-coloniais, e que era boa ideia envolver no projeto uma série de pessoas de áreas diversas que refletem ou trabalham sobre estas questões.

Susanne Sporrer é a diretora do Goethe-Institut Portugal, com sede em Lisboa. Partiu dela a ideia do projeto ReMapping Memories Lisboa-Hamburg Lugares de Memória (Pós)Coloniais. Foto por Rita Ansone.Susanne Sporrer é a diretora do Goethe-Institut Portugal, com sede em Lisboa. Partiu dela a ideia do projeto ReMapping Memories Lisboa-Hamburg Lugares de Memória (Pós)Coloniais. Foto por Rita Ansone.

E porquê Lisboa e Hamburgo e não Lisboa e Berlim?

SS – Ambas são cidades portuárias e muito marcadas pelo colonialismo. Berlim foi muito importante para o colonialismo alemão, mas em termos económicos, Hamburgo foi a cidade chave. As ligações coloniais entre Hamburgo e Lisboa remontam ao século XVI e havia um forte intercâmbio comercial entre as duas cidades.

Por outro lado, hoje, Hamburgo é muito interessante para esta questão porque é a primeira cidade na Alemanha que está a desenvolver um conceito para a descolonização da cidade. Os poderes públicos perceberam que tinham que trabalhar esta questão do processo de descolonização em todas as áreas da esfera pública e foi criado um conselho consultivo para o efeito, constituído especialmente por pessoas racializadas e ativistas.

Marta Lança, diretora do portal Buala, é a coordenadora em Lisboa do projeto ReMapping Memories Lisboa-Hamburg. Foto por Rita Ansone.Marta Lança, diretora do portal Buala, é a coordenadora em Lisboa do projeto ReMapping Memories Lisboa-Hamburg. Foto por Rita Ansone.

Marta Lança – Por exemplo, em Hamburgo há um monumento enorme a Bismark, que está a ser recuperado, envolvendo um grande investimento, mas ao mesmo tempo começaram uma discussão pública com Kiluanji Kia Henda, o artista cujo projeto Plantação venceu o concurso para o Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas em Lisboa, por considerarem que Hamburgo pode aprender com este processo participativo que teve lugar em Lisboa.

SS – Esta é uma discussão que está a acontecer em toda a Europa, e o nosso projeto, com o foco em Lisboa e Hamburgo, mostra as ligações e os paralelos entre dois centros do sistema colonialista, que foi um projeto europeu. Temos que aprender uns com os outros como fazer a descolonização das cidades.

Em que sentido é que remapear as memórias coloniais das cidades contribui para esse processo?

SS – A descolonização da cidade é o coração do nosso projeto. Queríamos que não fosse um projeto académico e que estivesse relacionado com as pessoas e as suas vidas. A discussão sobre a restituição do património cultural é muito importante, mas, para a maioria das pessoas, na Europa, é muito abstrata.

As nossas cidades europeias estão cheias de memórias coloniais. Estátuas, nomes de ruas, de monumentos, edifícios, inscrições. Estes representam a nossa história, incluindo a nossa história violenta, e moldam as nossas sociedades. O que fazemos com esta herança? E como podemos criar um “sentimento contínuo de perturbação” – uma expressão de Carsten Brosda, Senador da Cultura de Hamburgo – quando passamos por estátuas que não representam valores democráticos, mas sim desprezo pela humanidade, violência? E o que fazemos com todos os lugares e pessoas que hoje já não são lembrados: os heróis da resistência, pessoas racializadas, que construíram as nossas cidades como escravos, que aqui viveram, que moldaram e enriqueceram as cidades, mas que não foram homenageados com monumentos? No fundo: o que fazemos com esta história esquecida?

ML – A nossa metodologia de trabalho tem sido ouvir as pessoas. Começámos com entrevistas a pessoas com backgrounds muito diferentes, no sentido de perceber o que sentiam em relação a Lisboa, que lugares têm falta de memória pública e deviam ser alvo de memorialização, contextualização, de crítica, de sinalização. Há imensos edifícios, ruas, monumentos, que têm um significado colonial que as pessoas não conhecem.

Por exemplo, a Casa dos Estudantes do Império, quem passa por ali não sabe a história e o significado que aquele edifício teve e então procurámos perceber como devia ser memorializado. A partir dessas vozes, que fomos ouvir, apontámos 25 lugares de memória, em Lisboa, que iriam ser trabalhados ao longo do tempo. Em Hamburgo, o método foi semelhante.

A Casa dos Estudantes do Império é um dos Lugares de Memória escolhidos pelo ReMapping Memories para análise e contextualização.A Casa dos Estudantes do Império é um dos Lugares de Memória escolhidos pelo ReMapping Memories para análise e contextualização.

Há a mesma abertura, nas duas cidades, para esta reescrita da história?

ML – Acho que o que é interessante no ReMapping Memories é inscrever a descolonialização de Lisboa numa discussão internacional, abrir-lhe mundo, mostrando que não é uma discussão de meia dúzia de iconoclastas que estão a querer agitar o império português e a sua memória, que faz parte ainda hoje da narrativa nacional e se mantém nos nossos manuais escolares. Fazendo este paralelo com outros exemplos europeus, ajuda a esclarecer que pensar o passado e o presente da Europa, interracial, intercultural e democrática, é um projeto coletivo, no sentido de contribuir para um presente em que as pessoas se sintam representadas.

O ReMapping Memories quer contribuir para a questão da representação e da representatividade, exortando à participação na cidade e valorizando histórias que têm sido omitidas, nomeadamente a dos trabalhadores que construíram Lisboa e que são na sua maioria trabalhadores negros da periferia, que não se reveem nesta memória pública. Trata-se de contar a história da presença na cidade e que é pouco valorizada.

Não tem só que ver com os monumentos e esse lado mais óbvio, mas com as ligações à colonialidade, que não respeitam só ao período colonial, mas ao que ficou dessa matriz colonial no presente, a colonialidade como um processo que ainda está em curso. Para pensar em respostas é preciso  envolver investigadores, jornalistas e ter uma forte participação de afrodescendentes.

SS – Trata-se de repensar mesmo a história. Temos uma história que é branca, masculina, e em que parte da sociedade não existe e o que nós queremos é contar a história dos que ficaram apagados, através de lugares que já não existem, como o Bairro do Mocambo, mas que foram uma parte muito importante da cidade para os africanos. No nosso projeto, procurámos incluir todos os especialistas nesta matéria, e o mais possível pessoas negras e afrodescendentes, para perceber as diversas variáveis e o lado dos que não fazem parte da história oficial. Esta é uma questão essencial. Como é que a história é ensinada nas escolas? Há muito trabalho a ser feito e há um caminho longo a percorrer.

O que é que já conseguiram?

ML – Esta metodologia está a ser muito interessante e surpreendente, no caso de Lisboa. Por exemplo, como é que uma pessoa racializada vê o Padrão dos Descobrimentos? Essa interrogação colocada a pessoas que normalmente não são convocadas para pensar isto foi muito enriquecedora para o projeto.

Temos textos sobre como se construiu a Expo’98 do ponto de vista dos operários negros e o que isso significou em termos de políticas migratórias, com a abertura excepcional à legalização de imigrantes só porque era preciso mão-de-obra, toda a narrativa dos oceanos e a simbologia das navegações que com outras roupagens remete para o colonialismo, a toponímia da cidade, os institutos coloniais.

Outro exemplo, um dos antropólogos entrevistados diz que gostaria de ver um monumento nas Portas de Benfica, que é a linha divisória entre Lisboa e essa imensa periferia de pessoas racializadas que trabalham em Lisboa. Acho bastante enriquecedor ter estas visões tão diversas.

É uma ideia de descolonizar a cidade, encontrando ferramentas, através da educação, dos manuais, do debate público sobre estes assuntos, para que os lisboetas, e os turistas que nos visitam, saibam, através do nosso site, que há outras leituras sobre determinados símbolos e lugares da cidade com que sempre conviveram ou que veem pela primeira vez, mas de uma forma contextualizada, para não perpetuar uma imagem redutora e direcionada para determinadas ideologias.

O antigo Bairro do Mocambo, atual Madragoa, São Bento, Portas de Benfica e o Padrão dos Descobrimentos são outros dos 25 Lugares de Memória tratados pelo ReMapping Memories. Fotos por Rui Sérgio Afonso.O antigo Bairro do Mocambo, atual Madragoa, São Bento, Portas de Benfica e o Padrão dos Descobrimentos são outros dos 25 Lugares de Memória tratados pelo ReMapping Memories. Fotos por Rui Sérgio Afonso.

Tem havido alguma resistência, nomeadamente em Portugal, onde se fala de apagamento da história. A ideia não é apagar, é contextualizar, resgatando a possível justiça histórica, não é?

ML – 

Tem havido alguma resistência, nomeadamente em Portugal, onde se fala de apagamento da história. A ideia não é apagar, é contextualizar, resgatando a possível justiça histórica, não é?

ML – A memória convoca mais subjetividade do que a História. Não existem factos neutros, será sempre conflituosa. Acho estimulante que Lisboa esteja a viver essas disputas de memória. O status quo reage muito ufanamente a qualquer confronto à narrativa nacional, tão sólida e incutida, dos Descobrimentos e outras glorificações. As camadas de leitura da cidade têm de se dar a ver, e essas multivisões não têm como se esquivar ao conflito. Reconhecer que houve muita gente omitida na construção da cidade enquanto tal já é um passo importante.

Lisboa não se resume a uma certa ideia de cidade, toda a área metropolitana e as pessoas dessa grande Lisboa fazem parte. Quisemos aprender mais sobre lugares fundamentais da cidade, como o bairro de Santa Filomena, a Cova da Moura, a Estrada Militar, as Portas de Benfica, em paralelo a Belém ou os lugares mais óbvios da colonialidade. A Lisboa de hoje, pós-colonial tem que ser pensada, nas relações com a história e outros campos.

 

SS – Em Hamburgo, existem os mesmos conflitos, mas há a consciência de que temos que lidar com este assunto de uma forma nova porque a forma como lidámos até aqui não permite um caminho para um futuro mais democrático, não racista e igualitário.

As cidades são organismos vivos. Na Alemanha, discute-se renomear algumas ruas. Se vivemos numa sociedade democrática e passamos num monumento ou numa rua com o nome de alguém que é contrário à democracia e aos direitos humanos e à igualdade, precisamos mesmo do tal “sentimento contínuo de perturbação”, é preciso que esses monumentos sejam contextualizados, é preciso que outros monumentos ou intervenções artísticas sejam criados. O Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas, em Lisboa, neste sentido foi muito inspirador para Hamburgo e há o projeto de fazer uma coisa parecida lá.

Nós, no Goethe-Institut, queremos desenvolver esta reflexão e discussão e pensamos que este projeto, o ReMapping Memories Lisboa-Hamburg, pode contribuir para isso. Muitos destes monumentos de que falamos, enquanto lugares de memória, são pontos de passagem obrigatória para o turismo, tanto em Lisboa como em Hamburgo.

Que balanço fazem destes dois anos de projeto?

SS – Na verdade, preferia falar de um balanço intercalar, mais do que de um balanço final. O coração do projeto, o site, não está finalizado, tal como a análise do tema, e talvez nunca o esteja. Se o trabalho no site acabasse agora, não seria mais do que um arquivo. Mas se tiver continuação em ambas as cidades, pode desempenhar um papel importante num debate vivo e multifacetado sobre o passado colonial e na discussão sobre um futuro descolonizado.

site está cheio de informação, linhas de ligação entre as duas cidades, é um tesouro de conhecimentos, perspetivas e referências cruzadas. Por isso, estamos imensamente gratos a todos os que apoiaram o projeto em Lisboa e Hamburgo: o conselho consultivo, que nos aconselhou tão ativamente, os autores, os entrevistados, os artistas, mas também a equipa, sobretudo a Marta Lança. Foram os seus conhecimentos, as suas perspetivas que pudemos reunir no projeto. 

O que importa agora é expandir este conhecimento, mas também trazê-lo para as sociedades das duas cidades, para as instituições educativas, para as escolas, seja através da disponibilização dos textos como podcasts, seja através de projetos educativos e explorações urbanas que se baseiam nele. Um trabalho que, nomeadamente, já foi iniciado nos últimos meses.

Para que não acabe agora, estamos atualmente em discussão com parceiros em Hamburgo e Lisboa sobre como este projeto pode ter continuidade em ambas as cidades. Também o diálogo que se iniciou entre Hamburgo e Lisboa poderia ser intensificado ainda mais. As duas cidades podem aprender muito uma com a outra ao lidarem com o passado colonial.

Por exemplo, o processo participativo que levou à conceção do memorial de homenagem às pessoas escravizadas em Lisboa encontrou ressonância muito positiva em Hamburgo. Por outro lado, o objetivo de Hamburgo de desenvolver um conceito para a descolonização da cidade como um todo, ao nível do Senado, e que contou com uma abordagem participativa, teve eco positivo em Lisboa. Para nós, enquanto Goethe-Institut, o importante foi estabelecer estas ligações, tornar estes processos cívicos visíveis e fortalecê-los.

ML – Durante estes meses de conceção e dinamização do site ReMapping Memories, posso afirmar, orgulhosa, que as várias questões abordadas no dão corpo ao grande tema do projeto que é a relação da cidade com a colonialidade.

Penso que os contributos que se encontram disponíveis no site tornam o debate da “descolonização das cidades” menos abstrato ao fornecerem textos de autor com reflexões, de pendor histórico e jornalístico, assim como opiniões. No seu conjunto contribui-se para o diálogo alargado sobre uma cidade onde todos se sintam representados.

Da coordenação de Lisboa, o resultado é extremamente positivo. Em primeiro lugar pelas 15 entrevistas a personalidades que já têm trabalho efetuado e militância comprovada sobre as políticas de memória e pensamento sobre a cidade, foram fundamentais para identificar os lugares a memorializar. Muitas outras haverá a fazer na próxima fase mas procurei um leque de posicionamentos e campos de trabalho diverso.

Depois os 18 lugares de memória publicados, mais três que estão a sair (que é o caso de Belém, a estátua do Padre António Vieira, e o B.leza – discotecas africanas) são sinal de um grande empenho. Estes artigos fazem um profundo estudo a partir de determinado lugar, escrito de modo acessível e inteligível para o leitor, tentámos evitar o estilo demasiado académico. Também se denota a preocupação por ser abrangente em termos espaciais e temporais.

Foi muitíssimo impulsionador de toda esta reflexão coletiva, as ilustrações de Francisco Vidal, as imagens de Rui Sérgio Afonso e o ciclo de debates “Memoralizar e descolonizar a cidade (pós)colonial”, organizada pelo Goethe-Institut Portugal, que está online e vale a pena rever.

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Artigo originalmente publicado em Mensagem de Lisboa a 27.05.2022

por Catarina Pires
Cidade | 27 Maio 2022 | 28 maio, Goethe-institut, Lisboa, Marta Lança, pensar lisboa, pos-colonialismo, ReMapping Memories, susanne sporrer