Entre prática religiosa e espaço de culto: as dimensões do corpo-crente em "Variações da Fé"

instalação Variações da Fé consistia em pôr em cena os elementos simbólicos de uma mesquita contemporânea, no intuito de reflectir sobre a relação entre práticas, espaço e corpo na religião muçulmana. Tendo formação em antropologia, quis pesquisar o Islão a partir de duas mesquitas situadas no Intendente, em Lisboa, terreno do meu estudo. Nessas ditas mesquitas “clandestinas”, fui-me familiarizando com o ritmo das rezas, ao observar as entradas e saídas e a lógica do espaço nas visitas ao seu interior, fora dos horários do serviço. Pude igualmente contar com a colaboração da Mesquita Central de Lisboa, tendo o Sheikh Mounir aceite a minha presença no local, o que me permitiu assistir às aulas, orações e vida da mesquita nos tempos intersticiais. 


As práticas da fé são condicionadas pela relação entre os objectos de culto (torneiras, sapateiras ou tapetes de reza) e os espaços sagrados. Podemos imaginar o conjunto do acto ritual como um todo que pode ser cindido em várias partes, desde a preparação ao ato da oração. Assim, o meu processo de trabalho consistiu em isolar os diferentes componentes e articulá-los. 

Paralelamente, dispus de três salas no Palácio do Marquês de Pombal para a instalação: duas pequenas e uma grande, ligadas por um corredor. Cada uma das salas acolhia então uma peça, dividindo o espaço consoante as etapas da reza: as abluções (Wuzu), o descalçar-se (Übur) e a oração (Sajda, para a prosternação, Mehrab para o espaço do Imã e Azan para o chamamento). Desta proposta concebida in situ resultou um simulacro de mesquita, convidando o visitante a ser participante na criação de uma hiper-realidade (Baudrillard, 1981). 

Uma das vertentes deste trabalho foi pensar a relação ideológica entre o espaço de oração (a mesquita) e o espaço de exposição (o palácio), no âmbito das suas interligações históricas, culturais e arquitetónicas. Outra vertente do trabalho foi interrogar o espaço ocupado pelo corpo-crente na relação com as práticas rituais e o local sagrado. Em Variações da Fé, o corpo aparece progressivamente, ao longo do desenrolar da proposta no espaço, até desaparecer. Entramos. 

A preparação para a oração inicia-se com as abluções, que consistem na ordenada lavagem das mãos, rosto (pele, nariz, boca, orelhas) e pés, com a água corrente. Libertando a pele da interferência do mundo exterior, o efeito purificador dessas abluções tem como consequência para o crente apresentar-se à reza com um corpo novo. 

Em Wuzu, a representação desta primeira etapa, o corpo está ainda ausente. A peça é composta por dois vídeos, projectando no total cinco torneiras de maneira a alinharem-se no canto das duas paredes da sala. Quem se apresenta pelo corredor vê, em primeiro lugar, os focos de luz. Para chegar à imagem, o visitante tem que atravessar os focos, perfurando a luz e, cobrando, por extensão, a própria imagem pelas sombras sobrepostas. Nesta fase do processo, foi importante considerar a vertente catalisadora do corpo, no sentido em que a presença efémera das sombras tinha um impacto directo na obra, reação imediata que podia ler-se de dois modos: alteração da imagem com as “máscaras” instantâneas, e a incorporação da luz projectada no corpo que passa. 

Depois passamos por Übur, indispensável momento de transição, colocado na sala do meio, para ser visto antes ou após a reza. Antes de entrarem na mesquita ou na sala de orações, todos os crentes tiram os sapatos para se livrarem das marcas do exterior. Esta etapa liminar tem por objectivo a proteção do espaço de culto: os muçulmanos podem rezar onde quer que seja, desde que estejam livres de impurezas. Übur foi filmado à saída da reza, num plano de pormenor que foca os pés dos crentes, abandonando a mesquita ainda descalços ou com meio sapato preso. Neste momento, o corpo começa a integrar outro sentido. Focando a base que são os pés, o corpo torna-se vector, no sentido etimológico de veho, em latim transportar. 

Na sala seguinte surge uma proposta composta por peças, sendo elas os marcadores da reza. No chão, os cinco corpos-crentes em tamanho real, materializados pelas fotografias da série Sajda, apresentam-se todos virados para a Quiblah, direção para a qual o muçulmano se volta durante a oração, apontando para Meca. Os movimentos pilares da reza consistem em quatro posturas, das quais a “sajda” (prostração) é a mais emblemática. Performativamente, esta postura cristaliza o sentimento de devoção, justificando o sentido da palavra Islão, que quer precisamente dizer “submissão” ou “vassalagem” a Deus. Os diferentes movimentos da oração são integrados pelo crente através de um processo mimético que tem por intuito ligar o corpo e o espírito, tornando-se desde então mediadores da fé. Neste sentido, a prática repetida das genuflexões e prosternações procura, por um lado, o bem-estar e a resistência do corpo e, por outro, condiciona o ascetismo e o fervor. 

Para além disso, a quadrícula formada pela divisão do tapete de orações em rectângulos vem delimitar o espaço individual ao mesmo tempo que estrutura o colectivo. A presença dos corpos na reza, agora integral- mente representados através das fotografias, questiona a relação entre o corpo singular e a sua união ao grupo. Recorri ao simbolismo que a religião muçulmana atribui ao número cinco, já anunciado em Wuzu: são cinco os pilares do Islão, assim como são cinco as rezas diárias. O conjunto formado por este número pode ser apreendido de relance, permitindo ainda distinguir os diferentes valores e componentes dos corpos identificados: morfologia, roupa e postura variam de um ao outro corpo-crente, com mais ou menos respeito pela “norma” islâmica. 

Se a religião muçulmana se apoia na concepção igualitária entre os crentes, podemos pensar que o grupo se pensa como colectivo, e até como comunidade. Aliás, muitos dos testemunhos visuais de muçulmanos a rezar são representados todos juntos, em simultâneo, em linhas definidas. Mas em que medida esta denominação de “comunidade” não é, muitas vezes, usada como instrumento de distinção (Bourdieu 1979) para salientar a diferença com o “Outro”, num reflexo de defesa meramente etnocêntrico? Para além da projeção, e existindo este sentimento de pertença, como pensar o papel das identidades individuais em relação à hegemonia desta supra-entidade, a “comunidade imaginada” (Anderson 1983)? Perante esta questão, num movimento contrário, propus separar esses corpos, colocar uma certa distância entre si e, dentro das fotografias, jogar com os limites e as margens do tapete, o respeito do quadro, sugerindo a possibilidade de ultrapassá-los, separar o com - da - unidade. Assim destacados, podemos temporariamente esquecer a representação visual como imaginário de um conjunto inseparável. 

“Sempre que há interditos sociais, o papel do artista é o de criar rupturas”, diz Philippe Cardinal, comissário de uma exposição no Instituto do Mundo Árabe em Paris. Segundo essa perspectiva, o artista tem que arriscar sobretudo quando há constrangimentos políticos. Penso, por exemplo, na proposta Salat do artista suíço Johannes Gees que conseguiu emitir, com uma série de amplificadores sincronizados, o chamamento para a oração a partir da torre da catedral de Zurique, num país onde é proibido haver mesquitas. No entanto, decidi conscientemente criar um espaço de respeito, induzindo interiorização e recolhimento. Apesar de ter cometido algumas “infrações” ao código muçulmano, esteve sempre presente a busca de um sentimento específico – a fé – aliás esquecido ou subvalorizado. Isso proporcionou-se pelo trabalho sobre as várias dimensões dos corpos-crentes: catalizadores, vectores e mediadores. 

Este processo de aproximação enquanto mulher ateia ocidental ao mundo convertido ao Islão levou-me a questionar o seguinte: até que ponto a religião muçulmana se deixava apropriar e manipular, que enquadramento era insubstituível, que pontos limitavam as minhas experimentações? Na verdade, eu era uma potencial devota frente aos responsáveis religiosos: apoiaram-me também no sentido do proselitismo que a expo- sição proporcionava à religião deles. Cheguei a fazer uma visita à instalação para um grupo de alunos da Mesquita. No final, em forma de síntese, deu-se um momento muito particular: o Cheikh convidou os seus alunos para rezarem no chão da sala, ao lado das fotografias, aquando da última reza do dia. 

 

Variações da Fé é o titulo de uma instalação concebida para o Programa de Cultura Contemporânea Próximo Futuro da Fundação Calouste Gulbenkian e apresentada no Carpe Diem Arte e Pesquisa, em Lisboa, entre Outubro 2012 e Fevereiro 2013 

 

Publicado no livro Este corpo que me habita, BUALA 2014

por Hélène Veiga Gomes
Corpo | 31 Maio 2020 | culto, Intendente, Islão, Lisboa, mesquistas, práticas religiosas, religião