Queer, impreciso e aqui.

1. Precisamos de uma crítica queer, ainda. Precisamos de uma crítica queer porque o movimento LGBTI+ português se tem afunilado no sentido de cumprir as expectativas da sociedade civil, da modernização económica e epistemológica, e da fantasia soberba de uma Europa soberana. Conseguiu o que conseguiu, e segue conseguindo o que consegue. Mas o associativismo LGTBI+, em concreto, tem-se articulado sempre numa linha instável entre a interpelação do estado (enquanto problema estrutural; enquanto protagonista da sua opressão), e uma eventual incorporação nos seus projetos e aparatos do mesmo. O vínculo institucional parece, de resto, estar sempre imanente. Ou já desenhar, de base, os termos possíveis de engajamento.  

 

No processo, perdemos o risco de perder o fio à meada: ignorar as ramificações informais, núcleos e corpúsculos transitórios, corpas e gente em movimento, também elas fazendo o que hoje podem, e o que então podiam. Ou o fio está perdido, e há muito, de serem tantos os movimentos – e tão precários os seus arquivos. Mas precisamos de preservar um certo saber desse trabalho, invisível e inconclusivo. E na ausência do saber, um certo respeito. Nem que o seu fundamento seja a nossa própria ignorância.

 

2. Precisamos de uma crítica queer, ainda, por nos encontrarmos numa relação de curto-circuito causal com as instituições que governam o conjunto das relações sociais. O ciclo de acomodação e assimilação, pela sua lógica aditiva e integrativa, colocará sempre a racionalidade da instituição primeiro. Eventualmente, esta poderá atualizará a sua retórica, o seu reportório: as fórmulas da sua representação. No limite, talvez seja impactada, a um nível menos percetível, pelos princípios e pautas políticas às quais dedica apenas a mais performativa das atenções. Não importa: é dela, de base, a razão. Não desta ou daquela corpa, deste ou daquele desejo, desde ou daquele movimento. Muito menos das agentes invisíveis - individuais e coletivas – cujas configurações e métodos não se coadunam confortavelmente com a história oficial do movimento.

 

3. É da instituição, repito, a razão. Na sua racionalidade totalizadora, como na sua opacidade funcional. Na estreiteza geométrica das suas hierarquias inaugurais, como no monolinguismo dos universos de referência que lhe dizem respeito, ou daqueles que seletivamente imbui com algum grau de respeitabilidade. É a sua agência impessoal que importa, no âmbito de um conjunto alargado de relações de influência pelas quais se sinaliza, a dado momento, uma qualquer mudança na sensibilidade. Não necessariamente de paradigma – mas de tópico, tema, ou estilo. Um torno súbito no paladar coletivo; a vantagem competitiva de uma novidade. A subsequente apropriação do seu capital social, através de relações performativas de proximidade e pertença. Isto não descreve a transformação institucional, nem a desmontagem dos seus fundamentos e dos seus princípios organizacionais. Isto descreve a renovação do seu arsenal: o saneamento do seu intuito e imagem.

 

4. Precisamos de uma crítica queer, ainda, por ser um nome possível (e precisamos de todos os que a imaginação sugira) para um programa de ação política ciente de que a corpa é a unidade ética, económica, e política basilar. Leia-se, um programa que reconhece que é da corpa que advém a objetividade do que quer que seja que percebamos enquanto imagem, recurso, instrumento, matéria, afeto, facto, ou trabalho. Não há nada a discutir – não há nada a disputar – se não estiver, finalmente, a corpa em causa. E vida, sobrevivência, potência vital. Condição material do que neste se mundo se configure enquanto sujeito ou objeto. Condição primeira de ser, de estar, e de ter. Condição de posse, de poder. Condição, por isso, de despossessão.

 

5. Não precisamos da crítica queer, de todo. Queer é um fetiche conceptual bacoco, uma palavra de ordem sem missiva definida, um ornamento no jargão dos movimentos. Vestígio obtuso de uma linguagem alheia, e do seu alcance (imperial) sobre as demais. Se nos queremos pensar neste espaço-tempo específico, disputável como seja nos seus limites precisos, temos de o pensar como espaço-tempo linguístico também. De reconhecer a materialidade da linguagem, e não confiar nas nunca nas suas transparências. De reconhecer que mesmo que equívocas nos seus efeitos e motivos, as palavras são em si decisões, e que economias conceptuais e relacionais complexas subjazem cada momento de articulação. No fim, tudo é tão mais fácil e tão vivo, quando sabemos – quando escolhemos – o nome desejável das coisas. Um paneleiro é um paneleiro; uma fufa é uma fufa. Queer é um quê?, é certo. Mas suspenso sobre que realidades de fala e de vida? E de que outras realidades advindo? 

 

6. Espaço, tempo, corpo. Limite, território, desenho. Linguagem, poder, desejo. Sem que alguma venha primeiro.

 

7. Não há um futuro queer. Não há um futuro queer a discutir em relação a Portugal, e a Portugal como nome para mais que uma coisa, e para um espaço-tempo cujos contornos são porosos ou tencionados, dependendo da perspetiva. Dizer o nome de um território, sem nisso ativar desde logo a sua monumentalidade geopolítica, e a das suas grandes ficções: não sei se é possível, mas é uma ideia bonita. E alvez importante por isso. Ora, neste contexto chamado “Portugal”, que conhecemos e habitamos com as nossos respetivos corpas e linguagens (nem todas feitas de palavras): queer, o quê…? Queer é um arcaismo, uma prenda paga e intrusiva, uma palavra-passe para um pouco de tudo e, por isso, para um pouco de nada. 

 

Não há futuridade queer a vislumbrar porque queer já se esgotou na fumaça de movimentos mais importantes, de mil outros desenhos e de mil outros desejos. Não há futuridade queer a vislumbrar, porque não nos entendemos ainda com essa palavra, com as suas contradições basilares, com os processos que instancia numa escala mais lata. Se queer se estranha neste contexto – apesar de figurar por todo o lado… – é porque não é capaz de produzir os efeitos concretos de que precisamos. De intraduzível, não nos oferece nada, senão pela imagem abstrata das promessas que abarca.

 

E se já nos alterou, de fundo, o contexto, então onde vai a viragem paneleira? A marcha da raiva fufa? A da vergonha, concreta e franca? O arquivo das reversas, talvez? O manifesto das vagrantes, tríbades, trans? Algum sinal, nesta cartografia condicional, de que a sua transcrição ao contexto nacional não coincida apenas com a de gay, na estrutura e na conotação? 

 

Eis o que temo, e eis o que vejo: um novo nome; o mesmo referente. O mesmo alinhamento de sempre. Nós todas agindo, vivendo, e podendo à imagem dele – queer ou gay –, sem que importe sequer diferenciar os dois termos. O pensamento refém do mesmo referente; o programa preso aos contornos finitos das suas pertenças.

 

8. A escolha da imaginação, ainda… Por aquilo que permanece impreciso. Cuir, kwir, quíra… Curva, e coisa esquisita. Por queer ser tão ciente de ser palavra – tendo, historicamente falando, de significar algo bastante concreto, para que hoje signifique enquanto abstração – , talvez nos sugira outras opções. Um espectro mais amplo de escolhas possíveis. Algumas improvisadas, outras mal-traduzidas. Todas inventadas, em alguma medida. Não sei dizer qual, no entanto, nem de entre quantas. Gosto de curvas, e estimo as oblíquas. Diagonais que entortam antes mesmo de tocarem no centro. Mas estas palavras são minhas, e só isso: não trago a proposta, apenas as pistas. Estou curiosa, e isto que escrevo? É um convite à curiosidade, e à invenção.

 

9. A corpa está fodida em português, e nunca à letra. Em Portugal, pelo menos, é certo. Não pode, e não tem como. Não figura, não se dá à palavra. Se é pensada a desenhos, são os seus limites que se traçam primeiro. Cada contorno depois apertado, até esta ser firmemente prensada no seu exato lugar, Tudo em si de objeto; de sujeito, só ao esgar. Esse esgar dependente, em torno, de toda a distância possível; essa distância, em torno, impedindo a corpa que vê de ser vista. Uma relação fóbica com o sexo, talvez…? Do que tem de sujo, do que tem de ético. Um temor conceptual quanto ao que uma corpa sinta ou seja a dado momento. Uma relação temática com a corporalidade, puramente formal. Um programa curatorial com o seu nome no centro; um conjunto alargado de ensaios  sobre o tema. Corpo escrito e descrito à medida, mas sempre em função da sua ausência. Nada de porno, parece..? De pós-porno, nem podia. Mas o facto é que até podia… Acontecer ou fazer-se outra coisa. Ainda que a estreiteza do desenho restrinja as condições dessa feitura. Ainda que pareça que só quando nua ou dançante a corpa figura, finalmente, enquanto força e enquanto linguagem.

 

10. Curva, oblíqua, e descontínua… Se não é sobre queer, talvez seja sobre a carne. E ossos, sangues, as articulações. Vísceras, lábios, o tecido dos tendões. Sobre o que uma corpa concretamente pode, e o quanto isso conta neste mundo. Ainda que esse facto político não venha à conversa: não é suposto, e não é permitido. Uma outra ordem de estranhamento… A carne como acontecimento do corpo no espaço e no tempo. O corpo como valor mensurável do sujeito. A capacidade de trabalho enquanto cálculo inaugural: a cutilada aritmética pela qual se concebe um mundo inteiro. E todas as tramadas negociações que as nossas falas entretanto tentam com tudo isto: com a nossa mesma materialidade, com o nosso desejo em movimento, com a nossa corpa enquanto evento. Com a corpa a ser-se e dizer-se.

 

A corpa, e credo: a carne…

 

Estou a tentar aqui dizer algo.

 

11. O momento em que não sei o quê parece o mais próximo ao mais importante.

 

Leituras:

+ Chaos, Territory, and Art, de Elizabeth Grosz.

+ Outside Belongings, de Eslpeth Probyn

+ Cruising Utopia: The Then and There of Queer Futurity. de José Esteban Munõz.

+ Habeas Viscus, de Alexander Weheliye.

+ “Queer and Now”, de Eve Kofosky Sedgwick.

+ “What’s Queer About Queer Studies Now?”, de Jack Halberstam.

+ “What’s Left of Queer?”, de David L. Eng e Jasbir K. Puar.

+ E vários projetos, mais e menos recentes, a nível nacional: o Queer Lisboa, o Queer Porto, o Queer Code, o Queer Art Lab, o Queer Tropical, o Queer Fest, o Queer As Fuck, o Intervenção Queer Lx, a Agenda Queer de Lisboa, e muitos mais.

por Salomé Honório
Corpo | 16 Julho 2023 | corpo, desejo, LGBTI+, linguagem, poder, Queer