O filho de Khadafi falou ontem em direto para a TV estatal líbia. Na realidade, falou em direto para a BBC, a CNN, a Sky, a Al-Jazeera. O seu discurso foi um exercício de manipulação dos medos e preconceitos ocidentais: se houver mudança na Líbia haverá perturbação no fornecimento de petróleo; o tribalismo impor-se-á, formando-se estados islamistas; e a Líbia deixará de cumprir o seu papel de repressora da emigração clandestina africana para a Europa. O rapaz aparenta conhecer a ignorância ocidental sobre o mundo árabe contemporâneo – a sua diversidade, complexidade, exposição à globalização, surgimento de novos segmentos sociais e culturais, novas noções de pessoa, coletivo, cidadania, etc. E usa-a. Assim como usa os preconceitos orientalistas, velhos de gerações. Mas se ver e ouvir o filho do ditador foi o meu programa de TV “favorito” no domingo à noite, ele não teria ficado completo sem o artigo de opinião de Eduardo Lourenço no Público de segunda-feira. Lourenço fica refém de uma noção de alteridade “estruturante” entre o “Ocidente” e o que ele escolhe designar por “Islão” (e não mundo árabe); e parece dizer que devemos aceitar a impossibilidade de o nosso quadro de referências políticas alguma vez ser abraçado por aquele mundo. Fiquei chocado com esta recusa do universalismo de noções como democracia e liberdade. É que esse universalismo não depende da lógica import-export de um modelo; não depende de uma espécie de conversão missionária ou colonial; não depende sequer dos efeitos de contágio da globalização. Depende de uma coisa bem mais simples: os frigoríficos, inventados no ocidente, deixam de ser ocidentais no momento em que são usados noutras paragens. E são usados porque servem para resolver problemas concretos. O que se mete dentro deles varia, felizmente. Mas não é o conteúdo do Tupperware – caldo verde ou cuscus – que muda substancialmente a vantagem do frigorífico. A ignorância e o preconceito generalizados no ocidente sobre o mundo árabe, os receios cépticos de Lourenço, a manipulação descarada do filho de Khadafi, coincidem infelizmente na reificação da alteridade absoluta e na transformação do relativismo enquanto metodologia para perceber a diferença em ideologia para legitimar a desigualdade. A linha divisória não é entre ocidente e oriente; é entre esta amálgama diferencialista, feita de rudes flhos de ditadores e provectos intelectuais, e quem acha – em Portugal, na Líbia ou no Egito - que há muitas modernidades e democracias possíveis, culturalmente plásticas, mas baseadas num mesmo ideal universal.
Miguel Vale de Almeida