Fotografia africana I
Haverá uma história da fotografia africana, ou haverá histórias das fotografias africanas, porque as diversidades do continente tornam improvável um critério simplesmente geográfico. O Norte de África, a região sub-sahariana, o Sul têm histórias próprias, sem ser preciso invocar outras histórias regionais e/ou tribais diferenciadas. E certamente não haverá uma história da fotografia feita por negros, separadamente, porque isso seria refazer um simétrico apartheid depois do desaparecimento do apartheid branco. Ricardo Rangel era mestiço, David Goldblatt é branco, tal como é Jürgen Schadeberg, o qual, aliás, nasceu em Berlim.
Mas para além dessas histórias possíveis, há uma outra história necessária, que é menos a da produção e criação fotográfica (um espaço sempre, ou por muito tempo ainda, aberto à inclusão de um qualquer acervo desconhecido e até eventualmente inédito, ou mesmo, num caso limite, de um acervo nunca visto) do que a história da divulgação, da circulação e da recepção da fotografia, ou seja, a história do conhecimento e do reconhecimento da fotografia africana feita por africanos, dentro e fora de África.
Essa história é recentíssima, feita a partir da descoberta e valorização dos acervos dos retratistas africanos - tratando-se em geral, também, da sua apropriação pelos mercados da fotografia e da divulgação - , e envolvendo também a possibilidade da reimpressão de negativos fotográficos em novas tiragens, para novos clientes, com novos formatos, novos papeis, novos contrastes de pretro e branco, etc. O mesmo sucede com outras direcções da fotografia comercial e jornalística, passadas da página impressa à parede de exposição, num processo geral que se constituiu, a partir dos inícios da década de 1990, como a descoberta e a construção retrospectiva da história da fotografia africana. A acontecer em quase simultaneidade com uma transformação substancial da circulação da fotografia que não significou a sua dissolução no espaço da arte em geral (tantas vezes anunciada desde o séc. XIX), mas a sua coexistência nesse possível espaço da arte em geral com a ocupação de outros espaços próprios, de incerta especificidade, mas com diferenças notórias de condições de circulação e de públicos. Os Rencontres de Arles começaram lentamente a partir de 1970, depois de Maio 68 e sobre a ultrapassagem dos foto-clubes. Entre vários outros Encontros, os de Coimbra começam devagar em 1981. A fotografia africana tornou-se bruscamente objecto de atenção mediática, enquanto objecto continental (porque havia fotógrafos autores conhecidos vindos do Norte de África e grandes fotógrafos a trabalhar na África do Sul), em 1991 com a Revue Noire, e os primeiros Rencontres (sob influência e patrocínio francês) ocorrem em 1992 em Dakar, Senegal, e em 1994 em Bamako, Mali. Em 1996 chegavam esses interesses a Portugal, nos Encontros de Coimbra e na galeria do Espaço Oikos.
Fora dessa cronologia da circulação da fotografia africana no exterior do continente - e antes dela - está a afirmação de uma nova consciência da respectiva importância que se manifestou e reconheceu no início dos anos 1980 em Moçambique e em geral nos países da linha da frente, no Sul em guerra, incluindo o Zimbabwe (Rodésia), a Namíbia e a África do Sul. Com a independência e no contexto de uma revolução que acolheu alguns últimos mitos revolucionários e alternativos europeus, mas em especial por ter contado com a excepcionalidade do percurso profissional de Ricardo Rangel, mestiço de múltiplas origens e fotógrafo com responsabilidades editoriais assumidas muito cedo no âmbito da imprensa colonial, depois capaz de chefiar a transição da fotografia para os novos tempos, Moçambique terá ocupado uma posição única nesta história da afirmação e do reconhecimento da fotografia africana, em África e no exterior. (Rangel e Kok Nam trabalhavam para o Diário de Moçambique na Beira em 1964; em 1970 participam na criação do semanário Tempo). (Será curioso observar que no campo das artes plásticas Moçambique contou com outra figura superior e também única no quadro africano - e que a capacidade de fazer a transição entre eras, a colonial, a pós-independência, a revolucionária e a actual - quatro eras ou fases, portanto - tem a ver com a excepcionalidade desses personagens, enquanto artistas e agentes culturais.)
ALEXANDRE POMAR aqui