um preto, aos 80

Ornette Coleman, na Wire de Junho. Na capa e a ilustrar a entrevista, fotos admiráveis de Mark Mahaney. Agora que o ícone global, Michael Jackson, morreu, estas imagens, com antecedência de um mês, dão-nos a versão recalcitrante do preto não reciclável. São, de um estranho modo, uma pedagogia da memória – a memória de algo como The Souls of Black Folk -, num momento em que a ascensão de Obama poderia sugerir a inutilidade, ou pelo menos a dispensabilidade, desta. A Wire, sempre esperta, chamou a este Ornette aos 80, Empire State Human. Lamento, mas não confere com as fotos. Nelas, desde a extraordinária foto da capa, em que o transcendente parece ser objecto de um olhar suspeitoso (por efeito de um chapéu que obriga a contemplá-lo de soslaio), Ornette parece antes distantemente encenar a longa teoria de máscaras do negro americano, desde o Louis Armstrong de rasgado sorriso alvo e lenço na mão ao interminável processo de recodificação de Jackson e, por fim, à «normalidade» de Obama, a mais difícil das recodificações. Ornette repropõe uma figura clownesca, alguém que joga com um chapéu de cabedal amolgado o difícil jogo céptico de quem não esquece a máscara que a ideologia sempre colou ao «preto americano»: o da sua irrelevância, apenas redimível por um efeito de simpatia, qual o que se sente por um velhote frágil posando com (ou por meio de) um chapéu. Um discreto, mas poderoso, efeito Tati, digamos. Quando irrompeu na cena jazz, sobretudo após Free Jazz, Ornette foi convidado para tocar em pelo menos um congresso como representante do «feio» (o saxofone de plástico ajudava…). Ornete não fazia grandes proclamações: tocava, sim, a sua música «feia», rodeado dos grandes músicos que o acompanhavam. Muitas décadas depois, e após ter operado o seu peculiar revisionismo sobre o «jazz», e mesmo sobre o «free», com o seu sistema «harmolódico», este Ornette parece desconfiar: do progresso, da redenção, da recodificação ou reciclagem do passado. A forma como opera é, algo paradoxalmente, por reciclagem: de uma iconografia do passado, de uma alma que perdura (a do preto americano) para lá de todas as recodificações. Mostrando – com uma muito especial autoridade, é caso para dizer – que as revoluções demoram muito tempo a chegar – e mais ainda a ter efeitos.

 

Osvaldo Silvestre em Os Livros Ardem Mal

18.08.2010 | por martalanca | jazz, Ornette Coleman