A Casa e o Mundo -PRÉ-PUBLICAÇÃO
Uma conversa realizada entre o arquitecto Manuel Mateus, o psicanalista Vasco Santos e o projecto artístico Musa paradisíaca.
Seguido do texto “O Mundo e a Casa” de Homi K. Bhabha
Em The World and the Home1, Homi Bhabha recorre ao conceito freudiano do Uncanny para descrever a desarreigação moderna e pós-moderna do ponto de vista da fronteira. Neste texto, traduzido na íntegra para português nesta edição, Bhabha associa a dissolução do limite entre o espaço Casa e o espaço Mundo à sensação de se estar num lugar, iminentemente, perecível de invasões por realidades alheias, transformando o que é, supostamente, familiar em dúbio.
A mobilidade conquistada durante todo o século XX - pelo desenvolvimento dos transportes, pela evolução das telecomunicações, pela expansão do comércio além-fronteiras, pela democratização da viagem e da deslocação do indivíduo, pelo eclodir da globalização, pelo fim do apartheid, pela diluição de algumas fronteiras políticas e pelas dinâmicas pós-coloniais - levou a uma reconfiguração e a uma nova leitura do mundo e do espaço doméstico. O mundo diminui, as distâncias encurtam e a posição do indivíduo e da sua casa é flutuante/deslocada.
A efectivação do mundo-na-casa confirma a inquietante estranheza do estar-entre, fomentando a recolocação da Casa e do Mundo face à condição do indivíduo extra-territorial e transcultural. O estado de Unhomely não corresponde a uma ausência de lar, não consiste no antónimo de “ter uma casa”, nem significa, sequer, ser-se desalojado – “Ser Unhomely não é ser sem-abrigo”2. Para Bhabha, Unhomely é a desoladora constatação de que a linha entre a Casa e o Mundo se diluiu, com todas possibilidades e consequências que daí advêm:
“The borders between home and world become confused; and, uncannily, the private and the public become part of each other, forcing upon us a vision that is as divided as it is disorienting”.3
É nesta complexa dialética que reside a inquietante incerteza entre o público e o privado. Ambos se expandiram e diminuíram, simultaneamente. Os seus limites ténues, dúbios e voláteis misturaram-se e fundiram-se, re-configurando o espaço doméstico e des-posicionando o indivíduo:
“A casa não permanece o domínio da vida doméstica, nem o mundo se torna o seu equivalente social ou histórico. O Unhomely é o confronto da aceitação do mundo-na-casa, da casa-no-mundo..”
Para Bhabha, face à incerteza do posicionamento de fronteiras – que são maleáveis e flutuantes – do período pós-colonial, emancipa-se o lugar que está para lá, permanecendo-se, porém, num perpétuo entre.
Esta des-referenciação, baseada na transformação cultural movida pela dinâmica de êxodos migratórios, pela deslocação de grupos étnicos, religiosos e ideológicos, pela itinerância de refugiados e de exilados políticos e pela re-definição de estatutos e fronteiras políticas, está assente na noção exploratória e expeculativa do beyond – para lá/paraalém de: “The ‘beyond’ is neither a new horizon, nor leaving behind of the past (…) we find ourselves in the moment of transit where space and time cross to produce complex figures of difference and identity, past and present, inside and outside, inclusion and exclusion. For there is a sense of disorientation, a disturbance of direction, in the ‘beyond’: (…) here and there, on all sides, ’fort/da’, hither and thither, back and forth.”
Bhabha refere, ainda, que este estar-em-trânsito, se repercute numa descontinuidade histórica proveniente de interrupções na memória, na fluidez e na coerência de um quotidiano que só a estabilidade do lugar Casa proporciona. O Aqui transforma-se numa plataforma móvel que flutua entre todas as ambivalências e ambiguidades de interstícios com limites difusos e indefinidos:
“O presente (…) não é uma passagem transcendental, mas um momento de “trânsito”, uma forma de temporalidade que se abre à disjunção e à descontinuidade e vê o processo da história empenhado (…) numa negociação do enquadramento e nomeação da realidade social – não o que está dentro ou fora da realidade, mas onde desenhar (ou inscrever) a linha “significativa” entre eles.”
O mover-se para além – to move beyond -, é o impulso e a resignação a uma aflitiva estagnação no entre. O Unhomely é esta permanência a-meio-de-alguma-coisa onde todos os movimentos para lá-e-para-cá, para dentro-e-fora, para aqui-e-acolá, para trás-e-para-a-frente são tentativas (ainda que incertas) de transpor a ambígua fronteira do-que-vem-a-seguir:
“Our existence today is marked by a tenebrous sense of survival, living on the borderlines of the ‘present’, for which there seems to be no proper name other than the (…) ‘post’: ‘postmodernism’, ‘postcolonialism’, ‘postfeminism’,…”
Ampliando a transitoriedade e desarreigação do Mundo assim como a itinerância e des-familiarização do lugar Casa, a fusão do Mundo com a Casa re-posiciona e re-significa o lugar de e para ambos.
Foi sobre esta permeabilidade que se propôs uma conversa entre o entre o Arquitecto Manuel Aires Mateus, o projecto artístico Musa paradisíaca e o Psicanalista Vasco Santos.
Nesta edição estão compiladas as perspectivas indiciadas por todos os intervenientes, sobre as questões levantadas, entre outras possibilidades, pelas turvas relações de proximidade/distância, dentro/fora, doméstico/estrangeiro, Casa e Mundo.
(extraído do texto introdutório de Luísa Sol)
LANÇAMENTO do livro A CASA e o MUNDO - a partir de uma conversa entre o arquitecto Manuel Aires Mateus, o psicanalista Vasco Santos e o projecto artístico Musa paradisíaca* seguido do texto O Mundo e a Casa de Homi K. Bhabha. Edição de Luísa Sol e Ana Teresa Ascensão. Apresentação do livro por António Caeiro.
26 de Março, às 19h no atelier do Arquitecto Manuel Aires Mateus.
Rua Cecílio de Sousa, nº 52, 2º , 1200-102 Lisboa
Com o apoio da DG Artes, Trienal de Arquitectura de Lisboa e Thyro Wines.
*Musa paradisiaca é um projecto artístico de Eduardo Guerra (Lisboa, 1986) e Miguel Ferrão (Lisboa, 1986), centrado no diálogo. Assente em parcerias temporárias com entidades de variada competência, Musa paradisiaca assume diferentes formas, mantendo um caráter discursivo e participativo. Daí deriva a proposta para a criação de uma família pensante que, a várias vozes, se afirma.
Musa paradisiaca tem realizado diversas exposições, sessões e apresentações, nacionais e internacionais, entre as quais as exposições individuais “Casa-animal” (BoCA – Bienal das Artes Contemporâneas, Lisboa, 2017), “Man with really soft hands” (Galeria Múrias-Centeno, Lisboa, 2017), “Masters of Velocity” (Dan Gunn Gallery, Berlim, 2017) e “Alma-Bluco” (CRAC Alsace, Altkirch, 2015); as exposições colectivas “Conversas: Arte Portuguesa Recente na Colecção de Serralves” (Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Porto, 2016), “Objectos Estranhos: Ensaio de Proto-escultura” (Centro Internacional das Artes José de Guimarães, Guimarães, 2016) e “Le lynx ne connaît pas de frontières” (Fondation d’Entreprise Ricard, Paris, 2015) e as sessões “Cantina—Máquina” (Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Porto, 2015), “Como se apanha um fugitivo? — Mostra de objectos conversáveis” (CAM - Fundação Calouste Gulbenkian, 2013) e “Impossible tasks (The Servant of the Cenacle)” (Palais de Tokyo, Paris, 2013).
- 1. Homi K. BHABHA, The World and the Home, in, Dangerous Liaisons: Gender, Nation, and Postcolonial Perspectives, ed. McCLINTOCK, Anne, MUFTI, Aamir, SHOHAT Ella, Minneapolis, University of Minesota Press, 1997.
- 2. Homi K. Bhabha, O Mundo e a Casa, in A Casa e Mundo, ed. ASCENSÃO Ana Teresa, SOL, Luísa, Lisboa, Lata Edições, 2018, p.65
- 3. Homi K. BHABHA, The Location of Culture, Londres e Nova Iorque, Routlege, 1994, p.09