Lembranças, souvenirs, recuerdos
fragmentos de um diário de pesquisa de fotografias de emigrantes portugueses no Brasil
Entre Janeiro de 2014 e Dezembro de 2016 encontrei-me com pessoas que migraram de Portugal para o Brasil e seus familiares em cafés, bares, restaurantes, padarias convertidas em lojas de souvenirs, em mercearias, debaixo de alpendres de paragens de autocarro, na praia, noutra praia, em lojas de ração para animais e drogarias, em ateliers de gravura, em carros, na rua, em casas, nas suas casas, seus apartamentos, salas de jantar, salas de costura, quintais, cozinhas e arrecadações.
Nessa altura mais ou menos exacta, ouvi histórias em várias mãos sobre vontades de fuga, decisões de partir e preparativos de viagem, exílio, estratégias de resistência, ânsias de trabalho e dinheiro, aquisições de casas, anéis e carros, perdas materiais e amorosas, despedimentos, cartas trocadas, memórias esquecidas repensadas e por isso lembradas, a ausência da lembrança, casamentos, primeiras-comunhões e baptizados, mudanças de cidade, mudanças de estado, nascimentos, passeios pela cidade e pelo campo, visitas da família, férias em Portugal, considerações sobre a pátria nem sempre amada, sobre música, desbunda, mandioca e carnaval. Os relatos eram acompanhados, entrecortados, muitas das vezes ditados por fotografias, revolvidas em álbuns, caixas de sapatos, molduras, envelopes; fotografias que me mostraram, nas quais peguei, e que quase sempre digitalizei e voltei a arrumar nos álbuns, caixas de sapatos, molduras, envelopes…
Aqui ficam fragmentos de impressões dos diários de “campo”, que relatam episódios da pesquisa dessas imagens fotográficas.
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Filha de Joaquim Matta, mãe de Joaquim Matta, ambos nascidos no Porto, Maria nasceu no Alto Amazonas, tem oitenta e seis anos e vive hoje no Rio de Janeiro. Recebeu-me no seu pequeno apartamento no bairro da Glória e dispôs várias recordações a partir de três álbuns fotográficos e dezenas de cartas e postais. No final da nossa conversa, deu-me a escolher um dos seus quadros – Maria tinha começado a frequentar aulas de pintura há cerca de sete anos. Um deles retratava a aldeia no Alto Amazonas onde a sua mãe indígena a deu à luz e subsequentemente morreu. Também me mostrou um outro quadro com uma flor, talvez uma orquídea ou uma papoila. Acabei por não escolher nenhum desses mas sim o primeiro que Maria terá pintado: um gato meio pardo. Durante a nossa conversa, Maria referiu algumas vezes ao apontar para os seus retratos: aqui sou eu. Uma outra vez, ao ver a última imagem de um álbum disse: aqui já está sumindo eu. Semanas depois, ao deambular pela Lapa, fui por acaso parar ao apartamento de C. que conheci nessa mesma noite. Passados uns instantes, apercebi-me que o apartamento de C. era contíguo ao de Maria. Ou seja, Maria era a vizinha geograficamente mais próxima de C. e vice-versa, embora mal se conhecessem. Lembro-me de tentar descrever minuciosamente a C. as mãos de Maria a apontar e o gato da pintura enquanto lá fora chovia.
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Conheci Joaquim num atelier de gravura em Santa Teresa, Rio de Janeiro. Ao saber que pesquisava fotografias (d)e histórias de portugueses que tinham migrado para o Brasil, Joaquim contou-me que o avô, também chamado Joaquim, terá ido ainda em criança da cidade do Porto para a Amazónia durante o próspero ciclo da borracha seringueira, no início do século XX. Para poder migrar, Joaquim infiltrou-se num navio que fazia uma ligação entre Manaus e a cidade do Porto, no qual trabalhava um parente português. Este foi dar com o menino em alto mar não tendo outro remédio senão deixá-lo seguir viagem. Joaquim tornou-se capitão da marinha mercante, só voltou a Portugal em 1954, décadas depois de ter fugido para o Brasil e já após a morte da sua mulher, Raulina, a qual era caboucla, meio branca, meio índia. Segundo o outro Joaquim, neto deste, Raulina só se sentia bem no meio do mato e não suportava a ideia de viajar. Em 1954, durante a estadia em casa das tias no Porto, Maria, filha deste Joaquim, descobriu que estava grávida dooutro Joaquim, fruto de um encontro com um português que também tinha transitado pela Amazónia, num navio mercante. Maria deu à luz no Porto um menino a quem também chamou Joaquim e só volta ao Brasil dois anos após o seu nascimento. Joaquim, seu pai, pai de Maria, tinha entretanto voltado para a Manaus e posteriormente ido para o Rio de Janeiro onde se reúnem os três (dois Joaquins, uma Maria) em 1957.
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Joaquim pediu-me que quando voltasse a Portugal lhe levasse uma encomenda - um envelope para o pai que vivia na zona de Sintra e que o próprio Joaquim apenas tinha conhecido há poucos anos atrás, já após os seus cinquenta anos. Na ocasião disse-me a título de curiosidade que a primeira vez que estabeleceu contacto com o pai foi por carta e só depois pelo telefone.
Nas vésperas da minha partida, encontrámo-nos em Santa Teresa, no Rio de Janeiro. A dado momento e não sei bem porquê disse-lhe que estava prestes a ir para ‘a sua terra’ (Portugal). Joaquim respondeu-me prontamente mas em tom ligeiro que eu estava sim a ir para a minha terra e para a terra do seu pai, e que a sua terra era ali mesmo, em Santa Teresa. Ao dizê-lo terá apontado para uma das ruas ou mesmo um dos casarões do bairro carioca, por onde passávamos no seu carro, ao abrigo pela frescura do ar condicionado do escaldante sol do mês de Janeiro.
Em Maio de 2018 morreu repentinamente de um ataque cardíaco fulminante enquanto andava de bicicleta junto à baía de Guanabara.
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No final do nosso primeiro e único encontro no seu apartamento no bairro da Glória, Maria quis repentinamente dizer-me o nome do barco no qual tinha viajado pela primeira e única vez para Portugal do Alto Amazonas para o Porto em 1954. Eu não lhe tinha colocado uma única pergunta acerca da viagem e muito menos insistido na memória do nome da embarcação. Não conseguindo recordar-se, Maria perguntou a Joaquim, seu filho, se ele não se lembraria disso mesmo, do nome do navio onde ela e o avô dele tinham viajado. Joaquim disse não poder lembrar-se visto nem sequer ser nascido na época da viagem, mas passado breves instantes foi de facto ele a lembrar-se do nome do colosso: Hilary.
Numa breve pesquisa na Internet lê-se que Hilary era um «navio de bandeira britânica construído em 1931» fazendo uma linha que partia de Liverpool e terminava em Manaus, passando por Lisboa, Funchal e Belém do Pará. E também que após ter sido fretado a uma firma que o colocou na linha de África oriental, «ainda voltou à América do Sul depois do soçobro, perto de Cascais, do navio que o havia substituído nessa rota.» E parece que «em 1959, atingido pelo limite de idade, o “Hilary” foi vendido a um sucateiro escocês e demolido.
O Hilary fora um dos três navios da frota da Boot Line (que, então, compreendia uma dezena de unidades), a sobreviver à 2a Guerra Mundial.»
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Após um primeiro encontro em que me falou do seu percurso de Portugal para o Brasil, Maria do Céu, residente no bairro de Santa Teresa no Rio de Janeiro, deu-me um íman do seu estabelecimento: a Mercearia Esteves. Além do nome da venda, de uma bandeira do Brasil e outra de Portugal, o íman tinha um número de telefone para onde podia contactar Maria do Céu para acertarmos um novo encontro para o qual traria fotografias da família e de Portugal. Apesar de ter ligado quatro vezes sem sucesso e voltado três vezes à venda, nunca consegui ver as fotografias.
Num primeiro momento, Maria do Céu disse-me que as imagens se encontravam num armário debaixo da cama a que na altura não conseguia chegar a elas por lhe doer a anca. Num segundo momento, Maria do Céu disse-me apenas que ainda não tinha levado as imagens para a mercearia. Finalmente, disse-me que as imagens já estavam na mercearia mas que se encontravam numa estante muito alta à qual não conseguia desta vez aceder por ter uma lesão no braço esquerdo. Maria do Céu também não se mostrou receptiva à minha proposta de ir pessoalmente buscar as imagens à estante. Disse que «de qualquer das formas» eu já «sabia bastantes coisas» sobre a sua vida e trânsitos entre Portugal e o Brasil e despediu-se de pronto.
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Após ter almoçado no dia 26 de Dezembro com Eugénia, portuguesa madeirense, e sua filha Márcia, já nascida no Rio de Janeiro, Eugénia ofereceu-me o resto de um bolo de mel. O bolo de mel é típico da ilha da Madeira, de onde Eugénia veio para o Brasil em 1960, juntar-se ao marido com o filho de três anos que nunca tinha conhecido o pai. Porém, a receita do bolo de mel de Eugénia é especial e secreta. O bolo fica mais alto, fofo e apimentado do que o habitual.
Em uma das imagens que enviou ao marido da ilha da Madeira para o Rio de Janeiro, antes de ter por sua vez migrado para o Brasil, Eugénia escreveu no verso: «olha marcelo repara na mãozinha que ele tem dentro das perninhas que tem a tua pulseira ele está lindinho meu amor ele esta lindo deus lhe dê as melhoras pelo o amor de deus mas ele não morre se deus quiser. A deus recebe beijinhos». Na frente da fotografia Eugénia surge com o filho Manuel num estúdio que tenta simular um salão burguês.
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Encontrei-me com Monique, sua mãe Evely e irmã Mirelle, em Belo Horizonte. Após o nosso encontro, Monique deixou-me para digitalizar a quase totalidade de fotografias e velhos documentos de família. Sob minha responsabilidade e ao meu dispor durante dias que se tornaram meses, todo um arquivo de família.
Orlando era pai de Monique, morreu novo, com cerca de cinquenta e dois anos. Alguns anos antes de Orlando morrer, Dona Ricardina, sua mãe, tinha trocado a localidade de Ermezinde, em Portugal, por Sete Lagoas, em Minas Gerais. Dona Dina chegou ao Brasil toda vestida de preto, de luto pelo seu falecido amado, pai de Orlando, que era filho ilegítimo. Terá depois aligeirado o luto durante uns anos e de novo o acentuado após a morte de Orlando. Segundo Evely e Monique, as expressões que Dona Ricardina mais utilizava eram ‘ai meu rico filho’ referindo-se a Orlando, ‘ai minha rica terra’ referindo-se a Ermezinde ou Portugal, e ‘esta porra desta terra’ referindo-se a Sete Lagoas ou ao Brasil. Odiava o Brasil e terá voltado a Portugal para morrer. Quando em Sete Lagoas, por vezes fugia de casa e ia até um descampado onde corria um esgoto a céu aberto para ver a água correr. Ficava muito tempo a contemplar a água do esgoto. Monique pensa que a avó o fazia por ter saudades do rio Douro.
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Fernando disse-me que a minha demanda era um bom pretexto para pensar em trocas e coisas trocadas, para cobrar trabalhos a amigos artistas e lhes oferecer trabalhos seus. Ofereceu-me o livro da sua última exposição e disse-me que começou a pensar mudar-se de Lisboa para São Paulo por ter visto um anúncio do IV centenário da cidade. Na época, em 1954, avistava todos os dias o navio Vera Cruz atracado no rio Tejo da janela do seu estúdio no Bairro Alto. Meses mais tarde, o navio levá-lo-ia até ao Rio de Janeiro de onde prosseguiu para São Paulo onde ainda hoje vive, trabalha e expõe. Numa inauguração no Consulado Português dizia-me que «até nem odeia portugueses» mas que detestou ter nascido numa época «bafienta de sacristia» [durante o Estado Novo de Salazar] e que «se calhar deveria ter nascido sim na Idade Média.»
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Henriqueta Henriques foi a primeira portuguesa migrada em Niterói com quem conversei quando vim para o Rio de Janeiro em Setembro de 2015. Ao referir-me a ela nunca consigo dizer apenas o seu nome próprio, Henriqueta, digo (ou penso) sempre Henriqueta Henriques. A partir de uma indicação de um morador descendente de portugueses na Ponta da Areia, também chamada Portugal Pequeno, cheguei ao seu restaurante sem contacto prévio ou hora marcada, mesmo antes da hora de almoço. Conversámos apenas durante cinco minutos visto Henriqueta estar então muito ocupada na cozinha. Combinámos conversar com calma numa outra ocasião em que Henriqueta traria igualmente fotografias que ilustrassem o seu percurso de migração de Alcobaça, Portugal, para Niterói, Brasil.
No final dessa curta conversa, Henriqueta Henriques disse-me que iria mandar fritar um pastel de bacalhau para mim e indicou-me que me sentasse na espaçosa e elegante sala de refeições, ainda vazia àquela hora. Obedeci prontamente e aí esperei como uma criança desajeitada. Passados uns cinco minutos, Henriqueta trouxe três enormes pastéis de bacalhau e, delicada mas eficazmente, despediu-se de mim. Apesar de deliciosos, comi os três por cortesia visto ainda não ter fome àquela hora, antes do almoço. Ao comer lentamente os pastéis de bacalhau, cultivando o apetite e a dolência dos gestos, ia assistindo a uma emissão da TV Globo sem som - o “Mais Você” de Ana Maria Braga - tendo por ocasional companhia um rapaz que descarregava encomendas na cozinha e me olhava de soslaio.
No encontro seguinte, Henriqueta mostrou-me algumas fotografias. Antes de nos despedirmos ofereceu-me um livro com receitas portuguesas e a sua biografia. No caminho para a estação de barcas de Niterói o seu nome ressoava. Henriqueta Henriques, nome aliterado.
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Após fazer uma pesquisa de fotos de migrantes portugueses em São Paulo no site do Museu da Emigração, cheguei a uma fotografia de um grupo que pousava em frente à Hospedaria de São Brás onde se situa o museu. Segundo o site do Museu da Imigração: «inaugurada em 1887, a Hospedaria de Imigrantes se tornou o principal local de abrigo dos estrangeiros recém-chegados. Nesse sentido, o antigo prédio da Hospedaria – hoje sede do Museu da Imigração – foi cenário de expectativas, conquistas e angústias de mais de 2,5 milhões de pessoas que formaram um intenso entrelaçamento étnico entre 1887 e 1978.» O museu tem muitos ecrãs e alguns objectos e réplicas de objectos (também eles objectos…) associados a esses amplos fenómenos migratórios.
No museu informaram-me que o original da fotografia do grupo - cuja legenda informava ser de portugueses - se encontrava no Arquivo de São Paulo. Ao dirigir-me à secção de fotografia do Arquivo, após passar por inúmeros torniquetes (catracas), mostrar por três vezes a duas pessoas distintas o bilhete de identidade, subir e descer cinco vezes em dois elevadores diferentes, cheguei finalmente à secção de fotografia. Uma vez aí, disseram-me que não recebiam pessoas sem marcação prévia. Após a minha insistência (e socorrendo- me do facto de ter enviado anteriormente um email que não obteve resposta), um dos arquivistas, Wellington, deu-me o seu contacto pessoal e enviou-me dias mais tarde uma digitalização de todas as fotografias em alta resolução. Frente e verso.
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Não procurei Mariano, foi ele que me encontrou.
Mariano ouviu-me falar português num boteco em São Paulo e disse-me inesperadamente que o seu pai migrou dos Açores para São Paulo fascinado pela fotografia de dois irmãos de terno (fato) que tinham vindo para o Brasil dois anos antes. O seu pai acabou por morrer muitos anos mais tarde em São Miguel. Mariano acha-se mais baiano do que açoriano, embora na verdade seja paulistano de nascimento e vivência.
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E há um retrato de António José Bernardo, em Moçambique, com os filhos moçambicanos. Este foi enviado para a sua esposa, Ilda da Conceição Pinheiro, para Trás-os-Montes, Portugal, em finais da década de 1960 ou em inícios da década de 1970. Apesar de António viver em Moçambique, para onde foi quando enlistado na Guerra Colonial, irá manter até ao final da sua vida uma relação por carta e fotografia com a sua esposa Ilda. Ilda estará num primeiro momento em Portugal, migrando então para o Rio de Janeiro em 1972.
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No postal fotográfico de Portugal dos Pequeninos, Coimbra, enviado de Coimbra por Orlando Marques para Evely Sanches, para o Rio de Janeiro em 21-12-1962, vem escrito parcialmente no verso: “Evely Beijos. Cá estou junto dos velhos. Todos bem e fortes. Cheguei de surpresa. Imagina só a confusão… Falei-lhes em você, fiz o teu cartaz – querem te conhecer de qualquer jeito. Nos esperam no verão. Quando eu fôr teremos de pensar direito nessa viagem”.