O álbum fotográfico de Albano Costa Pereira, Angola (1972 – 1974)

À partida do aeroporto, a caminho de Luanda, Lisboa - Luanda, setembro 1972.À partida do aeroporto, a caminho de Luanda, Lisboa - Luanda, setembro 1972.Musseques de LuandaMusseques de Luanda

 

Albano Costa Pereira, engenheiro civil e fotógrafo amador nascido em 1942, é o autor de um álbum que integra um conjunto de fotografias produzidas aquando da sua permanência em Angola, de 1972 a 1974, no exército português, logo, no contexto da Guerra Colonial / Guerra de Libertação  (1961 – 1974). O álbum saiu do foro privado quando, em 2013, Albano o partilhou comigo, Inês Abreu e Silva, Marta Lança e Nuno Lisboa, e sobretudo quando, em 2019, foi publicado online nas plataformas Foto-Síntese e Buala, e acompanhado do testemunho escrito de Albano Costa Pereiro, que passo a reproduzir.

Ver GALERIAs de fotos completas no BUALA e no Fotossíntese. 

“O álbum de fotografias tiradas no decorrer da minha comissão em Angola (1972- 1974), objeto deste meu depoimento, foi “construído” quase uma década depois do meu regresso a Portugal. Durante esses anos, as minhas fotos (cerca de 600), amontoavam-se em envelopes, de forma desorganizada. No período que se seguia ao 25 de Abril, estava muito empenhado no Processo SAAL. O tempo da minha comissão em Angola era algo que queria esquecer. Foi só no início dos anos 80, já na ressaca dos “sonhos de abril”, que senti necessidade de rever esses materiais e de reconstruir a memória desses tempos vividos numa guerra injusta, num território que infelizmente se confrontava nessa altura com outra guerra. Ao fim de uma demorada seleção, organizei, com uma metodologia que se pretendia cronológica e temática, um álbum com cerca de 300 fotos que registavam diversas situações vividas no decorrer desses dois anos no Leste de Angola nas chamadas “terras do fim do mundo”. Este conjunto de fotografias são o testemunho de alguém que, como muitos milhares de jovens, viveu uma guerra colonial apesar de ter estado sempre contra a guerra. Como escreveu Charles Baudelaire: os álbuns fotográficos constituem “arquivos da nossa memória”.

Natal 72Natal 72

O meu primeiro contacto com a fotografia aconteceu aos 16 anos quando fiz as primeiras fotos tiradas com uma velha máquina alemã do meu pai (Voigtlander). Em 1969 comprei a primeira máquina (Canon QL). Para além de fotografias de família e de viagens, sempre me interessou a realidade à minha volta em tempos de ditadura. Fotografias que não tinham qualquer objetivo de publicação ou exposição, somente testemunhos pessoais. Considere-se que, a partir desse tempo, a minha relação com a fotografia, embora de um modo amador, tornou-se permanente. A velha Canon passou a acompanhar-me sempre.

Terminado o meu curso de engenharia civil (1970) aconteceu-me o que já esperava: incorporação no serviço militar – Mafra, Tancos, Pontinha, Santa Margarida – e partida para Angola (em setembro de 1972), numa companhia de construções na arma de engenharia (arma dita “não combatente”…), colocada no leste de Angola. E lá vou eu, junto com mais 120 rapazes, num avião da FAP. A minha Canon fez logo os primeiros registos ainda no aeroporto de Figo Maduro. Começava aí uma nova etapa na minha vida…. Ao sobrevoarmos Luanda, impressionaram-me as enormes áreas de barracas dos musseques (que fotografei). Após aterrarmos, e já a caminho do quartel, atravessámos largas ruas numa cidade com enormes e modernos prédios e trânsito intenso. Apercebi-me logo que estava numa terra com enormes contrastes. Foi também estranho não serem visíveis na cidade sinais de guerra, a não ser as viaturas militares que passavam e grupos de soldados nas cervejarias. A nossa companhia foi colocada no Luso (hoje Luena) a 1.300 Km de Luanda, leste de Angola numa área designada por “terras do fim do mundo”. Era uma zona mais ou menos plana com baixa densidade populacional. Nesses lugares já eram patentes sinais da guerra. Com as minhas funções de engenheiro civil, numa companhia de construções, acompanhei obras em diversos lugares, o que me permitiu conhecer um pouco do Leste de Angola, fazendo muitas fotos nos lugares por onde passei: Cazombo, Ninda, Gago Coutinho, Mavinga, Luso e outros. Fotos das terras, das gentes (especialmente crianças que corriam atrás de nós pedindo “foto”…), dos sinais da guerra. Marcou-me, apesar da pobreza que muitos negros e negras demonstravam, a sua enorme dignidade na postura, especialmente nos velhos. As fotos que fiz eram sempre com o seu consentimento. Entristecia-me que raramente pudesse satisfazer os seus pedidos para obtenção dessas fotografias. Numa zona em guerra causou-me estranheza não ter tido qualquer limitação militar ou policial à realização de fotografias. 

No dia 25 de abril encontrava-me em Ninda fazendo uma obra. A guerra, especialmente com o MPLA, terminou de imediato. No dia 1 de maio regressei à sede da companhia no Luso e aí integrei a comissão do MFA para a Zona Militar Leste. Na minha companhia, coordenei uma campanha de “consciencialização e politização” dirigida aos militares: jornais, cartazes, sessões de esclarecimento, ocupação do Rádio do Moxico. Duas das últimas fotos do álbum, feitas em Nova Lisboa (agora Huambo), com alguns furriéis, já a caminho da “Metrópole”, ilustram bem o nosso estado de espírito.

Auto-retratoAuto-retratoPoema de António Cardoso*

Quando será que este cacimbo nos abandona
E o Sol virá sorrir por cima do meu telhado?
… antigamente, nos meus tempos de menino,
o meu telhado de zinco
tinha furos pequenos
por onde espreitava o Sol…
Antigamente…
Quando será que este céu pesado de chumbo nos abandona
E aquele azul antigo
Virá sorrir por cima do meu telhado

Luanda 1963 

*Natural de Luanda, publicado no jornal da companhia de julho de 1974.”

Lendo correspondênciaLendo correspondênciaOs principais tópicos fotográficos do álbum

Feito vários anos após o término da guerra, o álbum de Albano segue uma ordem cronológica de recapitulação dessa jornada. Albano fotografa desde logo a sua partida de Lisboa para Angola, descrevendo o impacto que a cidade de Luanda tem sobre si à chegada, aspecto que merece uma representação fotográfica no álbum através de uma série de vistas aéreas e de cenas de rua. Na sua estadia de dois anos na companhia de construções na arma de engenharia, com a qual circulou por diferentes locais no leste de Angola, Albano retrata-se frequentemente em diferentes etapas da comissão que termina depois do 25 de Abril de 1974 – um natural marco no contexto do seu envolvimento político, ele que era já anteriormente manifestamente contra a guerra e o regime. 

À semelhança de outros álbuns provenientes de um contexto de guerra, no álbum de Albano encontramos várias fotos do grupo de soldados e militares da companhia. Em algumas imagens, a fotografia revela-se quer como meio mecânico quer como técnica artesanal de enquadramento e de sobreposição. A fotografia era manifestamente uma prática importante para Albano, que afirmou quando o entrevistámos que a sua Canon o seguia para todo o lado. Aspecto que explica o facto de o álbum ter centenas de fotografias escolhidas a partir de um total de seiscentas imagens produzidas, número contrastante com as dúzias de fotografias que normalmente compõem os álbuns fotográficos de soldados da Guerra Colonial. Ou seja, de pessoas que habitualmente não levavam a prática da fotografia tão a sério como Albano, que assume uma abordagem particularmente diarística, observadora, e etnográfica a partir da sua experiência pessoal da guerra.

As imagens de Albano retratam os diferentes locais pelos quais passa na sua estadia em Angola; especialmente presentes no início do álbum encontramos elementos como: a arquitectura de Luanda que reflecte os contrastes sociais da cidade, construções coloniais e espaços de turismo e lazer, actividades económicas das populações locais. Albano fotografa kimbos, pequenas aldeias com comunidades rurais por onde passa ao longo das suas múltiplas deslocações pelo leste de Angola, ele e a sua companhia, viajando habitualmente de combóio.

retratoretratoponte destruídaponte destruída

 

Para Albano, as fotos que fez durante essas viagens de combóio, retratam a vida e pobreza das populações rurais do interior, e as suas fotografias de crianças e pessoas de comunidades rurais remetem-nos para a fotografia humanista francesa das décadas de 1960 e 1970.  Fotografa pois crianças, muitas crianças (quer nessas aldeias rurais quer na cidade do Luso), cujo olhar o fazia particularmente pensar “sobre o futuro incerto daquela terra”.

Albano fotografa-se a si mesmo em diferentes momentos da sua passagem por Angola, sendo a auto-representação e a introspecção elementos importantes do seu álbum. A ligação entre auto-representação e introspecção, entre a representação fotográfica e considerações sobre o facto de se sentir preso numa guerra a que se opunha, destaca-se nas legendas de algumas das suas imagens. Estas retratam actividades do quotidiano e eventos mais invulgares na rotina do dia-a-dia militar, (como por exemplo o Natal). O seu olhar é sensível às estruturas militares e na condição de engenheiro civil foca com precisão os esforços de construção dos homens da companhia, como por exemplo aquele de edificação de uma igreja, cuja representatividade parece sugerir que ainda na década de 1970 o esforço da guerra era inseparável do empreendimento colonial e evangelizador do estado português. De acordo com o próprio, várias das suas imagens revelam o impacto que a guerra ia assumindo no território e nos locais por onde passava. 

Já a presença de correspondência com entes queridos e o local de origem, sendo um elemento fundamental para a (sobre)vivência dos soldados, é particularmente visível numa das fotografias, e um aspecto mencionado nas legendas de outras imagens da série, como esta: “9 de Junho de 73, chega finalmente o pessoal e o material. O tempo passa com demasiada lentidão. Os dias são iguais, fazemos sempre as mesmas coisas mecanicamente. Uma boa notícia - o avião vem na 2ª feira e com ele o correio, a ligação ao mundo. Para cúmulo, faltou a luz à noite…”.

menina do Cazombomenina do CazomboLuso 8/3/73Luso 8/3/73Do meio do café vejo um povo. ‘Cafecos’ que passam para a praça, miúdos que gastam os dias roçando-se pelas árvores e paredes, Velhos pedintes agarrados a toscos paus… Um povo de rastos… Hoje é só Abraço Albano nota Quando os vejo lembro-me de Soeiro Pereira Gomes 

*

Existe ainda um conjunto de imagens que integra o álbum que aponta para fenómenos sócio-políticos mais amplos da guerra, tais como a participação sul-africana nesta, ou o envolvimento cantaguês. Albano refere-se na legenda de uma imagem com um helicóptero (que através desta sabemos ser sul-africano):  

 “Quando estava numa obra no Kazombo observei helis e pilotos sul-africanos participando numa operação. Fardado, e com a minha Canon, fiz algumas fotos dos helis e dos pilotos. Sem qualquer problema… Quando vim de férias a Portugal dei algumas a uma amiga que as levou para Paris destinadas a um publicação anti-colonial. No álbum aparece a de um heli sem identificação.”

Cazombo - Junho 73, Miúdos no CazomboCazombo - Junho 73, Miúdos no Cazombo

Pela relação que estabelece com o texto, a fotografia assume aqui expressivas funções documentais, deícticas, que ultrapassam o referente imediato da imagem. Por exemplo, nas legendas dessas imagens Albano refere-se ao ódio existente entre as facções opostas na guerra e ao facto de se sentir perdido num “buraco no fim do mundo”: “Veio um africano evacuado. Num batuque ontem à noite, um fuzo com o cinto ia-lhe cortando uma orelha. Recebi uma carta da Graça. Não há dúvida que isto é um buraco no fim do mundo. Hoje fiz um desenho.”

Além da fotografia, também o desenho era aparentemente uma actividade importante para Albano lidar com a realidade da Guerra, tendo integrado vários desenhos no álbum. Na legenda de um destes, Albano escreveu: 

No Cazombo
Mais um dia que cabe nesta linha:
Faz 10 meses que comecei a comissão
A obra da sala de operações fica concluída em breve
Hoje teve de funcionar numa situação excepcional
Mina - evacuada - uma dúzia de feridos uma merda
” 

Apesar de não possuirmos um conhecimento detalhado do regime de visualidade produzido pelo Estado Novo português, de propaganda relativamente ao esforço de guerra e com enfoque em localidades específicas por onde esta passou, cremos poder afirmar que ao providenciar contra-imagens ou imagens alternativas, (ou simplesmente imagens), do interior angolano, de zonas remotas do leste de Angola, as fotografias de Albano constituem-se como pistas para uma abordagem histórica mais detalhada inspirada em documentos visuais.

Apesar de Albano não estar propriamente na frente da guerra, ainda assim não se encontrava livre de perigo, uma vez que o território em Angola estava então intensamente minado. Albano refere-se através de uma legenda de uma imagem à morte de um amigo, e ao absurdo da situação da Guerra colonial na qual se encontrava:

10 de Outubro de 73
“morreu o meu amigo Mendes numa mina (era médico no Cazombo).
É uma merda tudo isto!!!
Era um camarada com ideias bastante correctas sobre tudo o que nos envolve / tritura.
Recordo as longas conversas que tivemos…
Na rua as pessoas passam indiferentes…

As legendas de Albano apontam para uma forma de legibilidade do fotográfico que, ultrapassando os meios referenciais da fotografia, apontam para uma montagem de fragmentos visuais e textuais. Essa subtil montagem tem a capacidade de aludir aos eventos em que Albano está envolvido, não impondo nunca uma imagem totalitária, definitive da situação da guerra. Tal complexidade pode apenas ser almejada através do alinhamento e sucessão de imagens e textos que, não sendo mutuamente ilustrativos, conseguem criar perspectivas múltiplas, diferenciais e complementares relativamente à situação, permitindo-nos reflectir e melhor imaginar aquela guerra, sem portanto reificar uma visualidade única (e una) da guerra. 

Este álbum foi feito por uma pessoa no exército que se posicionava contra o conflito e contra o regime colonial português, sugerindo mesmo uma acção política contra o regime ao longo da passagem pela guerra que não deve ter estado isenta de risco. Após a revolução de 25 de Abril de 1974, Albano envolve-se em campanhas de consciencialização política com populações de pequenas localidades, sendo manifestamente pró MPLA.

As camadas mnemónicas e heurísticas do álbum

O processo fotográfico de Albano consistiu em produzir cerca de seiscentas fotografias nos dois anos que passou no palco da guerra no leste de Angola, imagens em relação às quais fez anotações detalhadas no seu diário. Após o regresso a Portugal, Albano quis deliberadamente por essa experiência atrás das costas, guardando as centenas de imagens em envelopes, de forma desorganizada. A organização e selecção de fotografias para a composição do álbum tiveram lugar mais de uma década após o seu regresso a Portugal. 

Existem diferentes potenciais camadas testemunhais e mnemónicas implicadas no álbum passíveis de serem exploradas em futuras pesquisas históricas. Uma primeira camada prende-se com a legibilidade atribuída a cada fotografia isolada; uma segunda prende-se com a relação entre essa legibilidade, as legendas das imagens atribuídas por Albano e o seu testemunho da participação na guerra; uma terceira camada consiste ou consistiria numa análise comparativa dos elementos das outras camadas com outros documentos e fontes da guerra ou, simplesmente, com outros álbuns de fotografia.

O álbum de Albano resulta portanto de uma selecção criteriosa, de um olhar retrospectivo que ocorreu mais de uma década após o seu envolvimento na guerra e regresso a Portugal. Deste modo, a composição do álbum foi simultaneamente um acto de reminiscência – o vasculhar o próprio arquivo pessoal –, e uma elaboração narrativa por si mesma: um gesto similar àquele da criação de um fotolivro. 

A construção deste álbum é assim uma forma de moldar a própria memória visual pessoal através de uma revisitação do passado pessoal através de fotografias. É também um acto testemunhal por si mesmo, apontando para um grande evento histórico através de pequenos fragmentos fotográficos.

Veio um africano evacuado. Num batuque ontem à noite, um fuzo com o cinto ia-lhe cortando uma orelha. Recebi uma carta da Graça. Não há dúvida que isto é um buraco no fim do mundo. Hoje fiz um desenho.

O álbum foi construído de forma a resgatar a trajectória pessoal de Albano na Guerra, como um gesto de posicionamento político contra a guerra, produzindo um relato do conflito para as gerações vindouras ou, simplesmente, para outros. As legendas que Albano escreveu para várias das fotografias do álbum e o seu testemunho mais recente, são ambas estratégias para fornecer às fotografias uma legibilidade, de forma a que estas possam ser reconhecidas como documentos para aqueles que não testemunharam o evento nem viveram as situações representadas.

No seu testemunho escrito, Albano aponta especificamente para fotografias particularmente aptas a constituírem-se como traços de eventos históricos, políticos e sociais mais amplos, destacando a relevância heurística e deíctica destas fotografias. O dever de memória é portanto aqui, tal como a fotografia o pode ser, indicial: na medida em que o álbum pode apontar para a necessidade de produção de uma arqueologia de traços visuais e materiais distintos.

(artigo escrito com sugestões de Inês Abreu e Silva)

Está confirmada a minha partida amanhã às 6.30 para Mavinga (via Cuito Canavale). De certo modo, até é capaz de não ser mau, pois estou brutalmente 'chateado' quer por motivos objectivos, quer por motivos subjectivos. Procuro de qq modo cumprir certos objectivos que impus a mim próprio. Estudo, jogo as minhas partidas de xadrez (agora iniciei o ping-pong) e penso muitas vezes 'nisto tudo'.Está confirmada a minha partida amanhã às 6.30 para Mavinga (via Cuito Canavale). De certo modo, até é capaz de não ser mau, pois estou brutalmente 'chateado' quer por motivos objectivos, quer por motivos subjectivos. Procuro de qq modo cumprir certos objectivos que impus a mim próprio. Estudo, jogo as minhas partidas de xadrez (agora iniciei o ping-pong) e penso muitas vezes 'nisto tudo'.A construção da igreja do Luso.A construção da igreja do Luso.Ninda Fev 74, chegada da coluna com katanguesesNinda Fev 74, chegada da coluna com katanguesesLuso - Junho 74. Obra de captação de água no Rio Luena, perto do Quartel.Luso - Junho 74. Obra de captação de água no Rio Luena, perto do Quartel.Nova Lisboa - Jul 74Nova Lisboa - Jul 74

por Ana Gandum
Afroscreen | 16 Setembro 2020 | Albano Costa Pereira, Fotografia, guerra colonial