Os novos navegadores da memória cultural portuguesa
Há algo atraente nos mapas antigos que traçam as rotas da navegação portuguesa enquanto obras de arte primorosamente desenhadas em pergaminho ou em papel precioso. Como artefactos históricos atravessados por linhas entrecruzadas ligando portos, cabos, e outras extrusões costeiras, traçando rumos com o sistema minucioso da rosa dos ventos que reflete tanto inovação como os limites da compreensão científica. Os mapas são também como artigos marcados pelo tempo, que foram arquivados, recuperados, reenquadrados em contextos culturais continuamente revistos. Do ponto de vista de um artista, estes mapas de navegação são convincentes, na medida em que refletem abertamente o facto de que a obra de arte, mesmo quando terminada e assinada pelo artista, permanece inacabada, o que se evidencia pelas linhas traçam os contornos de continentes ou pelo rumo dos rios que desaparecem e vacilam no limite do conhecimento geográfico.
Estes mapas são documentos de trabalho, retrospetivos e prospetivos. O desenho dos mapas portulanos inclui a rosa dos ventos e o astrolábio e outros instrumentos de navegação, mas integram também os selos de monarcas e da Igreja, mostrando a intenção não só de exploração (no sentido do termo inglês exploration) e de encontro, mas também de conquista e conversão, exploração (exploitation) e expropriação. Estes mapas, designam terras e mares em latim, em português e noutras línguas europeias legíveis pelos navegadores, mas não podem hoje deixar de ser analisados como refletindo o eurocentrismo que não apenas conquistou, mas também encobriu e encobre as culturas que “descobriu” e oculta ainda os vestígios dos custos devastadores da navegação empreendida. No entanto, há muitos outros traços legíveis nestes mapas, principalmente nas lacunas preenchidas com figuras de criaturas “estranhas” e “exóticas” na terra e no mar - mais imaginadas que figuras reais, revelando os medos dos navegadores. Embora estilizadas, estas figuras evidenciam traços de realidades que resistem ao apagamento. Artistas e escritores contemporâneos têm começado a rever criticamente e criativamente tanto estes mapas, como outros instrumentos e traços de navegação, remapeando e reconfigurando a memória cultural e reorientando o discurso cultural.
O navegador continua a ser uma figura omnipresente na memória e nos discursos culturais portugueses. Encontramo-lo tanto em monumentos, como na toponímia quer das cidades principais, quer das vilas, em pontes e em centros comerciais, atestando assim e ainda “grandeza e glória” portuguesa (citando o guia do Padrāo dos Descobrimentos). No entanto, tem havido nas últimas décadas, manifestações, ações e discursos que começam a lidar com o facto de que das navegações portuguesas resultaram não apenas contatos, intercâmbios culturais e enriquecimento dos cofres do estado e de portugueses privilegiados, mas também sinais de uma conquista devastadora e num dos impérios coloniais mais prolongados e problemáticos, ligado a ditaduras repressivas e guerras civis desastrosas. Estas questões foram abordadas por vozes dissidentes de escritores brasileiros como Oswald de Andrade, que descreveu a conquista em termos de canibalismo e Haroldo de Campos de contra-conquista, na esteira da qual a estética se torna inseparável da ética na consciência pós-colonial e pós-moderna dos contextos português e lusófono. Correntes nostálgicas encontram acolhimento em subcorrentes da crítica. Ao contrário do inglês, no qual se diferencia consciousness e conscience, consciência em português conota consciência em termos de conhecimento intelectual ou científico e consciência no sentido moral. Por isto as “descobertas” são em parte denunciadas por um prolongado encobrimento de provas incriminatórias. Ao mesmo tempo que movimentos de fachada continuam a comemorar o poder colonial, as faces literais e literárias em Portugal mudaram marcadamente com ondas de migrações após a Revolução de 1974 e entrada na União Europeia em 1986.
A história portuguesa tem sido reimaginada e reenquadrada por escritores, artistas, críticos, e curadores do final do século XX e XXI que trabalham em contextos lusófonos, desconstruindo discursos recalcitrantes, enfrentando ondas de “nostalgismo”, confrontando tradições e discursos cada vez mais traiçoeiros, ultrapassando os limites de consciência. Eu imagino-os como os “novos navegadores”. Aproprio-me deste termo polémico, para os descrever em parte por causa da sua falta de medo, ou talvez mais precisamente pela sua coragem ao enfrentar o medo, ao recuperar e des-cobrir aspectos monstruosos do passado que simultaneamente revelam aspetos monstruosos do presente. Estes novos navegadores recorrem e revisitam o trabalho dos navegadores culturais que os precederam – cronistas, pintores, arquitectos, escultores, que vão de Camões a Pessoa, de Lopo Homem e Nuno Gonçalves a Leopoldo de Almeida. Entre os escritores contemporâneos portugueses que confrontam diretamente este passado, há os que – começando com António Lobo Antunes e Lídia Jorge e chegando a Dulce Maria Cardoso e Grada Kilomba – deslocam e reformulam a memória cultural através de cruzamentos trans-históricos e transculturais, da exploração de contextos marginais e de consciências marginalizadas, construindo uma multiplicação de perspetivas e provocações de consciência murmurante. Antunes, como a artista plástica luso-brasileira Adriana Varejão, recoloca literalmente e realoca os navegadores históricos portugueses, ao mesmo tempo que os humaniza, destacando o impacto desumanizador do colonialismo, tornando o passado presente. Em As Naus de Antunes, Cabral e Camões recordam simultaneamente uma partida heróica do século XVI e vivem o recente colapso colonial e o regresso nos navios superlotados, a espera nas filas de retornados, com Camões sentado entre os caixotes amontados nas docas de Alcântara, em cima dos ossos do pai.
A pintura em camadas de Varejão abre segmentos numa parede de azulejos que revelam cadáveres de navegadores. O romancista e a artista desconstroem o passado com violência pós-moderna, rasgando a fachada histórica e a partir da forma literária ou artística mostrar a violação cultural. Retratam o estupro literal, através do sacrilégio cultural do sacerdote missionário reformulado-o como cafetão e violador, rasgando o texto literário e a tela para mostrar o seu substrato ensanguentado. Além disso, as suas obras revelam também os aspetos mais grotescos do passado através da prosa poética evocativa e da magistral pintura de trompe-l’oeil de Varejão. No caso da artista uma série de auto-retratos disfarçados de sujeitos coloniais, parcialmente cegos - olhos arrancados da tela aparentemente sangrenta – são colocados (como uma linda escultura de porcelana) numa mesa, aberta como uma caixa de jóias decoradas no interior, mas visível apenas para o espectador que se aproxime e ouse pegar numa lente de aumento para olhar dentro do olho da artista ou do sujeito colonial.
Noutros casos, a artista é dissecada, a sua cabeça (decapitada) aparece colocada delicadamente no alto por uma figura neoclássica onde estão inscritos signos indígenas num trompe-l’oeil de azulejo da Figura de Convite, por trás da qual podemos ver cenas de antropofagia lindamente reproduzidas, mas de um horror imprevisto. O trabalho de Varejão reavalia o passado por meio de justaposições e reconfigurações. Como na cena de violação cultural e literal em Filho Bastardo, ela utiliza o mapa de Lopo Homem numa pintura oval estilizada e bonita sobre uma travessa. A travessa está cortada revelando camadas de carne por baixo. O corte parece um corte vaginal. O mapa está cortado e suturado, marcado por feridas e cicatrizes. De modo igualmente escandaloso e escatológico, escritores como Jorge (em A Costa dos Murmúrios e O Vale da Paixão) e Cardoso (em O Retorno), tanto como artistas como Paula Rego ou Mónica de Miranda representam perspetivas de figuras mundanas, incluindo filhas bastardas que verdadeiramente se apropriam da terra e da paisagem cultural, e articulam esta apropriação com a autoridade. A técnica e estética são tão convincentes que, ao mesmo tempo que dão conta da consciência cultural reforçam a consciência.
Escritores portugueses e luso-brasileiros de Osman Lins (especialmente em A Rainha dos Cárceres da Grécia) a Oswald de Andrade, escritores luso-africanos incluindo Mia Couto, Ondjaki e José Eduardo Agualusa, tanto como os artistas plásticos de culturas lusófonas têm vindo a traçar novas trajetórias a partir das suas memórias culturais, em parte lançando novas ligações entre os contextos e géneros geoculturais, ou cruzando fronteiras e utilizando novos instrumentos e novas tecnologias de navegação cultural. Tem havido ampla divulgação e estudo académico significativo sobre obras (re)visionárias de artistas luso-brasileiros como Anna Bella Geiger e Adriana Varejão, como de artistas portuguesas abrangendo Vieira da Silva e Paula Rego. Da mesma forma, há estudos monográficos em inglês e português sobre a obra de escritores consagrados, como Antunes, Jorge e Saramago. Colecções de ensaios sobre a escrita das mulheres portuguesas foram recentemente editadas por Kaufman e Klobucka, Owen e Pazos Alonso, em paralelo com importantes estudos sobre a consciência pós-colonial na literatura portuguesa contemporânea escritos e editados por Calafate Ribeiro, Ferreira, Moutinho, Owen e Klobucka, Teixeira e outros. No entanto, pouco se tem escrito sobre a obra importantíssima de artistas como Ângela Ferreira, Mónica de Miranda e Délio Jasse, ou de escritores como Cardoso e Agualusa. O livro de Ellen Sapega, em 2008, Negociações Visuais e Literárias em Consenso & Debate no Portugal de Salazar é um dos poucos trabalhos que numa abordagem comparativa inicia este processo analítico.
Esta proposta de um novo mapeamento dos “novos navegadores de memória cultural portuguesa” procura apresentar um extraordinário e extenso, mas muitas vezes negligenciado, conjunto de obras em língua portuguesa e de culturas lusófonas a uma vasta gama de leitores em inglês. Para além disso procura cultivar o diálogo entre disciplinas convencionalmente discretas, re-imaginar novas formas de ler artefatos visuais e verbais, e fornecer uma análise interdisciplinar e criticamente informada dos trabalhos de artistas e escritores emergentes e consagrados que estão a reformular a memória coletiva, realocando a história, reformulando o caráter histórico, reinventando disciplinas criativas e reorientando discursos críticos. A reorientação sugerida por estes novos navegadores é reflexiva e confronta a cumplicidade do cronista. Alguns dos seus trabalhos refletivos, refrativos e reflexivos têm sido considerados pela crítica pós-colonial global. No entanto, a história re-visionária que enforma as suas diversas formas visionárias, tanto verbais como visuais de contar histórias, não é apenas retrospetiva, mas prospetiva, sugerindo maneiras de navegar que desconstroem a memória cultural estabelecida para encontrar novos rumos e contactos culturais, não devastadores mas mutuamente criativos.
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