"Partilhar histórias de migração é criar pontes empáticas", entrevista a Tiago de Faria

A propósito da estreia de “Emigrantes” do Teatro Manga, conversámos com Tiago de Faria, diretor e encenador deste espetáculo. 


Tiago, o Teatro Manga é uma companhia dedicada às artes performativas que trabalha no cruzamento entre teatro, dança e performance. A sua abordagem é inspirada no universo da banda desenhada manga e os seus espetáculos caracterizam-se por uma linguagem visual muito forte, na qual a luz, a música e o movimento adquirem particular relevância. Pode dar-nos uma ideia do histórico desta companhia?

O Teatro Manga nasceu no final de 2016 a propósito de uma oportunidade para fazer uma residência de investigação e formação em Bristol, no Reino Unido, no contexto do doutoramento que na altura eu fazia em Winchester, sobre linguagens de composição cénica. Esse doutoramento tenta perceber o modo como diferentes linguagens se podem traduzir ou filtrar, para cena. Uma dessas linguagens, a linguagem da banda desenhada manga.

Em 2017, fixou-se em Lisboa, no Palácio Pancas Palha – Companhia Olga Roriz…

Duas ex-alunas minhas do curso profissional do CENDREV (Évora), convidaram-me para criar um espetáculo com elas. Foi um convite muito particular e como eu tinha acabado de fazer aquelas duas semanas em Bristol, vinha cheio de questões, nomeadamente sobre o facto de isto ser muito engraçado na parte da investigação, mas como é que será na parte de criação. Decidi aceitar o convite dizendo-lhes que sim, vamos avançar, mas fazendo uma criação no contexto deste projeto que estou agora a começar, com uma série de bases que gostava de testar em criação. Nomeadamente, o uso de elencos com capacidade para contrastar vários corpos com um corpo, ou para criar diferentes camadas de leitura em simultâneo.

Não tinha nenhum tema em particular, apenas o método que queria usar e os princípios metodológicos de trabalho. O tema foi sugerido por uma delas que gostava de fazer uma coisa sobre Tchekhov.

Assim, A Sacalina começa no início de 2018 com a minha investigação sobre o universo tchekhoviano. Li três biografias, li todos os outros textos possíveis de contos em inglês e em português, e aquilo que me fascinou dentro do seu universo é o facto de ser diferente de todos os outros, foi o relato da ilha de Sacalina. Aquele episódio da vida dele fascinou-me porque é muito claro que há um Tchekhov antes e depois da viagem a Sacalina.

Pensei: aqui está um episódio que não é muito grande. Um dos princípios da linguagem manga é fazer uma ação que não tenha muita complexidade para se poder explorar ao máximo todos os pormenores, todas as pequenas matizações intrínsecas de uma narrativa simples. É um bocado em linha contrária à evolução ocidental em que as narrativas são complexas. A ação, ou o arco narrativo da banda desenhada manga tende a ser, ou pretende ser, bastante simples e então selecionei esta viagem e disse “vou narrar esta viagem a Sacalina”.

Entretanto, começámos a fazer uma série de trabalhos a que chamei work-sessions que, na verdade, mistura formação e investigação. Sou um fervoroso adepto da practice as research, na qual vamos testando diferentes modelos de passar a investigação teórica que está a acontecer para o palco. Começamos então um périplo, durante o ano de 2018, com várias sessões. Trabalharam connosco cerca de 28 intérpretes de teatro e de dança, de diferentes origens, e fechamos o percurso com um elenco de catorze. O espetáculo estreou no Teatro Meridional, em março de 2019.

Diz que o Teatro Manga é um espaço de encontro de criadores, de experiências e raízes diferentes. Quer explicar como?

É relativamente fácil. Como eu tenho muitas dificuldades em nomear o meu papel na criação. Não acho que seja propriamente um encenador dentro da linha tradicional, gosto de situar dentro de algo, onde a minha participação é mais uma espécie de provocação, edição e montagem. Quando começo um projeto, começo a imaginar todo o corpo de criativos que podem contribuir para a evolução desse projeto. Eles podem, por exemplo fazer a parte coreográfica toda, desenhar o movimento, podem escrever o texto… Eu sinto-me num papel de pivô. Para mim, esta conceção de criar espetáculos é uma espécie de praça de encontro onde vêm criadores de diversas origens com diversas experiências. Alguns nem têm que ter experiência na criação. Por exemplo, agora estamos a fazer um projeto em que convidei para o corpo de dramaturgia um rapaz que se cruzou connosco no processo do espetáculo “Emigrantes”. Ele não tem nenhuma experiência de criação artística, mas tem uma sensibilidade assinalável e, portanto, o olhar dele, a perspetiva dele, a voz dele é extremamente rica e vai enriquecer o discurso de certeza.

Para mim, isso é fazer um espetáculo manga, porque a origem da manga é uma amálgama de referências, de estímulos. Para mim, visualizar um espetáculo é como visualizar uma praça em que nos encontramos todos e vamos criando.

Para o Teatro Manga, a formação e a investigação pela prática são duas ferramentas muito importantes. Porque razão? Em que medida?

Por três razões distintas, exponho-as por ordem decrescente de interesse pessoal. Primeiro porque eu assumo o ato da partilha de saber assim como o ato da investigação como dois baralhos perpetuamente renováveis de “estratégias oblíquas” (Brian Eno e Peter Schmidt) no meu percurso pessoal enquanto criador. Em ambos os momentos eu sou continuamente “convidado” a mudar de paradigma e sair do meu lugar de conforto. Em segundo lugar porque nos põe em contacto com diferentes criadores, alimentando não só a nossa palette de referências de e para os projetos, mas também, permitindo-nos ir construindo uma teia de relações próximas cada vez maior. Finalmente, em terceiro lugar, porque parte da nossa estratégia de financiamento inicial, passava pela capitalização da minha experiência e do meu interesse no ensino artístico de uma forma transversal, mas de uma forma mais concreta no treino e formação de atores e bailarinos.

Quem é Tiago de Faria e qual é o seu percurso profissional?

É um percurso profissional feito de autoquestionamento. Comecei por estudar Engenharia Mecânica (tenho uma paixão por perceber como é que as coisas funcionam), depois percebi que não era bem aquilo que queria. Andei uns meses em Jornalismo, para o choque dos meus pais não ser imediato. Mas houve uma série de episódios que me fizeram perceber que o meu caminho era o Teatro e fui para a Escola Superior de Teatro e Cinema, de Lisboa.

Depois de terminar o curso, senti que não me bastava e fui para Londres, fazer o mestrado em Performance Studies. E percebi que era ali que queria estar, porque me permitia estar em contacto com uma série de experiências novas, nomeadamente com a Dança Contemporânea. Aí o movimento, a relação do movimento com a palavra, começou a ser elemento fulcral no meu trabalho. Tive oportunidade de trabalhar com diferentes estéticas e treinos de movimento, do Kathak ao Kathakali, passando pelo Butoh.

Depois do mestrado fiquei a dar aulas na Central School of Speech and Drama.

Fiz um primeiro espetáculo no qual se questionava sobre qual é a matriz identitária do treino do ator no trabalho do ator, “As Dezasseis Fases de Kaspar”. No qual trabalharam três performers: um da escola inglesa, Amy Oliver, um da Índia, Harish Khanna, actualmente muito conceituado em Bollywood, e o Nuno Nunes, que para mim representava bem a escola portuguesa.

Vamos então falar sobre este novo trabalho do Teatro Manga, “Emigrantes”. Com estreia marcada para dia 24 de fevereiro, no Clube Estefânia, o espetáculo conta uma história universal de emigração. É inspirado na obra gráfica homónima, “Emigrantes”, do artista australiano Shaun Tan, que foi prémio de melhor livro no Festival de Angoulême, em 2007. Vamos ao início: como surgiu a ideia e o tema? Quando iniciaram os trabalhos e como?

A origem do tema esteve no primeiro espetáculo que nós fizemos que foi em Bristol, “An Indian Abroad” que trata precisamente das dificuldades de integração cultural de uma pessoa num país diferente, neste caso era um processo muito autobiográfico com o ator Hari Ramakrishnan que vinha da Índia. Depois, foi o encontro com a obra de Shaun Tan, “The Arrival”. Esta obra dá-te um estímulo como um relâmpago e tu dizes “eu tenho que fazer um espetáculo a partir disto porque é fantástico”. A vários níveis: quer a nível da proposta gráfica, quer a nível da proposta temática.

O Shaun Tan avança com, pelo menos, duas propostas para a integração de migrantes. Ao não colocar texto, ele diz que trabalhar a parte da língua é essencial para que a integração possa ser feita. E depois o que ele diz, à medida que a narrativa avança, é que este imigrante conseguiu integrar-se na nova sociedade porque foi acolhido por outras pessoas também elas imigrantes e partilharam histórias de migração e quem partilha as histórias de migração cria pontes empáticas e, a partir do momento em que tu crias pontes empáticas entre as pessoas que estão e as pessoas que vêm, a integração faz-se de uma forma bastante homogénea e tranquila. Essa proposta para mim era aquilo que eu queria abordar.

“Emigrantes”, é um espetáculo integrado num projeto do Teatro Manga que visa ajudar à promoção de estratégias de integração para estas pessoas, desenvolvido em parceria com instituições de apoio aos emigrantes como a Lisbon Project. Quais os contornos desse projeto?

Esse projeto tem três objetivos principais. Está materializado neste espetáculo, mas, na verdade vai continuar. É uma linha programática dentro do Teatro Manga para continuar em projetos futuros.

Os objetivos são: manter na ordem do dia a discussão sobre a integração de migrantes nas sociedades de acolhimento. Porque nos parece que a migração é um fenómeno humano, não é uma coisa transitória. É uma coisa transversal à existência da humanidade. Portanto, convém irmos discutindo, irmos falando sobre a integração e os problemas que existem associados à migração. Esse é o objetivo número um.

O número dois, é criar ferramentas que ajudem a mitigação de obstáculos à integração de migrantes e para isso nós contamos com a criação artística. A criação artística é uma janela espetacular para se poder trabalhar o encontro de culturas. Por isso, nós queremos, por um lado, trazer comunidades migrantes a ver espetáculos do Teatro Manga e, por outro, queremos contar com emigrantes a integrarem as equipas de criação do Teatro Manga. Seja na parte plástica, através dos seus saberes, das suas tradições e, mais uma vez invocando esta qualidade da banda desenhada manga – que nós queremos definitivamente afirmar em palco – que é um pote de amálgamas de referências onde se misturam saberes tradicionais da Índia, com saberes tradicionais do Iraque com narrativas do Japão e com movimento do Brasil.

O terceiro objetivo é a apropriação de exercícios que usamos quando estamos a trabalhar a criação autobiográfica com um sentido terapêutico. Para este fim, já iniciámos conversas com o Dispar, o grupo de teatro do ISPA de modo a desenvolvermos o projeto em conjunto.

O seu processo de criação envolveu a participação de cinco imigrantes e contou com convidados de origens diversas, da Europa à Ásia e à América do Sul. Quais são as componentes teórica e prática por detrás do método de construção dramatúrgica do espetáculo “Emigrantes”? 

Há duas linhas no processo de criação e na dramaturgia. A linha de investigação pela prática acontece diretamente no palco. É onde nós vamos buscar os estímulos do trajeto que foi feito na parte mais discutida. A parte mais teórica e o projeto foram feitos primeiro. Houve uma primeira ronda de debates e discussões com pessoas que nos são próximas ou são próximas de alguém que nos é próximo e que estão a trabalhar diretamente com a questão da imigração seja cá em Portugal, seja no Brasil, seja na Alemanha. Houve uma série de conversas sobre os problemas da integração e os problemas da imigração vistos por várias perspetivas.

Para nós é essencial ouvir várias vozes, várias perspetivas que nos ajudem a pensar sobre aquilo que estamos a querer refletir também no palco. Isso é essencial para podermos enriquecer todas as partes de movimento que depois acabam por estar no espetáculo. Tudo aquilo que depois parece extremamente simples e linear no espetáculo é de facto fruto de uma parte preparatória muito mais complexa e muito mais demorada, laboriosa.

Depois dessa primeira ronda de debates foi-nos aconselhado que trabalhássemos com a Lisbon Project, por ser um projeto dedicado ao acolhimento de migrantes com bom contato, um contato muito próximo com migrantes com uma relação próxima com a sala que nós tínhamos selecionado para estrear o espetáculo, o Espaço Escola de Mulheres. Esta ponte já está feita. No domingo, dia 27, mais de metade da sala é destinada a migrantes que vêm através do Lisbon Project.

Depois tratámos de uma outra linha de trabalho, integrar vozes de imigrantes em Portugal, através de entrevistas. São entrevistas que pretendiam procurar pontos da narrativa da obra de Shaun Tan nas experiências de vida destes imigrantes. Temos muita sorte porque trabalharam connosco cinco migrantes. Parece pouco, mas para nós é muito porque fizemos várias entrevistas com cada um deles, num processo que começou em setembro e só terminou em dezembro. Este processo teve que ser muito cuidadosamente trabalhado porque nós queríamos chegar a um lugar de confiança e de conforto para que as pessoas realmente conseguissem aprofundar as suas experiências.

Eu pensava que ia ser aborrecido para os emigrantes porque iam estar a contar a mesma história 2,3,4 vezes ao longo de vários meses, mas, afinal, não era aborrecido era terapêutico, era catártico.

Não queria explorar histórias dramáticas. Estava interessado em coisas mais emocionais como: sair de casa, preparar uma mala, chegar a um país onde não percebo nada… Estava mais interessado em pontos que pudessem ser comuns a diferentes tipos de emigração do que explorar as razões mais ou menos dramáticas da saída de cada um. Mas, de facto, à medida que fomos avançando nas entrevistas, os detalhes começaram todos a aparecer, as texturas começaram todas a ser muito mais pormenorizadas, a haver muito mais cor nos relatos.

Tal como estava a dizer há pouco, temos sorte em contar com cinco experiências de imigração absolutamente diferentes, quase como uma palette completa. Desde a pessoa que migra porque não se identifica com o seu país de origem, gosta muito desse país, mas não se sente parte dele e parte numa deriva à procura de um lugar no mundo onde se sinta em casa, até à história mais dramática, que é a história de uma migração por motivos de guerra, genocídio e perseguição.

Há um dado curioso, neste espetáculo, o Teatro Manga preserva o anonimato dessas pessoas. Porquê?

Nestas questões há sempre um problema de apropriação, uso de imagem para outros fins. E ainda que nós estejamos a fazer um trabalho artístico que pretende exatamente colocar e trazer para discussão algo que é característico destas experiências, partimos de um princípio que é: estas pessoas tiveram estas experiências e são tão migrantes quanto eu.

Eu, em particular, fui imigrante em Inglaterra, já fui imigrante em Évora e já me senti imigrante nos Açores quando trabalhei nas Lajes, no Pico. O que comecei a perceber é que não há ninguém que não tenha feito pelo menos uma experiência de migração. A escala pode ser diferente, tu podes mudar de uma sala de aula para outra, isso é uma migração. Podes mudar de um bairro para outro e isso é uma migração. De uma cidade para outra, de país para país e depois de continente para continente. As emoções associadas são as mesmas, com matizações associadas a escalas absolutamente diferentes. Lembro-me perfeitamente de quando era criança e mudei de sala de aula na quarta classe, de me sentir absolutamente aterrado e de não perceber nada dos códigos da outra sala. De ter que fazer o processo de integração.

Ao omitir nomes, identidades, estou mais perto de universalizar esta ideia de que migrantes somos todos. Essa é a chave.

por Teatro Manga
Jogos Sem Fronteiras | 14 Fevereiro 2022 | cultura, emigrantes, migração, shaun tan, sociedade, teatro, teatro manga