Protestos Sociais em Marrocos e a dita “primavera” dita “árabe”

Apesar da importância dos bloggers e das redes sociais nas recentes revoltas no mundo árabe, a cobertura mediática a esta série de eventos apresentou uma narrativa pautada geralmente pela ideia de uma movimento social espontâneo gerado exclusivamente à volta de bloggers e internautas do Twitter e do Facebook. Como observa Hèla Yousfi (2013), em relação ao caso tunisino, “In using this lens, the causes and consequences of the revolt itself are glossed over. Moreover, the historical context is abandoned in favour of a de-politicised narrative that revolves around young bloggers triggering a spontaneous movement, managing to succeed in dragging a whole population out into the streets to revolt against a shameful dictator”. Yousfi observa ainda que o facto da maioria dos analistas se centrarem sobretudo “on analysing the continued persistence of the authoritarian structures of power within the Arab world, or the evolution of the Islamist movements […] had the effect of making the diverse forces of change that emerged in the past two decades invisible”. A recente onda de protestos sociais não pode pois ser historicamente desenquadrada da realidade dos vários movimentos sociais e de outros grandes ou pequenos protestos coletivos durante a era pós-colonial e que evidenciam uma contínua presença da contestação aos regimes que se consolidaram durante esta era.

As revoltas estudantis nos anos 60 e 70 no Magrebe, as diversas greves gerais do movimento operário durante todo o período pós-colonial ou as revoltas do pão — no Egito em 1977, em Marrocos em 1981 e com réplicas em 1984 e na Tunísia em 1984 — são episódios que merecem ser estudados do ponto de vista de uma história dos movimentos sociais dos países MONA (Médio-oriente e Norte de África), como aliás tem sido feito por diversos investigadores até muito antes da eclosão do fenómeno denominado de “primavera árabe” (por exemplo, Monastiri 1973, Liauzu et al. 1985, Rown 1989, Le Saout & Rollinde 1999, Kadiri 2005). Assim como não deve ser ignorado o aparecimento em diversos países a partir do final dos anos 70 das associações de defesa dos direitos humanos, que apesar de virem a ser reconhecidas oficialmente, pretendem lutar contra as desigualdades provocadas pelos regimes dentro de um quadro legal — note-se que os seus fundadores provém muitas vezes da esquerda não alinhada com o regime, cujas associações partidárias tendiam a serem ilegais. A Liga Tunisina dos Direitos Humanos (LTDH) e a Associação Marroquina dos Direitos Humanos (AMDH) são precisamente casos muito interessantes, até porque desempenharam um papel muito ativo durante as revoltas e protestos em ambos os países. Também as manifestações em quase todos os países magrebinos e árabes, durante a Guerra do Golfo em 1991, assim como as manifestações em solidariedade com a Segunda Intifada palestiniana a partir de 2000 e contra a invasão estado-unidense do Iraque em 2003, têm o seu interesse nesta equação, sobretudo pelo facto de terem servido de pretexto para críticas abertas aos regimes vigentes e porque podem ser analisadas como um fenómeno estruturante de aquisição de experiência na organização de movimentos sociais.

Entre os anos 2005 e 2009, as “Coordenadoras contra o aumento dos preços e a deterioração dos serviços públicos”, também referidas simplesmente como “Coordenadoras” ou “Tansiqyat”, tinham-se destacado no panorama dos movimentos sociais em Marrocos. Estas coordenadoras foram um movimento descentralizado que apareceu em várias pequenas cidades e vilas do interior, antes de chegarem às grandes cidades, e que resultaram, em alguns casos, de um movimento espontâneo de protesto que só a posteriori se organizou como coordenadora ou, pelo contrário, foram constituídas depois de encontros entre várias organizações políticas, sindicais, assim como associações e ONG’s. Entre os vários organismos que se envolveram no movimento das coordenadoras, contam-se partidos da esquerda não alinhada com o regime (PSU, CNI, PADS e VD1), sindicatos (CDT, UMT, FDT2) e associações como a AMDH, ANDCM ou ATTAC-Maroc3. Vários dos membros mais seniores de alguns destes organismos acumulam experiência política que remonta às décadas 70, 80 e 90.

Os países da região MONA não estavam mergulhados numa espécie de letargia, onde de repente, por uma passe de magia, as pessoas saíram para a rua para exigir a “queda do regime”, após um longa idade das trevas que antecedeu a “primavera”. Ações desenvolvidas pela sociedade civil ou greves operárias já haviam mesmo obrigado, em alguns casos, alguns desses regimes a fazerem pequenas concessões. No caso de Marrocos, o que não falta são ações de protesto, tais como “greves e manifestações do movimento sindical, protestos contra o encarecimento da vida, movimentos de mulheres pelo acesso à terra e direitos específicos, protestos contra os concessionários de transportes públicos” (Hibou 2012), dos serviços de saneamento — que em várias cidades foram privatizados resultando no aumento do preço da água e eletricidade —, sem esquecer os constantes protestos organizados pelos licenciados desempregados e que já haviam começado no início dos anos 90, ou ainda os protestos na pequena cidade oriental Bouarfa exigindo a gratuitidade da água (que será concedida, apesar de só durante alguns meses). Podem-se ainda referir os protestos na cidade costeira de Ifni em 2005, 2007 e 2008, contra a exclusão social e económica desta cidade, ou ainda, o acampamento de Gdim Izik perto da cidade de El Aiune em outubro/novembro de 2010 — curiosamente imediatamente antes da eclosão dos protestos contra Ben Ali na Tunísia —, e que exprimiu a revolta da população sarauí relativamente à sua exclusão social e económica por parte do governo de Marrocos que administra de facto — mas ilegalmente do ponto de vista do direito internacional — este território.

Sobre esta dita “primavera” dita “árabe”, convém relembrar que o termo “árabe” comporta o perigo de reificar contextos sociais muitos mais diversificados e que nem sempre são árabes. Em Marrocos, como em outros países vizinhos ditos “árabes”, uma parte significativa da população não se reclama tanto da ideia de ser árabe, mas identifica-se mais como sendo amazighe. Do ponto de vista histórico, a presença de populações amazighes — que antigamente eram denominadas de “berberes” — é mais antiga do que a conquista do Norte de África feita pelos árabes a partir do século VII, havendo atualmente vários grupos que se reclamam da amazighidade como bandeira política e cultural. Para muitos ativistas amazighes, a população magrebina é essencialmente composta de amazighes — arabizados ou não. Já o historiador Ibn Khaldūn no séc. XIV, na sua celebérrima Muqaddimah, referia, relativamente ao seu objeto de estudo, que “[…] our main concern is with the Maghrib, the home of the Berbers, and the Arab home countries in the East” (Ibn Khaldun 1967: Chapter I, Second Prefatory Discussion)4. Recentemente em Marrocos, com a nova Constituição em vigor desde 2011, o idioma amazighe tornou-se oficial ao lado da língua árabe e, na Líbia, depois da queda de Muammar Qadhdhafi e de várias décadas de arabização forçada, o amazighe voltou a ganhar expressão e começou a ser ensinado em algumas escolas.

Por outro lado, no que diz respeito à categoria “islâmico”, muito utilizada na análise de diversos movimentos sociais, não se pode ignorar que esta implica mormente reduzir todas as formas de protesto a um discurso que teria como idioma principal a religião, pondo-se de parte “a wide variety of movements – ethnic, feminist and young people’s – that might or might not, be mobilised by religion” (Cardeira da Silva 2006: 74). Por isso, quando se fala de movimentos sociais em contextos “árabes e islâmicos” há que ter em conta que nem sempre eles são necessariamente árabes ou islâmicos e que os movimentos ditos islamistas não são os únicos capazes de mobilizar protestos sociais.

Para além disso, certos autores, tais como Asef Bayat, têm-se relevado mais pertinentes para compreender, por exemplo, fenómenos de rebelião não organizada e de redes informais, que apesar de geralmente não se constituírem em movimentos sociais, podem em certas condições assumir essa forma (Bayat 1997), tendo essas redes informais jogado a sua importância nos recentes protestos aqui tratados (Buttler 2011).

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O surgimento do Movimento 20 de Fevereiro (M20F) em Marrocos — que se apresenta como sendo desprovido de líderes e estruturas verticais formais —, foi em parte influenciado pela dinâmica de revoltas que foi anunciada pelos média como a “primavera árabe”. O M20F, tal como outros movimentos sociais, não se desenvolveu exclusivamente graças à Internet, mas através da combinação de duas formas hoje em dia inseparáveis de funcionamento em rede, offline e online (Brouwer 2012). Obviamente, muitos dos ditos ativistas online já se conheciam previamente offline. Em finais de janeiro e inícios de fevereiro de 2011, alguns jovens ativistas independentes e militantes da AMDH organizaram pequenas manifestações em Rabat em solidariedade com os protestos da Tunísia e do Egito. Durante a mesma altura, criaram-se grupos no Facebook, como por exemplo o Mouvement pour la liberté et la démocratie maintenant (MLEDM), com o objetivo de organizar uma manifestação nacional de protesto simultaneamente em várias cidades e que se realizou no dia 20 de fevereiro de 2011.

O M20F contou com o apoio de vários organismos políticos, tais como por exemplo os mesmo que já foram previamente mencionados que tinham apoiado o movimento das “Coordenadoras”. O Grupo Justiça e Caridade (Jamāʿat al-ʿadl wa al-iḥsān), um grupo islamista proibido mas tolerado e que conta com elevada simpatia popular, foi também convidado a participar, tendo sido feitos alguns acordos entre as várias tendências políticas. Se slogans exigindo a laicização não poderiam ser usados, também não se usariam slogans religiosos. Este grupo irá desmarcar-se do M20F, durante o último trimestre de 2011, período que conhece grande declínio do sucesso popular ao M20F.

Apesar da enorme adesão às manifestações, que se desenrolaram em simultâneo em várias cidades de Marrocos a 20 de fevereiro de 2011 e que, durante esse ano, se irão repetir por vezes a um ritmo semanal, ao contrário de outros países, em Marrocos não se irá bradar, com algumas exceções mais ou menos tímidas, o famoso slogan “o povo quer a queda do regime”. Este será de certa forma um slogan “tabu”, seja por medo de pôr em causa o regime monárquico cuja legitimidade apresenta-se como sendo inquestionável, seja por devoção aparentemente sincera de uma parte significativa da população marroquina à causa monárquica — o que não impede que alguns dos atores que dinamizaram as recentes dinâmicas protestárias não sejam necessariamente grandes entusiastas da monarquia. O famoso slogan acabou por manter só o mote “o povo quer” e a segunda parte assumiu diversas formas5 tais como “a queda do makhzan6”, “a queda do despotismo”, “a queda do governo, do parlamento e dos conselhos regionais”, “a queda do governo”, “a queda da Lydec / Amandis / etc.7”, “a queda da [atual] Constituição”, “a queda da corrupção”, “a queda da comissão do Mamouni”. Este último faz referência ao presidente da comissão encarregue da redação de uma nova Constituição, pretensamente mais democrática, que foi anunciada pelo rei Mohammed VI a 9 de março de 2011, poucos dias depois do início da vaga de protestos do M20F e que foi uma resposta rápida por parte da monarquia à contestação popular. Outras variações incluem ainda: “a mudança da Constituição”, “uma nova Constituição”, “a dissolução do parlamento”, “aumento dos salários”, “a queda dos corruptos”. Foram ainda produzidas outras variantes, tais como “o povo não quer uma Constituição de escravos” ou ainda “o slogan que receiam em breve vão ouvi-lo”, em referência ao famoso slogan “tabu”. Mais irónico, durante a manifestação em Rabat que celebrava o primeiro aniversário do M20F, um manifestante empunhava um cartaz onde se lia “o regime quer a queda do povo”.

Manifestação do M20F em Rabat, realizada a 21 de fevereiro de 2012, celebrando o seu primeiro aniversário. No cartaz lê-se 'O regime quer a queda do povo'. Fotografia de Hugo Maia.Manifestação do M20F em Rabat, realizada a 21 de fevereiro de 2012, celebrando o seu primeiro aniversário. No cartaz lê-se 'O regime quer a queda do povo'. Fotografia de Hugo Maia.

Por macro slogans, entendemos não só os slogans mais permanentes e de maior peso, mas também os motes fixos mais ou menos inalteráveis que compõem uma das partes, sendo que a outra parte pode ser resultar num sem-número de variantes. No primeiro caso, podem-se citar dois que aparecem permanentemente nas ações e materiais de divulgação do M20F, entoados oralmente ou escritos: “liberdade, dignidade, justiça social” (ḥurriyyah, karāmah, ʿadālah ijtimāʿiyyah) e mamfakinch, expressão em árabe marroquino traduzida geralmente por “não fazemos concessões” ou “não desistimos”8. Relativamente ao segundo tipo de macro slogans, para além do já referido “o povo quer”, o mote “vai-te embora” foi muito usado em diversos países e em diversas variantes linguísticas9, como por exemplo nos slogans do M20F: “Ó governo: vai-te embora! Ó parlamento: vai-te embora!”; “Makhzan vai-te embora, Marrocos é uma terra livre”; “Detenção [política] vai-te embora, Marrocos é uma terra livre” e, entre outros que seriam exaustivo mencionar, “Escuta a voz do povo, queremos que Marrocos seja uma terra livre e a corrupção se vá embora”. A primeira parte deste último, “Escuta a voz do povo…”, é por sua vez outro exemplo de macro slogan. Por vezes os slogans emaranham-se uns nos outros de forma a resultarem em longas sequências entoadas oralmente em manifestações no espaço público, que podem por vezes durar cerca até quinze minutos, como por exemplo em “as massas dizem / a única solução / entre todas as soluções / é a queda do governo / a dissolução do parlamento / a emancipação dos média / a independência da justiça / e a mudança da Constituição / e ó makhzan vai-te embora / e Marrocos é a minha terra livre / ouve a voz do povo / das filhas do povo / dos filhos do povo, etc.” Comparativamente a outros movimentos sociais marroquinos recentes, o que carateriza os slogans do M20F é a sua linguagem mais politizada que atesta uma certa dissipação do medo do idioma político. A tabela 1 contém uma seleção de palavras extraídas dos slogans e classificadas segundo a sua conotação positiva ou negativa no contexto dos seus entoadores.

Conotação positiva

Conotação negativa

Monarquia parlamentar, juventude, Marrocos, rei [ex.: “um rei jovem gosta da juventude”], povo, Constituição [democrática], mudança, destituições, julgamentos [dos corruptos], eleições, promessas, dignidade, liberdade, justiça, escolas, educação, governo, parlamento, transparência, democracia, amazighe, saúde, habitação, aumento dos salários, Deus, imprensa livre e independente, repartição justa da riqueza, Facebook, Aljazira, cidadania, pão e farinha, direitos, trabalhador, estudante, agricultor, luta, combate, resistência, revolta, manifestação pacífica, mártir…

Makhzan, patronagem, sacralização [do rei], beija-mão [ao rei], [atual] Constituição, corrupção, opressão, humilhação, aumento [dos preços], fraudes, subornos, despotismo, riqueza, autoridade, polícia, famílias [das elites governadoras], pilhagem [do dinheiro público], ladrões [do dinheiro público], detenções políticas, centros de detenção, Deuxième [canal de TV estatal], televisão pública, festas e festivais, Shakira, barracas, analfabetismo, medo, repressão, exploração, tiranos, opressores, bastões, esfaqueamentos, cassetetes, escravos, escravatura, deputados…

Tabela 1: Seleção de palavras extraídas dos slogans e classificadas segundo a sua conotação positiva ou negativa

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Três anos depois do nascimento do M20F é muito difícil dizer se estes protestos resultaram em alguma coisa e em quê. Para muitos ativistas, a nova Constituição é um pouco melhor do que a anterior, mas muito aquém das expetativas. Na realidade, a nova Constituição contribuiu sobretudo para reforçar a legitimidade do atual regime. Por outro lado, em vários países, foram as formações políticas ditas “islamistas”, que não estiveram presentes no desencadear dos protestos da dita “primavera”, que mais lucraram politicamente. Em Marrocos, as eleições legislativas de finais de 2011 e que decorreram em consequência da aprovação da nova Constituição, resultaram numa esmagadora mas não absoluta vitória dos islamistas do PJD (Parti de la justice et du développement), que oficialmente desde o início se desmarcou das ações do M20F. Outros dos grandes vencedores foram as companhias da Internet. Note-se que em muitos dos países da região MONA, multinacionais do setor dos média e telecomunicações detêm capital, maioritário ou minoritário, em companhias locais de Internet. A dita “primavera árabe” também pode ser vista como uma enorme campanha publicitária em benefício destas multinacionais. Curiosamente, esta não foi a primeira vez que as redes sociais online desempenharam um papel significativo — isso já tinha acontecido, por exemplo, em 2008 no caso egípcio do Movimento da Juventude 6 de Abril (Ḥarakat Shabāb 6 Abrīl), que foi criado para apoiar as greves e protestos da cidade industrial de Al Maḥallah al Kubrā, cuja adesão há quem estime que se conte na ordem dos quatro milhões.

“Não à repressão… 5 de junho … Comité de apoio ao M20F”“Não à repressão… 5 de junho … Comité de apoio ao M20F”Durante uma sessão do parlamento marroquino em finais de 2012, divulgou-se que, de janeiro a novembro de 2012, registaram-se 17.186 manifestações de protesto, a uma média de 52 por dia, totalizando 921.000 manifestantes, seja 2.790 manifestantes todos os dias10. Nem todas estas manifestações foram iniciativa do M20F. Talvez pelo contrário, mas o exemplo do M20F encorajou uma nova dinâmica protestária, muitas vezes com distâncias guardadas em relação ao M20F e, ao contrário deste, sem assumir posições explicitamente políticas, mas não deixando de ter o seu peso político precisamente porque o “económico” não é assim tão menos “político” que o discurso contestatário explicitamente “político”. Veja-se, por exemplo, o caso dos protestos que começaram logo a 21 de fevereiro de 2011 em Khouribga, onde se localiza o principal centro mineiro de extração de fosfatos em Marrocos, exigindo empregos na indústria mineira local. O Office Chérifien des Phosphates (OCP), que gere essas minas, viu-se forçado a criar o programa OCP Skills, através do qual abriu um concurso que recebeu 90.000 candidaturas de emprego (35.000 só de Khouribga, uma pequena cidade com cerca de 175.000 habitantes), foram aceites 5.800 novos recrutas e organizaram-se 15.000 estágios11. Não deixa também de ser interessante colocar a hipótese se a rápida resposta das autoridades em satisfazer algumas reivindicações não se deveu só às dinâmicas de protestos generalizados no mundo dito “árabe”, mas também ao receio de uma hipotética dinâmica de influência internacionalista entre as populações das cidades mineiras produtoras de fosfatos em Marrocos e na Tunísia. Note-se que a cidade mineira de Redeyf no sul da Tunísia, conheceu durante todo o primeiro semestre 2008 um importante e expressivo movimento de greves e manifestações e sublinhe-se ainda que neste país as revoltas da dita “primavera” dita “árabe” começaram pelo sul rural, nomeadamente da pequena cidade de Sidi Bouzid, antes de chegarem à capital, numa janela de tempo de cerca de um mês.

O episódio de Daniel Galván Viña durante o verão de 2013, que levou a população a descer às ruas sem medo para contestar direta e frontalmente uma decisão do rei, em que este se viu constrangido, por via das circunstâncias e pela amplitude mediática que o caso teve a nível nacional e internacional, a regressar atrás numa decisão sua e a pedir desculpas pelo erro. Foi um acontecimento sem precedentes desde a independência de Marrocos.12

O M20F tem algo substancialmente diferente de outros movimentos sociais, demasiado focados em questões económicas e sociais. Ao contrário destes, o M20F popularizou as questões políticas. Mas ainda é muito cedo para tecer conclusões rigorosas sobre o seu impacto. Seguramente o regime não caiu — provavelmente até se fortaleceu ainda mais — e também não sabemos se a população marroquina estaria realmente interessada na queda do regime. Se alguma coisa caiu foi provavelmente o medo, nomeadamente o medo da política, mas as repercussões dessa mudança ainda não são muito claras.

 

Este texto foi escrito em 2013 e publicado na revista Jeux Sans Frontières, #2 (2015), numa versão em inglês.

 

Referências bibliográficas

BAYAT, Asef (1997). “Un-civil society: The politics of the ‘informal people’”, Third World Quarterly, Vol. 18, N.º 1, pp. 53-72.

BROUWER, Lenie (2012). “Social media and the 20th February Movement in Morocco”, conferência apresentada dia 3 de maio de 2012 no Nederlands Instituut Marokko (NIMAR), Rabat.

BUTTLER, Judith (2011). “Bodies in Alliance and the Politics of the Street”, conferência apresentada em Veneza a 7-9-2011, publicada em linha: http://eipcp.net/transversal/1011/butler/en, acedida em 7-3-2012.

CARDEIRA DA SILVA, Maria (2006). “Social Movements in Islamic Contexts: Anthropological Approaches”, Etnográfica, Vol. X, pp. 73-83.

GANTIN, Karine & Omeyya Seddik (2008). “La révolte du « peuple des mines » en Tunisie — Un bastion ouvrier dans le bassin de Gafsa” in Le Monde Diplomatique (edição francesa), p.11, julho, 2008.

HIBOU, Béatrice (2012). Le mouvement du 20 février, le Makhzen et l’antipolitique. L’impensé des reformes au Maroc, Centre d’études et de recherches internationales (CERI), Paris, Maio 2011. Acedido a 1 de junho de 2012 em http://sciencespo.fr/ceri/en/content/le-mouvement-du-20-fevrier-le-makhzen-et-lantipolitique-limpense-des-reformes-au-maroc.

KADIRI, Abdeslam (2005). “Histoire. Casablanca, le 23 mars 1965”, Telquel, n.º 169, 26 março – 1 abril. Acedido a 12/8/2012 em http://5.153.23.13/archives/169/sujet1.shtml.

Ibn KHALDUN, Abd Ar-Rahman bin Muhammed (1967). The Muqaddimah: An Introduction to History, tradução do árabe por Franz Rosenthal, Bollingen Series, Princeton.

LIAUZU, Claude, Gilbert Meynier, Maria Sgroï-Dufresne & Pierre Signoles (1985). Enjeux urbains au Magreb – Crises, pouvoirs et mouvements sociaux, L’Harmattan, Paris.

MONASTIRI, Taoufik (1973). “Chronique sociale et culturelle Tunisie”, in Jean-Claude Santucci & Maurice Flory (sous la responsabilité de), Annuaire de l’Afrique du Nord, Centre national de la recherche scientifique (CNRS) & Centre de recherches et d’études sur les sociétés méditerrannéenes (CRESM), Paris, Éditions du CNRS, 1973, pp. 429-443 , Vol. 11 (1162 p.). Disponível em http://aan.mmsh.univ-aix.fr/Pdf/AAN-1972-11_18.pdf, acedido a 31-8-2013.

ROWN, Kenneth et al. (ed.) (1989), État, ville et mouvements sociaux au Maghreb et au Moyen-Orient, L’Harmattan, Paris.

Le SAOUT, Didier & Marguerite Rollinde (dir.), Émeutes et mouvements sociaux au Maghreb — Perspective comparé, Karthala – Institut Maghreb-Europe, Paris.

VAIREL, Frédéric (2012). “« Qu’avez-vous fait de vos vingt ans ? » Militantismes marocains du 23-mars (1965) au 20 février (2011)” in L’année du Maghreb, n.º VIII, 2012, pp. 219-238, CNRS Éditions. Publicado em linha a 1-1-2013, em http://anneemaghreb.revues.org/1477, acedido em 20/5/2013.

YOUSFI, Hèla (2013). “Social Struggles in Tunisia: A Curse or a Revolutionary Opportunity?”, Jadaliyya, 27-3-2013, tradução em inglês por Hèla Yousfi. Disponível em http://www.jadaliyya.com/pages/index/10839/, acedido em 7/4/2013.

 

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  • 1. Acrónimos formados do francês, respetivamente Parti socialiste unifié, Congrès national Ittihadi, Parti de l’avant-garde démocratique et socialiste, Voie Démocratique.
  • 2. Acrónimos formados do francês, respetivamente Confédération démocratique du travail, Union marocaine du travail, Fédération démocratique du travail.
  • 3. Acrónimos formados do francês, respetivamente Association marocaine des droits humains, Association nationale des diplômés chômeurs du Maroc, Association pour la taxation des transactions financière et l’aide aux citoyens.
  • 4. Note-se ainda a breve descrição feita pelo mesmo autor em relação às primeiras conquistas árabes e consequente islamização do Norte de África: “The inhabitants of those lands [in the Maghrib] are Berber tribes and groups. The first victory of Ibn Abi Sarh over them and the European Christians (in the Maghrib) was of no avail. They continued to rebel and apostatised time after time. The Muslims massacred many of them. After the Muslim religion had been established among them, they went on revolting and seceding, and they adopted dissident (Kharijite) religious opinions many times.” (1967: Chapter III, part 9).
  • 5. Todos os slogans aqui mencionados foram por mim recolhidos no âmbito da minha dissertação de mestrado “Protestos sociais em Marrocos” realizada em 2012-2013 sob a orientação da Prof. Maria Cardeira da Silva (UNL-FCSH). São cerca de 180 slogans recolhidos de duas fontes distintas, os jornais marroquinos em língua árabe do primeiro semestre de 2011 e duas listas de slogans elaboradas pelo Comité de Slogans (Tansīqiyyat ash-Shiʿārāt) do M20F que me foram facultadas.
  • 6. O makhzan designa os círculos tradicionais do poder político em Marrocos, por oposição aos instrumentos de governação modernos tais como o governo e o parlamento, que muitos ativistas consideram serem controlados pelo primeiro. De certa maneira, pode-se dizer que o makhzan designa o poder do palácio real que se estende deste mesmo até aos alcaides e almocadéns de bairro, numa vasta estrutura de relações hierárquicas que cobre todo o território marroquino, formando uma organização “para-política” que controla o político.
  • 7. Empresas privadas que gerem o saneamento, água e eletricidade em diversas cidades marroquinas. A privatização destes bens levou ao seu encarecimento.
  • 8. Mamfākkinsh, numa transcrição mais académica, significa literalmente “não somos desmobilizáveis / desmanteláveis / desmontáveis / desfragmentáveis”, tendo em conta o sentido da raíz f-k-k tanto em árabe marroquino como em árabe padrão.
  • 9. Irḥal em árabe padrão. Muito utilizado no Egito, como em “vai-te embora ó Mubarak”, e no Iémene onde os manifestantes o pintavam na mão na sua versão mais simples: “vai-te embora”; dégage e bərrā em árabe magrebino.
  • 10. Cf. um artigo publicado no jornal marroquino Akhbār al-Yawm do dia 24 de dezembro de 2012, da autoria do sociólogo Hassan Tarik, com o título Mamlakat al-iḥtijāj (“O Reino do Protesto”).
  • 11. Cf. http://www.khouribga-online.com/category2_12/4037-article2_2887.html, publicado a 13-5-2012 e acedido a 31-5-2013. A notícia reproduz um artigo do jornal al-Ittiḥad al-Ishtirākiyy, jornal do partido USFP (Union socialiste des forces populaires).
  • 12. Os detalhes deste importante episódio podem ser explorados no dossiê que foi elaborado pelo periódico espanhol El Pais em: http://politica.elpais.com/tag/daniel_galvan_vina/a/.

por Hugo Maia
Jogos Sem Fronteiras | 24 Março 2016 | Marrocos, Primavera Árabe, protestos, revolta social