Ventura e o Apocalipse Betinho
O sucesso eleitoral de André Ventura irá provocar nos próximos dias e semanas uma explosão de comentário político formal e informal. Correndo o risco de participar numa cacofonia que poucas vezes é capaz de se transformar debate, e sabendo mesmo que essa cacofonia é um dos processos que mais impede um debate, torna-se também necessário procurar os meios para um entendimento e uma discussão do presente, mesmo que seja através da compilação de notas breves, soltas e fragmentadas.
Com demasiada facilidade surgem diabolizações várias do povo de Ventura. Ignorante, rude, pagão, iletrado, associal, infiel à memória histórica de Abril, etc. Os passos desta caricatura são tão curtos que acabam por dizer tanto acerca de quem os diz como de quem pretendem retratar: Ventura enquanto projeção dos demónios da metrópole. Do outro lado, ainda outra caricatura: Ventura, qual flautista de Hamelin, leva para fora da polis os deserdados da esquerda. Versão obreirista: a esquerda “pós-moderna” traiu a classe. Versão cosmopolita: famintos de cultura e estado social os pobres correm para os braços do seu carrasco.
Nem uma nem outra. Ventura congrega uma racionalidade socialmente transversal, mobilizando os meios para que esta ganhe voz e corpo através dele e das narrativas que congrega. Não ocorreu, no domingo passado, uma traição a Abril, nem irrompeu nenhuma assombração no espaço democrático. Pelo contrário, deu-se um movimento tectónico na direita: a direita que cresceu e se formou pós-74 deu o primeiro passo de autonomização relativamente à direita que honrava o compromisso histórico pós-revolucionário, onde a esquerda abandonava os seus ímpetos revolucionários e a direita os seus ímpetos autoritários em nome de um desenvolvimentismo humanista comum. Esse mesmo corte teve lugar na esquerda com os movimentos sociais de 2010/2012, tendo, no entanto, rapidamente sarado nos anos posteriores.
O que motiva essa necessidade de autonomização é um corte histórico que ocorre não dentro da direita enquanto “família política”, mas dentro dos dispositivos históricos que mobilizam a polarização das posições políticas. A classe média que emergiu e se consolidou em Portugal durante os anos 80 e 90 assiste, desde 2008, à compressão do seu poder económico, político, social e cultural. Os seus filhos correspondem à geração que faz da simultânea afirmação social e declínio histórico da classe média a sua principal experiência social.
Compressão económica no sentido em que a constituição e ascensão social desta nova classe (e só existe algo como uma “classe média” se estes momentos, constituição e ascensão, coincidirem, como classe fundamentalmente capitalista ela apenas existe enquanto tal quando há crescimento) foi interrompida nominalmente com a crise de 2008, em si expressão tardia do processo de compressão das taxas de lucros em curso desde os anos 70. Nata tardiamente, a classe média portuguesa não chegou que a cheirar a promessa de riqueza e privilégio. Foi, no entanto, capaz de constituir as suas formas sociais e culturais – um liberalismo boomer, feito de fascículos distribuídos grátis com o Expresso – precisamente as que são agora ameaçadas pela questão do racismo e sexismo estruturais. Duplamente cercada, sem dinheiro no bolso nem legitimidade social, esta crise das classes médias encontra em Ventura o seu campeão. Ventura é o colega de liceu beto que encarnava toda a prepotência do dinheiro novo e que reencontrámos no facebook, passando alguns minutos nesse prazer tão culpado e vão que é demorar-nos no que nos repulsa e nos valida. Só que agora, ironia do destino e horror dos horrores, já não podemos simplesmente fechar a app porque ele está em todo lado.
Sobram a esta análise as pretensas massas proletárias que correram para os braços do tirano: o voto rude e pagão, esquecido pelo poder, cujo último reduto é auto-imolação sob forma de representatividade espúria e suicida. Torna-se aqui de facto necessário abandonar o materialismo cru que presume que as classes antecedem a sua expressão política. O “voto de protesto” não surge do nada, e a única “irracionalidade” presente é a de quem ingenuamente acredita que a esquerda institucional pode de facto responder à crise que se lhe apresenta: não só não pode como é aliás incapaz de a identificar ou nomear.
Este eixo do mal de forcados, PSP’s e patos bravos liderados pelo pior dos betos surge de facto enquanto o pior pesadelo de toda a outra classe média que em pânico quase reclama campos de reeducação cívica. A braços com a mesma crise, a sua ascensão social não ocorreu através do dinheiro, mas através dos mecanismos de reconhecimento cívico, intelectual e cultural que o estabelecimento de uma sociedade civil pequeno-burguesa permitiu. Face à mesma proletarização iminente o seu socorro não poderá ocorrer nunca no programa liberal que organiza a reconstrução da direita, mas no sentido inverso, num fortalecimento do estado que assegure a manutenção do status quo social. Fragmentação da classe média em campos opostos: a decadência das elites económicas contra a decadência das elites culturais.
Mas o voto em Ventura está longe de ser apenas o voto de uma classe média às voltas com a sua identidade e discurso. O risco de abandonar toda a pressuposição sociológica é o de considerar, como faz Ranciére num texto recente, que o dispositivo político é exclusivamente discursivo, ou seja, que a política se constitui a si própria em vácuo1. Isto por duas razões: primeiro porque desemboca numa política de afectos ahistóricos (Ranciére usa a expressão “paixão da desigualdade”, como se o conceito abstracto de “igualdade” e “equivalência” não fosse fundamental ao funcionamento da estrutura do capitalismo e dos regimes políticos a ele associados, e como se a ideia de “igualdade” não fosse estrutural dentro da identidade norte-americana); segundo, porque a primazia do discursivo (ou do performativo) é em si própria uma ofuscação de outras dimensões de subjectivação em curso.
É necessária uma crítica do materialismo vulgar, mas essa crítica não pode passar exclusivamente pelas formas de aparência da subjectividade, precisamente porque a separação entre subjectividade e aparência (ou representação) é já em si uma função de domínio. A possibilidade então reside em conseguir conceptualizar outras dimensões políticas, entre as quais essa dimensão do político que se prende com a materialidade concreta do tempo e do espaço, ou seja, de como o domínio se expressa em termos de território, e como o território se expressa em termos de subjectividade2. Interior e exterior, centro e periferia, metrópole e colónia não apenas enquanto marcos geográficos, mas enquanto categorias do político. A fronteira entre metrópole e hinterland enquanto fronteira política constituída dentro de todas as classes e todos os territórios.
Um dos debates mais interessantes em curso3 atenta precisamente no modo como a reorganização produtiva pós-2008 reconfigurou a estrutura produtiva metropolitana. É uma discussão extensa e complexa, mas fica um rascunho e resumo possível:
A compressão das taxas lucro conduziu à expansão ainda maior do sector terciário e ao estacionamento de capital em territórios urbanos. Isto é um enorme factor de tensão: só há trabalho nas cidades ao mesmo tempo que as cidades se tornam cada vez mais caras. O “regresso à cidade” e a “gentrificação” não podem ser apenas explicados por motivos culturais e/ou especulativos. Se de facto só há empregos em “serviços” (definição limitada: mercadorias consumidas na hora e no local), então a quantidade de emprego é proporcional à densidade populacional. O acesso à cidade não é apenas “político”, ele é económico e como tal competitivo: quanto mais perto eu estiver do centro, simbólico e territorial, mais hipóteses tenho. Do mesmo modo, quanto mais distante mais fodido estou. Isto traça uma fronteira invisível, porque esse acesso à cidade tem também as suas formas culturais, simbólicas e políticas. Do mesmo modo que a classe média liberal expressa a sua prepotência através da exibição do seu poder de compra, a outra classe média expressa o seu privilégio pela exibição dos sinais culturais que a mostram enquanto cosmopolita. O ódio à metrópole enquanto fronteira expressa-se parcialmente no ódio à classe média cosmopolita e ao seu óbvio classismo mal disfarçado4 e, à falta de melhor, nas formas culturais reais ou imaginárias desse privilégio metropolitano. Mais do que delinear uma clara fronteira esquerda/direita (principalmente porque existe, sem dúvida, um proletariado metropolitano) esta divisão territorial (que nos Estados Unidos e em França, por exemplo, é total, e que por cá apenas poderá crescer) emerge enquanto novo paradigma político, do qual Ventura (ou Trump) é apenas uma expressão transitória. Este terá expressões de esquerda e de direita, e alianças perenes (como a de agora) mas a questão central, por ora insolúvel, é que nos termos e conceitos que temos é impossível a conjugação do proletariado metropolitano com o proletariado extra-metropolitano (ou de outro modo, do proletariado com as populações excedentárias): isto porque as formas de expressão do proletariado metropolitano são tendencialmente percebidas enquanto formas de opressão pelo proletariado periférico e vice-versa. Novamente, Ventura é expressão dessa equação. Um exemplo claro: as lutas sociais de hoje mostram tanto professores a defender a escola como proletários a queimar escolas. As novas mediações políticas necessárias não ocorrerão entre o povo e as suas instituições (sob o risco de extremar ainda mais o fosso entre diferentes formas de ser proletário) mas entre formas diferentes de exploração e exclusão.
Um último detalhe: A defesa da constituição por João Ferreira é extremamente interessante e pertinente. Não enquanto projecto, programa ou finalidade política, mas pelo que tão claramente significa: a força constituinte que animou a república portuguesa até agora está tão esgotada que já tem de ser referida pelo nome. A constituição ressuscitada enquanto katechon, enquanto última fronteira entre o projecto emancipatório de Abril e a barbárie que vem. Só que, como nos filmes, de bandeiras não se fazem escudos.
Artigo originalmente publico por Punkto em 28.01.2021
- 1. E aqui um detalhe teórico: a conceptualização de uma política anti-fundacional (que não dependa de um início) nunca pode pressupor a autossuficiência dos dispositivos, porque nesse gesto é incapaz do que propor mais do que um fundamento fantasma: o niilismo sistemático da técnica, onde nunca nada poderá ser mais do que um pouco melhor, onde não se poderá aspirar a nada senão um funcionamento mais benévolo da máquina.
- 2. Nesse sentido, a distribuição geográfica do voto em Ventura é bastante explicita, traçando inúmeros interiores e exteriores.
- 3. Ver Neel Phillip, “Hinterland” (2018) e Guilluy, Christoph “La France Péripherique” 2014, entre outros.
- 4. Nada mostra mais este classismo do que a invectiva “leiam!” tão popular entre a esquerda metropolitana.