Ruy Duarte de Carvalho e o neo-animismo
Nos últimos anos da sua vida, Ruy Duarte de Carvalho anunciava frequentemente em curso a preparação de um movimento neo-animista. Entusiasmado por revisitar as modalidades da política – feita de táticas, manifestos e programas – brincava sugerindo a viralização do neo-animismo enquanto reviravolta política que sacudiria as categorias do Ocidente. O que era então este projeto neo-animista?
Podemos falar de duas faces. A primeira era abertamente programática: O neo-animismo visava constituir uma superação dos esgotamentos “espirituais” do Ocidente, dos seus humanismos, e da ocidentalização do seu mundo, a partir de um esforço de sistematização dos seus limites e contradições. O território angolano parecia apresentar nuances particulares destes fenómenos: o ruir das esperanças mais benévolas do projeto nacionalista angolano e a sua reconstrução numa chave “capitalista”; o confronto entre as suas populações “tradicionais” e a expansão das estruturas económicas e estatais de contornos “ocidentais” ou “ocidentalizadas”. Ruy Duarte de Carvalho queria então reunir uma equipa de investigação – filósofos, antropólogos, cineastas, etc. – que procedesse por partes: seriam inventariados estes limites e contradições do humanismo, bem como as críticas de que tinham sido alvo pelas vanguardas artísticas, pelos projetos políticos, pelas invetivas teóricas. Paralelamente seriam recolhidos e sistematizados os sucessivos saberes históricos, etnográficos e antropológicos que visavam um entendimento, em concreto, das práticas animistas e, num sentido mais abstrato, do que significa a alteridade a este humanismo e a este Ocidente. Esta investigação levaria à constituição de um programa com o seu manifesto, o seu “partido”, o seu movimento, etc. Em 2009 talvez fossem pouco evidentes os sinais materiais deste esgotamento, mas volvida quase uma década foram-se tornando evidentes os sucessivos acumulares de crise: crises financeiras, crises económicas, crise política, crise de representabilidade, crise ecológica, etc. Assim, a génese da ideia adquiria contornos narrativos. Existia um livro em planeamento, com o título de Paisagens Efémeras no qual o autor/narrador iria receber várias cartas e missivas de um grupo “embrionário” deste coletivo neo-animista, espalhado pelo mundo a observar e dar conta dessas “paisagens efémeras”. As paisagens efémeras seriam as estruturas e as disposições ambientais e territoriais produzidas especificamente pela expansão ocidental: as estruturas desmedidas da macro-exploração de um recurso – como o Big Hole de Kimberly, na África do Sul; as grandes transformações ambientais na organização da “natureza”; as infraestruturas especificamente ligadas à expansão do “Ocidente”.
O programa neo-animista surge num momento da vida, e da obra, de Ruy Duarte de Carvalho em que uma certa consagração, um certo reconhecimento, e uma certa obra feita não contribuem, no entanto, a que se abandone ao desfrute das honras recolhidas. É essencialmente um autor “de culto” que não transcende de um nicho especializado para um público mais generalizado – em parte porque o tempo em que esses papéis surgiam de modo inequívoco já terminou – algo que lhe traz uma relativa frustração. Ruy Duarte recusa que a sua mudança para Swakopmund seja uma aposentação ou um retiro voluntário dos processos nos quais sempre se implicou. Não obstante, quer no convívio pessoal, quer no que se perspetivava em termos de obra literária, surge um desses momentos em que diferentes expressões, aparentemente díspares, do que foi vivendo, pensando e escrevendo ao longo da vida parecem confluir no sentido e num projeto comum, orquestrando um sentido geral nas coisas. Este projeto do neo-animismo segue essa linha de confluências. A primeira seria a leitura ontológica da antropologia que fez em determinado território, uns meros anos antes desta hipótese se tornar numa das correntes mais discutidas da antropologia. O trabalho de campo de Ruy Duarte é feito num dos territórios míticos do seu passado, a “fronteira” limítrofe do território que a família vem habitar quando é ainda criança, e está por todo o lado preenchido por motivações e descrições que voluntariamente baralham os papéis habituais da disciplina académica que enquadra a sua pesquisa. É essa investigação particular, que descobre uma cosmogonia, que vem depois dar o campo ontológico das obras literárias cuja produção marcou a sua produção desde o fim dos anos 90. Ou seja, a antropologia providenciou-lhe os instrumentos para criar um mundo que a sua literatura depois lhe permitiu habitar. Esse habitar tem a particularidade de não tratar o território enquanto mero cenário das narrativas, ou enquanto mero artifício que engendra viragens episódicas. Este é convocado a uma centralidade do texto que compete com a das personagens, e a descrição “geográfica” é alvo de uma demora e atenção profunda, que compete com a dos personagens e das narrativas. Surge, perdoem-me alguma liberdade teórica e conceptual, um animismo no próprio texto, no sentido em que a “essência” deste deixa de residir na narrativa, nos personagens, no cenário, ou no narrador, mas é partilhada entre estes que, por vezes e em jogo permanente, se vão tornando indistintos uns nos outros.
Concorre com estes processos outro fator, também ele transversal ao percurso de Ruy Duarte: o de uma inscrição militante, ou “cívica”, destas práticas, que como todas as outras acabam por se ir inscrever, ainda que de modo tangencial ou estrutural, nos processos políticos dos tempos, dos locais e dos sujeitos. Todo o percurso teórico e criativo de Ruy Duarte não deixa de se inscrever numa teleologia, muito pouco ortodoxa claro, de um particular destino territorial, que parte de uma realidade colonial – a “Angola portuguesa” – e que terá de passar por inúmeros estádios e momentos – nem sempre bonitos ou agradáveis – antes de encontrar finalmente uma sua autonomia territorial, cultural e política que supere as formas soberanas ocidentais. Essa autonomia significará não só uma autonomia representativa, legislativa, económica mas, sobretudo, a constituição dos próprios meios de estruturação do poder, de cidadania e das formas culturais. Ruy Duarte identifica então determinada possibilidade ontológica e metafísica num determinado território e considera que esta tem um papel a jogar na construção de um território no qual coincidem sentidos geográficos, ecológicos, sociais, culturais, políticos e científicos.
Concordando ou não com os propósitos, e apreciando ou não o programa e as posturas implícitas, surge algo interessante. Ruy Duarte não tinha uma formação em filosofia, algo que frequentemente lamentava, no sentido em que passava horas a pensar sobre as coisas para depois descobrir que alguém já as tinha pensado antes mais profundamente, e que porventura toda essa interrogação sempre tinha estado ali, disponível, nas prateleiras das livrarias e das bibliotecas, sem que tivesse tido notícia da relevância que poderia ter para as suas próprias interrogações essa determinada autora ou aquela determinada obra. Nos últimos anos procurava um rumo dentro do cânone da filosofia continental, que apenas então de modo concreto começava a cheirar. É precisamente por não surgir diretamente dos circuitos do debate académico, ou de uma determinada escolástica, que se torna relevante assinalar o modo em que este projeto de Ruy Duarte vem espelhar reflexões, processos e ideias que estavam nesse preciso momento a ser formuladas a partir de debates que lhe eram consideravelmente alheios.
Sem querer entrar numa descrição demorada, que careceria de uma investigação mais profunda, esta formulação “neo animista” vem tocar de perto quatro grandes questões teóricas, algumas das quais apenas embrionárias no momento em que as formula. A primeira será a da relação entre soberania, subjetividade e identidade. O presenciamento direto dos múltiplos modos de destituição e constituição de um Estado, e dos sujeitos que este supunha e necessitava, permite a Ruy Duarte entender instintivamente os vários debates sobre soberania, exceção e subjetividade que se vão estendendo ao longo do séc. xx, de Carl Schmitt a Giorgio Agamben. A segunda será a da viragem ontológica da Antropologia, que ganhou considerável exposição com o Perspectivismo ameríndio do antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro, com a sua metafísica canibal. De certo modo também o trabalho de Ruy Duarte no Namibe poderia ser a averiguação de uma metafísica pastoril. A terceira será a do animismo enquanto perceção de uma existência para lá do humano e da sua sensibilidade. Algo muito presente em algumas correntes recentes da filosofia – o realismo especulativo, por exemplo – que procuram pensar a existência de modo independente da esfera da finitude da compreensão humana. A quarta será a de uma perceção clara do Antropoceno enquanto expansão de um modelo de organização da natureza, ou dessa expansão enquanto realidade postuladora de naturezas.
Esta tangencialidade às grandes questões da época não advém do génio do autor, é antes fruto do seu método de trabalho e do uso que fez da sua história e localização. É por aqui que encontramos uma resposta às questões que emergem deste projeto. A formulação do neo-animismo, tal como foi feita, é embrionária e limitada. Mistura coisas bastante diferentes que entram em confronto umas com as outras, e isto porque há pouco de mais “ocidental” ou humanista que esta colocação da ação entre programas e planos. Contrapõe ao dissolver do espaço, do tempo e do sujeito que ocorre nas suas latitudes essa teleologia socialista que herda do projeto nacionalista angolano, onde os agentes da história são movimentos, iniciativas, programas, vanguardas e manifestos. Paralelamente, o projeto neo-animista parece querer construir uma ontologia pós-colonial sem dar conta das várias investidas no mesmo sentido, paralelas às emergências dos movimentos de libertação nacional, ou seja, a necessidade de repensar as categorias do universal a partir das suas alteridades foi, com múltiplas variantes, parte estrutural do anti-colonialismo. No entanto, recuperando uma máxima alternativa dessa mesma teleologia, só nos colocamos os problemas que já somos capazes de responder. O que emerge enquanto resposta embrionária a estas questões, e que vem fundamentar este projeto para além dos limites da sua formulação embrionária, será, a meu ver:
Precisamente o facto de na produção literária, poética e teórica de Ruy Duarte se condensarem várias dinâmicas de desconstrução dos dispositivos disciplinares dos quais se ocupa, mesmo para lá do cruzamento entre eles. A sua antropologia assume artifícios literários, a sua poesia é estruturada a partir de uma alteridade linguística e estrutural, a sua literatura força as convenções de tipologia, forma e género. Não é uma escrita da subjetivação, mas da dessubjetivação – o dispositivo literário, a violência e provocação sobre a forma da frase, o posicionamento contra a figura autoral, todas agem em negação da história do próprio, da sua memória, do seu mundo. É uma escrita contra o autor e contra o personagem. A ideia de que tudo tem alma – enquanto reencantamento possível face aos diagnósticos mais reservados do humanismo – surge numa identificação extrema com o território, com o “outro” enquanto expressão do território, mas não enquanto folclore ou fetichismo. Este outro – uma entidade territorial e social – surge enquanto um “outro eu” e nessa relação de amizade constitui um posto para pensar.
É aqui que queremos chegar. A linha vermelha que percorre a “vida e obra” de Ruy Duarte, ou uma delas, ou a que nos interessa enquanto condutora a este projeto final, é precisamente a que visa uma e outra vez, de um e outro modo, constituir um território – no sentido de uma conjunção entre sujeito, geologia, paisagem e política – que destitua as categorias originais e os poderes nelas implícitos. É a constituição recorrente e sucessiva desse território que acaba por lhe permitir essa pertinência, acutilância e severidade de um olhar que não pode senão coincidir com as aporias presentes, precisamente por ter um lugar – muito preciso e muito sólido – onde se colocar. De outro modo, seria esta uma das possíveis respostas encontradas no decurso do seu projeto neo-animista: que a dissolução das modalidades humanistas, e que a superação dos seus impasses, poderia ocorrer precisamente numa apreciação mais profunda do que poderia significar esse habitar cosmopolita de um território.
Bibliografia
Carvalho, Ruy Duarte de. 1999. Vou lá visitar pastores. Lisboa: Livros Cotovia
———. 2000. Os Papéis do Inglês. Lisboa: Livros Cotovia
———. 2005. As paisagens Propícias. Lisboa: Livros Cotovia
———. 2009. A Terceira Metade. Lisboa: Livros Cotovia
do livro Diálogos com Ruy Duarte de Carvalho, Lisboa: BUALA/CES, 2019 (org Marta Lança), integrado no ciclo dedicado ao autor Paisagens Efémeras 2015.
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