A arte não tem imunidade

Quero tentar responder a essa pergunta falando um pouco sobre três palavras: “tempo”, “oportunidade” e “espaço”. As pessoas que me conhecem um pouco e conhecem alguns dos meus trabalhos sabem que tenho algumas posições fortes sobre o que significa reparação histórica. Infelizmente, em Portugal muita gente ainda não sabe o que significa reparação.

O meu trabalho que esteve na exposição coletiva no MAAT Interferências reflete a necessidade urgente de debater a história portuguesa a partir de outra perspetiva. É uma mensagem que fala da brutalidade dos tempos da colonização, mas também uma mensagem de esperança.

A famosa bandeira rosa onde escrevi a frase “Não foi descobrimento, foi matança” divide o espaço com um gif animado onde podemos ver a explosão do monumento que celebra as descobertas. Observando esta destruição há uma pintura que fiz invocando a divindade e a esperteza de Exu.

Exu fala através da minha peça: “o passado pode ser resolvido com ações do presente”. Esse trabalho foi inspirado em um ditado iorubá que diz. “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”. Meu trabalho lá no MAAT invoca outros imaginários. Solicita uma nova perspectiva ao usar a destruição como ferramenta para reconstruir uma história que apagou o povo negro da existência. No meu processo criativo, o apocalipse é uma fuga.

Como uma pessoa queer negra morando em Portugal, estou vivendo um momento interessante em termos de visibilidade no campo da arte. Como você sabe, a arte é um lugar não apenas para mostrar beleza, mas também é um dos espaços mais importantes para fazer política…. e dinheiro, claro.

ROD, Passado, 2022, Acrílico sobre telaROD, Passado, 2022, Acrílico sobre tela

Hoje, em Portugal, vemos uma tentativa de colocar mais pessoas negras neste campo. E nós sabemos o motivo. Se fizermos uma pesquisa simples sobre, veremos um grande aumento de artistas negros por aí. Este é um interessante movimento, mas também é uma indicação social. Informa-nos que o campo artístico de Portugal, após séculos de colonização e séculos de escravidão, só agora está prestando atenção às desigualdades sociais na arte. Para mim, como uma pessoas queer negra a viver em Portugal há quinze anos, o racismo é uma realidade que tenho de enfrentar dia a dia. Só para mencionar um estudo feito pelo European Social Survey em 2020 revelou que 62% dos portugueses manifestam algum tipo de racismo. Só no ano passado o governo criou um grupo de trabalho sobre o assunto. Mas falando de arte, devo dizer que algumas pessoas racializadas artistas estão felizes. Felizes por finalmente terem algumas oportunidades. Felizes por finalmente terem algum reconhecimento. Felizes por receberem gorjetas por estarem a fazer arte. Isso não é comum para nós. Este é um momento invulgar da história portuguesa. No entanto, é também um momento de perigo. Vou explicar porquê.

A colonização deu tempo e espaço para artistas brancos do norte global existirem na história. A colonização criou um lugar para permitir que artistas brancos tivessem oportunidades e conforto para fazer o que quisessem. A colonização estabeleceu uma plataforma que criou a ideia de que artistas brancos são livres para fazer tudo. É importante entender as desvantagens das pessoas negras dentro do campo da arte em Portugal. Hoje, artistas negros têm algumas oportunidades aqui. Finalmente! Mas não estamos conseguindo espaço. E há uma enorme diferença entre essas duas palavras. Oportunidades significa que alguém tem o poder de as criar. E aqui, as pessoas que estão tentando distribuir essas oportunidades são as pessoas que detêm o poder na história. Essas pessoas não estão dando espaço. Isso é algo que nós, pessoas negras, às vezes não prestamos atenção suficiente. Ficamos felizes com as oportunidades, com a visibilidade, com as gorjetas. No entanto, isso cria uma espécie de ilusão social. Uma ideia errada de que isso é reparação.

As oportunidades são ótimas. É importante convidar pessoas negras para falar nesse tipo de evento. É importante comprar trabalhos de artistas negros. É importante convidar pessoas negras para participar em exposições e é importante pagar as pessoas negras por todo tipo de trabalho que elas façam. Mas e o espaço para criar essas oportunidades? Por que não temos pessoas negras na liderança do campo artístico e cultural aqui em Portugal? Por que não temos pessoas negras como curadores aqui? Portugal tem mais de quinhentos anos de colonização. Mais de quinhentos anos fornecendo tempo e espaço para as pessoas brancas. E estou aqui, tentando destacar esta situação.

Desmodernizar o campo da arte significa que é obrigatório dar espaço para que as pessoas negras possam comandar. E esta tarefa será feita por você. Você já percebeu o poder que ainda detém? Você tem o poder e a posição de criar, não apenas belas exposições, mas tem o poder de criar espaço para as pessoas negras. Infelizmente, a história colonial distribuiu o poder apenas entre as pessoas brancas. E essas pessoas mantêm o poder de redistribuir esse poder. Mas a questão é: essas pessoas estão realmente interessadas em criar espaços reais para que as pessoas negras estejam igualmente no poder?

Em Portugal não temos categorias étnico-raciais legalmente aprovadas. Isso significa que não somos legalmente capazes de identificar desigualdades sociais em termos de raça. Este é um aviso importante de como a sociedade portuguesa funciona e como esse silêncio social da política nos informa que não há interesse ​em identificar esse problema. Mas podemos fazer isso visualmente. Basta olhar quem são as pessoas que estão liderando instituições de arte e curadorias para entender essa lacuna.

Recentemente criei um blog - um exercício informal -, onde coloquei algumas informações sobre essa ausência. Por enquanto é apenas uma lista de pessoas em liderança na cultura e na arte em Portugal. Estou apenas tentando dar alguma visibilidade a essa realidade. Se você verificar o blog, visualmente verá que 99% são pessoas brancas. Você pode conferir em “reparem.wordpress.com”. Não sei se a lista está atualizada e completa, mas é um passo nessa jornada que escolhi: tentar descolonizar a arte em Portugal e criar algum espaço para nós, pessoas negras, decidirmos por nós mesmas o que fazer.

Quando penso na questão que a Clara Kim trouxe para esta sessão, uma coisa que pode ajudar as instituições de arte em Portugal a mudar não é apenas criar oportunidades, mas também criar espaço para nós. Precisamos de representação. Precisamos de pessoas negras. Precisamos de pessoas trans. Precisamos de pessoas com deficiência. Precisamos de pessoas ciganas. Precisamos de imigrantes ocupando posições de poder no campo da arte. A arte não tem imunidade. A arte não está impune.

ROD, Pink Flag, 2021. Acrílico sobre tecido 360 x 146cmROD, Pink Flag, 2021. Acrílico sobre tecido 360 x 146cm

Quando vemos que as posições de poder aqui são comandadas apenas por pessoas brancas, apenas por pessoas cis, apenas por pessoas “normais”, entendemos como o campo da arte se preserva dentro de um comportamento colonial e racista. Acredito na reparação histórica quando nós, pessoas negras, passarmos a ocupar essas posições. Por enquanto, a reparação é apenas simbólica. A curadoria branca continua o processo de exploração e mercantilização de nossa história e da nossa dor. Assim vejo que as pessoas negras continuam a ser um produto. Enquanto o poder permanece no círculo branco, continuaremos vivendo na colonialidade. Esse comportamento colonial é um desafio a ser mudado. E isso não é apenas minha responsabilidade. Precisamos partilhar isso. Precisamos reconhecer juntos que o campo da arte em Portugal reproduz a colonialidade e o racismo. Precisamos chamar Exu para nos ajudar a mudar as consequências do passado no cotidiano das pessoas negras. Acredito que a única maneira de desmodernizar as instituições de arte em Portugal é quando vermos pessoas negras comandando essas instituições. Até lá continuaremos a ver pessoas brancas lavando as mãos e acreditando que os tempos de reparação já chegaram. Espero que você possa nos ajudar a mudar isso. Obrigada.

 

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Nota: Este texto é a tradução da transcrição do discurso que fiz no Parte Summit / Loulé / 6 de agosto de 2022. Conversa: Atendendo à natureza das coleções dos museus de arte moderna e contemporânea no contexto de discursos antirracistas e decoloniais, questionamos: como é que os museus adotam novos modelos e metodologias? Como podem as instituições responder à urgência de agendas sociopolíticas e apelar à ação da sociedade em geral? Como podem os museus passar dos modelos enraizados na propriedade, permanência e perpetuidade para modelos que privilegiam a interação, colaboração e partilha? Como pode acontecer a de-modernização das instituições de arte contemporânea? Quais os modelos que podem ser replicados no ecossistema artístico? Devem as instituições e espaços de apresentação de arte olhar para os processos de outros sectores, além da cultura, onde estes estão em discussão e a decorrer? Que competências devem ser utilizadas para iniciar este processo?  — Com Clara Kim (The Daskalopoulos Senior Curator, International Art at Tate Modern ), Sofía Hernández Chong Cuy ( Director at the Kunstituut Melly in Rotterdam), Rodrigo Ribeiro Saturnino (Artista e Investigador Pós-Doc na Universidade do Minho) & Mariana Pestana (AArquiteta, curadora e investigadora) 

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por Rodrigo Ribeiro Saturnino (ROD)
Mukanda | 13 Março 2023 | arte, artistas negros, campo artístico, poder, relações hierárquicas, representatividade