A destruição começa na imaginação
A liberdade criativa da arte é falsa. A ideia de emancipação do artista depende dos meios de produção que detém. Artistas sem meios adequados precisam de ser encontrados por Andy Warhol. No dilema da existência de artistas que não participam do circuito da arte burguesa, alinham-se mitos. O da “genialidade” muitas vezes é o que ocupa lugar principal na vida dessas pessoas. Quando despertam interesses, estes artistas rapidamente são etiquetados de variadas formas: dissidentes, emergentes, marginalizados ou de periferia. Uma estratégia cíclica presente nos campos de disputas de poder com o objetivo de relativizar o Outro como estranho. Ele só pode existir na condição de alheio. Um artista que emerge dentro do campo da arte e que diverge de um padrão, não o faz por decisão própria. Os “emergentes” são aqueles que não fazem parte originalmente de um setor e só o podem fazer através da decisão de quem domina esse meio: os que têm o poder de pôr e de tirar. Um poder de mostrar ou esconder. Um sistema, como eu escrevi num artigo para a revista Contemporânea1, que é herdeiro direto das técnicas coloniais de feitoria do visível.
Pessoas negras nascem dissidentes. Não é uma escolha. Se me identifico com o termo? Tendencialmente não. Identificar-me assim significa aceitar uma posição da qual não pude pensar sobre ela antes de aceitá-la como rótulo. Se pensar de uma perspectiva poética ou utópica, tenderia a aceitá-la como protesto, como elogio a uma existência de oposição a uma estrutura social quando, na verdade, foi ela própria quem me empurrou para esta condição. Ainda que esteja dentro, ocuparei sempre o espaço do lado de fora. Eu não sou.
Em determinados contextos, a dissidência pode ser interpretada como condição favorável. Ela é uma forma de resistência. Porém, é fundamental guiar o olhar para perceber a quem ela beneficia. Se aplicada às pessoas brancas normativas, potencialmente será interpretada como vanguarda. Um artista que diverge virtualmente do chamado “centro” para a “periferia” - num movimento de visita temporária - a partir da abstinência do seu privilégio, não só anexa mais uma vantagem à sua carreira, como também aumenta o seu estatuto social. Essa manobra de inversão do curso não é errática. Ainda assim, a falsa corrupção de si não o desqualifica. Pelo contrário, sua pertença o iliba. Esse artista tem uma prerrogativa. Romper com os valores burgueses não implica dizer que o artista abandonou ou foi abandonado pelos seus. Na verdade, essa mobilidade é propícia para corromper o conceito de liberdade criativa, baseado na premissa de que arte não depende da ética e que artistas são livres.
No sistema de produção da arte ocidental o mito da liberdade é um produto da branquitude. O pensamento de que a arte não deve se preocupar com a ética é nocivo. A arte faz sua gestão através de valores sociais que acompanham o tempo em que ela está inserida. São escolhas. Não é possível produzir arte atualmente sem pensar no lugar que os artistas ocupam na sociedade. Esse caráter mítico e especulativo criado pela burguesia colonial fundou o campo artístico como lugar de produção de conhecimento hermético e canônico. A ideia de neutralidade é oportuna para quem comanda. Quando argumentamos que a arte pode ser cancelada e deve ser cancelada em determinadas condições, não implica o fim da arte enquanto campo de expressão humana, mas a mudança radical da distribuição dos meios para a sua produção. Importante notar que a produção da linguagem constrói realidade. Assim, as tentativas de classificação rotulante que são dirigidas a artistas negres como emergentes / dissidentes/ marginalizados / periféricos mantêm o projeto colonial ativo. Destruir a linguagem é o primeiro passo para reconstruir as abordagens. A arte não é neutra.
A produção artística que não solicita consentimento, apenas exerce um direito que ela conquistou na base da matança e do estupro. Antes de argumentar que o controle da arte é um atentado à democracia, devemos nos perguntar quem está a reclamar. Talvez seja mais contemporâneo argumentar que a exclusividade dos meios de produção da arte seja, de fato, um atentado à proposta democrática de distribuição equitativa de oportunidades. Pergunte-se: Quem é que recebe financiamentos para produzir arte em Portugal? Quem são as pessoas que avaliam como serão distribuídos os fundos públicos para produção da arte? Quem são os proprietários da galerias? Quem faz as escolhas? Como providenciar um cenário de reparação histórica que garanta meios adequados a artistas com poucas oportunidades para que sejam deslocados das categorias que mencionei acima? Será possível destruir o “centro”?2
Quando a arte é controlada apenas por um tipo de pessoa que pertence a um grupo que foi socializado a partir de uma cultura colonial, como a portuguesa, não é só difícil pensar nestas perguntas, como é quase impossível uma mudança estrutural. Seria preciso não só reinventar o modo de produção artística, como ainda destruir este modelo para criar um novo baseado numa nova ética, em que pessoas sem sobrenome importante podem participar com voz ativa dos circuitos que distribuem o poder. A arte é política.
Pessoas negras não estão nestes lugares em Portugal. Só será possível dizer que a arte é livre quando ela for impossivelmente entregue às pessoas negras. Numa cultura igual é a portuguesa, as pessoas que foram consideradas objetos por uma sociedade erigida pelo racismo e pela escravatura, essa mudança será demorada.
Tem sido comum usar a palavra “aliança” para fazer menção às tentativas que pessoas brancas privilegiadas que se entendem como defensores e simpatizantes de causas diversas têm feito no cenário português. Uma aliança é um pacto, um acordo, uma concertação em que há cláusulas que a determina. Uma aliança deve ser feita entre pares que concordam entre si sobre o que constitui esse tratado. No entanto, essa aliança antirracista é falsa e desleal. Continua a ser operada entre privilegiados e não-privilegiados de modo servil e frágil. No campo da arte, a posição de subalternidade de artistas negres em Portugal denuncia essa falsidade. Ela tem uma estética própria e é arregimentada por currículos específicos. “Aliados” ocupam espaços de privilégio social e como tal utilizam essa vantagem como instrumento de manutenção dessa aliança. No entanto, como eu disse acima, a manutenção da sua posição enquanto privilegiado coloca esta “aliança” num estado ardil. Enquanto a pessoa “aliada” permanece neste lugar, ela reproduz o estado de exclusividade dos lugares. Nesta sentido, é importando colocar à prova os limites destas alianças para compreender o modo como as infra-estruturas que amparam a branquitude se organizam. Na arte, esta “aliança” tem sido comumente atribuída a novos comportamentos do setor no sentido de visibilidade e alguma gorjeta. Mas é uma necessidade voltar a referir que essa aliança tem se baseado na continuidade do projeto de precarização não só financeira, como também estatutária da imagem representativa de artistas negres em Portugal. A aliança não tem ainda nem um caráter crítico nem reparatório, limitando-se apenas a outro rótulo que incrementa um pouco mais a posição no mundo da pessoa privilegiada. A arte é falha.
Hoje, na produção da arte em Portugal há um movimento quase desesperado de inclusão de pessoas negras em eventos diversos. É uma situação recente. É um passo que anda junto à uma cilada. Ressalto: dar oportunidades não é a mesma coisa que dar espaço. Embora a presença de artistas negres tenha crescido, a mudança estrutural ainda está longe de acontecer. A sensação que eu tenho é que estamos a reviver o circo colonial. Sem dúvida, mais requinte e mais engajamento. Chega um sentimento em mim de que nós, artistas negres, estamos novamente a servir de matéria-prima de uma agenda, aquela que escamotea a precariedade dos recibos verdes para se desobrigar de um passado bárbaro. Manter-nos atracados às categorias de contraste político não é um favor. Entender-se como aliado por que sabe-se usar bem a palavra “negro” - essa categoria inventada para classificar uma mercadoria humana - não é gentileza. Longe disso.
A gestão da arte em Portugal continua em aliança através de um exercício cíclico, histórico e reprodutível. Um instrumento de expansão colonial do capital social de artistas, curadores, gestores e galeristas brancos privilegiados. Nesse sentido, é importante destacar a importância de contratar pessoas negras para a curadoria de museus, para a direção de teatro e para os cargos na gestão da cultura. Não basta apenas convidar. Uma política reparatória, implica em contratar. Não falta espaço para artistas “dissidentes”. Falta espaços para artistas negres. Falta espaço para artistas que não fazem parte de um círculo de poder. O lugar da arte em Portugal ainda está circunscrito a um pequeno grupo de pessoas brancas. Há uma ausência recorrente que não providencia posições para que pessoas negras ocupem espaço de decisão dentro da gestão da arte. Como afirmar que a arte é um espaço de liberdade quando ela sequer consegue se estabelecer como domínio democrático? Por que um país que celebra a vitória contra a ditadura continua a reproduzir a autocracia nos seus modelos de administração da cultura? Ora, basta dizer que a arte portuguesa é racista. Ou seja, ela se estabelece por modelos herdados de uma prática de exclusão e não de reparação. Democracia artística implica alternâncias de poder.
- 1. Disponível em https://contemporanea.pt/edicoes/comunidade-enquanto-imunidade/esteticas...
- 2. Ver o projeto “Reparem! A cor da cultura portuguesa”, disponível em: reparem.wordpress.com