A boca para pronunciar monstro
falam do animal. esse animal sem dentes, roendo a noite longa inteira por sinais em frequência exata do seu instinto. a garganta não comporta nada além de pequenas baratas de água salgada. quando era criança escrevia estórias de grandes animais do mar. culminava com as justiças que eles operavam aos seres humanos após terem o mundo deles destruído. os grandes animais eram os heróis.
a baleia quando engole outros animais regurgita-os em formato de âmbar. a pedra em estado viscoso é vomitada após o processo de corrosão nos sete estômagos do animal. a primeira coisa que me ensinaram foi o silêncio. precisava me calar e engolir as razões morais do mundo antes de elas serem grandes demais e não caberem na minha garganta.
elas não cabem mais. a violência não cabe mais na garganta do animal. o mesmo vômito preparado na barriga da baleia que encheu a praia de pedras pretas de âmbar, invade o intestino de nós, monstros. vomitamos pedras grandes para contar nossas histórias. enchemos os parques, os vitrais de igreja, as paredes dos cinemas, as brochuras dos livros. ninguém nos leu.
somos o bestiário. nossa animalização nos afirma como parte da natureza. o animal pré-alegórico é o coração latente; é uma violência. a livre caça na sociedade de consumo e produção arrebata nossos corpos de margem: nos tirem do centro; é para onde caem os desejos. quiçá os vagalumes nos façam atear fogo ao céu: a luz é pulsante - o escuro é largo e espaçado pela micropolítica da carne do monstro. é a carne que sobrevive.
a poesia indianista se confronta com o romantismo em assassinar a alma de uma fera : deliberadamente passional : os procuram nas frestas, comem seus corpos, esfaqueiam as barrigas oito, nove vezes. matam qualquer evidência da paixão furiosa e voltam pra casa. quantas transexuais contam suas histórias? a poesia não escreve nossas mortes. o homem já falou demais. não vamos apagar. deixem o animal falar.
o monstro é a eletricidade da melancolia. a melancolia nos serve de arma. somos animais sentimentais. nos cobrimos de outras matérias: nossos pêlos queimam a elegância colonial. são escatologias populares. a américa latina não conhece o pudor. o pudor que se acumuda no velho mundo e que não sobreviveu aos meses de viagens marítimas até o trópico. o pudor que arreganha os ventres nas pistas de dança do Miséria Dance Club do Brasil. onde dançam os monstros, se olham nos olhos, bebem feridas latentes, doentes de sede.
os monstros são os pilares do novo mundo; que esse pudor não me beije a boca. que esse pudor não me encare os olhos. que esse pudor não feche minha garganta rasgada de fluidos violentos, que não destrua a masculinidade efêmera que brota no meu corpo feminino, nem as ondas massivas de vulnerabilidade que o corpo trans acumula. que não me espere no dia raiando porque o sol do trópico é um animal.
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innombrable
“el indígena no repudiaba al Supay sino que temiéndole, lo invocaba y rendía culto para evitar que le hiciera daño”
A semântica e linguística da palavra DIABO é uma referência colonial na América Latina, não existe tradução em Aymara. O medo instaurado e compartilhado através do catolicismo e missões jesuítas europeias deslegitimaram todas as manifestações religiosas dos povos originários, desenhadas como O Mal. A eloquência de catalogar todos os sinônimos possíveis para o DIABO é nada além de uma repetição fadada a uma perda semântica. Ou um ganho sentimental. Deus não é indivisível, mas europeu.
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