Carregar o mundo nos cabelos: T'Ayó, o Musical
Domingo, 17.07.2016, diferente do sábado, não choveu. O dia corria na fruição de sensações: sol & frio, o silêncio que sempre atravessa os domingos & a paulista povoada, vivida. Olhei no relógio e já batia 13h20: passos suavemente apertados com o ritmo da música nos fones. Faltavam duas horas e meia para o espetáculo, mas, na frente do Itaú Cultural, já era possível avistar algumas mulheres e meninas sentadas no beiral com seus ingressos na mão. Passei por elas, sorriam entre si: “ah, com certeza ela também vai assistir Tayó”, sorrio eu também, com quentura no peito.
Representatividade e construção das meninas negras
“Menina pretinha/ exótica não é linda Você não é bonitinha / Você é uma rainha” [mc soffia]
Há ainda quem questione a importância da representatividade. É chover no molhado, mas vale repetir que, certamente, essas são as pessoas que sempre se viram pelas revistas, filmes e novelas; cuja pele está no sinônimo estrutural daquela palavrinha: beleza! É, também, dizer do óbvio, mas vale repetir que é justamente na infância que construímos os significados do que é desejável, confiável, do que é ser bom e que esses adjetivos estão historicamente associados às pessoas brancas. Vale, ainda, relembrar um depoimento da filósofa Djamila Ribeiro, que diz tanto de nós, meninas e mulheres negras:
(…) na TV só havia mulheres de cabelo liso fazendo comercial de xampu. Sou da geração Xuxa e cansei de ver todas aquelas paquitas loiras e de olhos azuis. O que aquilo significava? Significava que meninas loiras podiam ser paquitas, que meninas de cabelo preto ou ruivo podiam tingir seus cabelos de loiro e serem paquitas e que eu, negra e de cabelo crespo, nunca poderia ser. Na escola, cansei das vezes em que meu cabelo foi piada, considerado sujo, comparado a produtos de limpeza. Das inúmeras vezes em que os meninos não queriam fazer par comigo na festa junina, pois não dançariam com a “neguinha”. E o que mais doía é que toda a sociedade concordava com aqueles meninos.
Aqui se revela a importância de um musical sobre a valorização/autoaceitação das meninas negras e salta aos olhos como o tema é interseccional (pensando, então, gênero, raça e classe): não podemos esquecer que estávamos na Av. Paulista, “coração (risos) econômico de São Paulo” e, portanto, morada de uma classe privilegiada e, portanto, da branquitude. Não podemos esquecer, ainda mais, da importância do símbolo, da imagem das muitas pretas e pretos circundando e adentrando o Itaú. Nós, acentuando a existência da negritude ao colocar pluralidade nestes espaços. Nós, expondo a metalinguagem do dizer, dar e falar sobre a nossa voz, nossa estética, nossas crianças.
É importante dizer que Tayó começou em um livro (O Mundo no Black Power de Tayó), é importante dizer que esse livro veio das mãos de Kiusam de Oliveira: mulher, preta, artista multimídia, arte-educadora, bailarina, coreógrafa, contadora de histórias, doutora em educação e mestre em psicologia pela USP. Ela mesma ocupa lugar de representatividade para nós: meninas e mulheres negras que buscam se legitimar em territórios poéticos, acadêmicos e profissionais.
Kiusam: representação, delicadeza & criação: construiu com dedos de escrita um espelho honesto para as meninas pretas, estas inseridas em uma realidade ainda cruel, onde são submetidas as mais diversas formas de opressão, entre elas, a invisibilidade. Sobre isso empresto as palavras da própria autora:
Em um país de maioria negra, não se justifica uma televisão totalmente branca, como nós temos. A partir do momento que as emissoras entenderem que o público negro é grande, nós viveremos uma fase diferente desta que estamos passando, onde há violência por conta da cor da pele, agressões focadas na raça – cada vez mais banalizada.
Junto a ela a delicadeza da tessitura da artesã preta Luciene Campos, responsável por dar corporalidade & panos à menina Tayó. Junto a elas: a preta e os pretos do Morabeza Nação (Ananza Macedo, Renato Gama, Leonardo Carvalho e Ronaldo Gama): representatividade e potência na mesma medida. Trazem em seu trabalho a partilha da voz, timbres e composições belíssimas, evocam oralidade e ancestralidade no mesmo caminhar de Kiusam. E, não só, junto a eles, as belezas da escolha política, sim, de reconhecer as potências de outras pretas e pretos: compondo as áreas de áudio, vídeo, fotografia, maquiagem…
A junção de todos esses retalhos formam as infindas possibilidades que uma criança preta deve ter. Mostram que a luta primordial é atravessar, e derrubar, a falta de acesso que faz com que cresçamos acreditando que só temos as mesmas duas ou três opções. Aquelas, ecoadas desde os tempos da mansão do sinhô & da sinhá.
Tayó é cada uma (e cada um, por que não?) de nós, das nossas: criança, preta, princesa e tudo o mais que quiser ser, sobretudo, resistência.
“punho fechado aponta o sol, e grito sempre, grito sempre, grito sempre: Black Power!”