Carta a um jovem poeta
Regresso nas manhãs, ao alvor dos dias. Entre os ciprestes perfumados altos. Oscilam no topo, ao sabor da dança com o vento – assim são porque nos pedem silêncio dizias tu menino –, repetindo o nosso avô e os seus passos que se adiantavam aos nossos, deixando para trás beatas acesas atiradas, que fumávamos à vez, entre os primos, gente pequena formando o thiasus do alegre frenesim da descoberta do mundo, de joelhos esfolados, testas desporporcionadas, corpos sempre demasiado suados, palavras sobrepostas, bolsos recheados: paus pedras animais folhas terra.
Regresso aos nossos jardins. Agora feitos menores pelas geografias que nos cresceram, minhas e tuas, doando-nos os lugares que conhecemos juntos, lugares que tantas vezes experimentámos pelos olhos, e pelas mãos, um do outro. Nenhum de nós sabia o que era ter completado uma década de vida, mas entoavámos as palavras de ordem do que já sabias ser o nosso desígnio maior. Fizemos pactos de sangue, e talhámos a canivete troncos e sulcos no chão. Não à liberdade condicional.
Regresso às praias, às costas e enseadas. Deito como sempre deitámos, o peito nu contra a areia quente, juntámos o coracão ao calor que se molda, em todas as praias, o centro da terra sintonizado na pele, atravessando em vibração e explosão, a pulsação na jugular, ondas cruzadas e a transparência do teu olhar.
Regresso aos nossos livros, ao vôo suspenso e às palavras que fazem mundos. À seriedade e responsabilidade da escrita e do teu modo. O modo do cuidado e da escuta, desenhando uma inclinação que se faz adiante e ao lado esquerdo, em generosidade.
Miguel, a cada instante regresso, a cada instante partimos. Abrimos a mão – não nos servem as mãos fechadas – dizias tu, pausando e olhando-nos com um sorriso desafiante: uma mão fechada encerra um punhado de grãos de areia, uma mão aberta pode tocar e ser tocada, por todos os grãos do Mundo.
Atravessaram-me as palavras do Dufrenne, Rilke, o alvor do dia e o teu poema de juventude Hipotálamo em Flor.
Para ti Miguel:
Há hoje um novo silêncio no Mundo
que se povoa do canto das aves e do seu vôo doce
e certo
Um silêncio que nos diz da geometria
Do amor que desponta
Primavera em Flor.
Março 2024