Focos de intensidade, linhas de abertura, activação do mecanismo performance 1961-1979.
1. Dificilmente enquadrável ou coincidente com uma fórmula estável, o termo performance conhece um espectro de aplicabilidade amplo e variável. Partindo da sua raiz latina de acordo com a qual performare significa dar forma, numa relação estreita com o termo performatus significando acabado de formar, é hoje aplicado a partir do inglês onde é relativo ao desempenho de uma qualquer actividade, à execução, ao modo como algo se concretiza. Extravasando os limites estritamente artísticos, e no que a estes concerne os limites reservados tradicionais às artes de execução como o teatro ou a dança, o termo performance corresponde a acções humanas ou desempenhos tecnológicos.
Do amplo leque de possibilidades a incluir neste — desde o ritual ao desporto, passando pelos papeis sociais do quotidiano e pelas artes, uma noção subjaz, segundo Richard Shechner, a sua aplicação — qualquer acção que é enquadrada, apresentada, é uma performance. Marvin Carlson define — toda e qualquer performance existe enquanto acção, interacção e relação. No entanto, acrescenta: se existe um ponto certo relativamente à performance no domínio da arte, reside no facto de que esta é sempre performance para alguém, alguma audiência que a reconhece e valida como performance mesmo quando, como é ocasionalmente o caso, essa audiência é o próprio.
Para além do que concerne ao desempenho e à subjectividade do enquadramento que determina e condiciona o seu grau de significação, poderemos apenas ter como dado assente que não existe um limite histórico ou cultural estável para enquadrar o que é ou não uma performance.
A esta instabilidade corresponde o desdobramento conceptual a que as práticas que enuncia a têm sujeitado — cada performance contribui para a definição geral de performance — cada performer faz a sua própria definição de performance no processo de execução, de modo que cada trabalho se torna uma combinação inteiramente inesperada de eventos, como o refere Roselee Golberg, sublinhando a sua particularidade gerada da coincidência com uma combinatória tempo-lugar, enquadramento, irrepetível.
Os termos que a partir dos anos 70 se espalharam para descrever vários aspectos da performance – body art, living sculpture, autobiography – são uma indicação das muito diferentes aproximações a medium tomado por artistas contemporâneos.
A esse medium, flexível por natureza, não só não corresponde a ausência de regras para quebrar, como ao limite do enquadramento conceptual aplicado sobre um território que é por excelência de intensidades, correspondeu a liberdade da inclusão e da combinatória experimental de todos os aspectos da realidade, normativamente considerada artística ou não.
Concluiremos que determina que um conjunto de acções se definam enquanto uma performance o enquadramento a que são sujeitas e o consequente distanciamento analítico que instaura, em função da implicação do que no domínio da sociologia Erwin Goffman designou por restored behavior.
Este conceito centraliza o pressuposto a partir do qual empreendemos a exploração da dialética definida entre representação e intensidade, no interface da acção.
Esta incursão orientada por guias deleuzianas — consignadas nos conceitos repetição nua e repetição vestida, implicará a articulação dos conceitos da sociologia de restored behavior e enquadramento (Erwin Goffman), com o conceito de atitude e ready-made.
2. Instaurando repetições por meio das sequências empreendidas na acção (Marcel Mauss e Erwin Goffman), a activação do mecanismo performance implica a definição de um limiar (Mircea Eliade, Joan Huizinga, W. Turner) preciso, correlativo a um enquadramento – impondo uma particular consciência de si – de quem age, e dos dispositivos a que recorre. Estes dispositivos - os gestos assumem o carácter de dispositivos repetitivos (Marcel Mauss) descentrados ou representações componentes descentradas instituídas enquanto repetições nuas (Gilles Deleuze).
A consciência de si e do mundo decorrente da activação do mecanismo performance situa-se num plano distinto daquela que se funda no hábito. Em virtude da instauração dessa ordem de repetição, verificaremos que a performance opera uma deslocação conceptual da intuição da realidade sobre a repetição nua, no sentido da revelação da repetição vestida e do seu correlativo grau de diferença e natureza intensiva.
À repetição que opera sobre a repetição, à diferença que evoca a diferença corresponde a instauração do domínio da intensidade – domínio sub-representativo, território de todas as potências, do que o acto implica em actualização.
Falamos assim da activação de uma linha de abertura no sentido de um possível entendimento enquanto diferente do que ao nível da superfície se repete como igual.
Seguindo Erwin Goffman, o enquadramento impõe um enfoque, delimita uma unidade, consistindo numa predefinição que orienta a conduta num conjunto de princípios de organização que estruturam os acontecimentos e o comprometimento subjectivo nos mesmos, determinado a relação entre sujeito e objecto.
Se o enquadramento consiste no modo como as acções são conjugadas - se as entendermos enquanto repetições empreendidas sobre repetições, e a repetição que preside à dinâmica que institui o enquadramento e correlativa atitude responsável pela abordagem do que decorre numa performance como território de potências a serem actualizadas pela experiência, a instauração do mecanismo performance implicou, fruto de um alargamento da noção de enquadramento herdeiro da técnica da colagem, da acção dos expressionistas americanos e noção de ordenação de John Cage, que um enquadramento do que pode ser experimentado como arte não coincide necessariamente aos limites físicos de uma tela ou de um objecto, com os sons de uma escala.
Conclui-se que o enquadramento instaurando em função da operacionalização do mecanismo performance, determina uma atitude, sobre a qual recai a potencialidade de uma predisposição para a realidade, fluidificada por uma linha de abertura disruptiva relativamente ao habitual.
Verificaremos que esta é a atitude Merz (Kurt Shwitters), à qual corresponde o território da arte geral - segundo Greenberg, ou a outra face da vida, segundo Pierre Restany. Ou ainda, o domínio onde se desenham os contornos da multiplicidade teorizada por Jean.Jacques Lebel. Multiplicidade à qual corresponde a carga de cada acontecimento e nele de cada acção enquanto pura potêncialidade, da crueldade, verificaremos, na linha de Antonin Artaud.
Sob o enfoque da operacionalização do mecanismo performance estabelecemos uma genealogia conceptual enraizada na prática da collage cubista, pautada pela atitude Merz de Kurt Schwitters, atravessando a história da arte do século XX, aflorando em momentos de particular intensidade aos quais corresponde a acção-colagem de Allan Kaprow e dé-coll/age de Wolf Vostell, intermédia de Dick Higgins e mixed means Richard Kostelanetz, Poésie Direct de Jean-Jacques Lebel, inclusão e indeterminação de John Cage.
Verificamos que a esta genealogia conceptual corresponde um processo cuja cartografia cobre essa outra face história da arte do século XX ( Arnaud L.-Roujoux). Um processo histórico que elastificou a noção de enquadramento, que conhece uma particular aceleração com a re-territorialização do gesto e do corpo impressos a intensidade, por acontecimentos na trama espaço/tempo, no enquadramento do que é artístico.
3. No quadro da história da arte portuguesa, o século XX foi pontuado por particulares momentos de confluência no sentido da expressão e operacionalização desse processo de elastificação do enquadramento. Focos de intensidade sobre a cartografia dos quais nos debruçamos a partir da década de 50 – momento em que emergem experimentalmente de um substracto comum, primeiramente expressos através do poético, num segundo momento manifestos numa dinâmica inédita, mobilizante e institucionalmente descentralizada.
Não obstante a leitura que os estudos e investigações dedicados aos anos de 60 e 70 empreenderam no sentido da sistematização das práticas e dos eventos, do pensamento e dos processos, o eixo particular ao qual estes focos de intensidade se filiam permaneceu por codificar.
A leitura que nos é permitido fazer da cartografia historiográfica das décadas de 60 e seguinte da história da arte portuguesa, mostra-nos que esta toca tangencialmente, mas deixa escoar pelos interstícios da particularidade das temáticas e dos enfoques, a vertente do performativo.
Data de 1979 — ano que encerra o enfoque cronológico do nosso estudo, a edição de uma pequena e preciosa resenha do que nos últimos anos dessa década se havia realizado em Portugal, no território de uma prática artística cujas características legitimariam o enquadramento no termo performance art. Termo que constitui, ao mesmo ano, a cúpula da primeira sistematização historiográfica dedicada a uma prática artística de carácter subversivo, que encontra no gesto um dispositivo que serve o desafio às formas de representação dominantes: o trabalho consignado no Performance art – since futurism to the presente, assinado por Roselee Golberg.
No pequeno Performances, Rituels, interventions en espace urbain, art du comportement en Portugal, um crítico português escreveu, em francês, acerca de um conjunto de acontecimentos, maioritariamente associados à sua actividade enquanto agente cultural. Momentos que traduzem num plano de superfície, a expressão de um substracto alimentado por uma força motriz cuja mecânica se prende ao que verificaremos ser um processo histórico de expansão.
Aos focos de intensidade correlativos às praticas que constituem o objecto deste texto, corresponde uma vertente peculiar da história da arte portuguesa, por meio da qual esta se filia ao que verificaremos constituir a operacionalização do mecanismo performance.
Aplicável a qualquer situação, este mecanismo cujo funcionamento assenta na instituição de um particular enquadramento correlativo à articulação de gestos, é transversalmente aplicável a qualquer situação ou a qualquer forma de realizar o poético, o plástico, o performativo. Este constitui a actualização, em acto, de todas as potencialidades historicamente conquistadas pelo processo de expansão. Enquanto substracto, esse processo define o eixo de cristalização de uma nova forma de realizar o artístico.
No ano de 1985, a cronologia assinada pelo performer Manoel Barbosa e que antecede o catálogo do Performarte – I Encontro Internacional de Performance, denuncia uma consciência da existência desse eixo.
Esta sistematização atravessa as diferentes formas de realizar o artístico, tomando como mote a tónica do experimental. Inclui referências à sua expressão no território da música experimental e da poesia concreta, consigna num mesmo enquadramento a actividade de Ernesto de Sousa e a de Egídio Álvaro, versa simultaneamente galerias, instituições e espaços públicos.
Aos artigos e estudos que versam globalmente o lapso temporal destas décadas, assinados por Gonçalo Couceiro ou Bernardo Pinto de Almeida, Rui Mário Gonçalves, Eduardo Prado Coelho, Miguel Wandshneider ou João Pinharanda, Maria de Jesus Àvila ou Silvia Chicó, João Fernandes ou António Rodrigues, Raquel Henriques da Silva ou Fátima Lambert, correspondem estudos que cartografam a especificidade destas facetas particulares da sua multiplicidade.
Como é o caso de Ruy Vieira Nery e Paulo Ferreira de Castro nas Sínteses da Cultura Portuguesa – História da Música, de 1991 e no que concerne ao alargamento do campo poético operado pela poesia concreta, Pedro Cunha Reis em tese de mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1995.
Se, por um lado, a actividade de Ernesto de Sousa tem vindo a ser alvo de vários estudos desde a exposição Ernesto de Sousa/Revolution My Body, à qual subjaz a investigação levada a cabo por Miguel Wandshneider e Maria Helena de Freitas, da qual as directrizes conceptuais defendidas pelo primeiro servem de mote à problematização defendida por Mariana Santos em dissertação de mestrado apresentada à Universidade Nova de Lisboa em 2003, à actividade de Egidio Àlvaro poucas linhas tem sido dedicadas.
Gonçalo Couceiro, no seu trabalho consignado no livro Artes e Revolução 1974-1979, refere a programação por este levada a cabo nos anos sobre os quais versa o seu estudo e, no texto assinado por João Fernandes no catálogo da Exposição antológica de Albuquerque Mendes na Fundação de Serralves em 2003, este polariza os aspectos dominantes da actividade cultural da década de 70, entre a actividade empreendida de Egídio e a iniciativa de Ernesto de Sousa.
Num outro texto de João Fernandes, cuja autoria é partilhada com Fátima Lambert, a actividade de Egídio volta a ser referida no contexto do fervilhar cultural do Porto da década de 70, com o qual este crítico estabelece a partir de Paris uma ligação mediada pela Galeria Alvarez. Esta galeria, cuja fundação remete à década de 50, assumirá um papel chave na dinâmica destes anos, papel que se mostrou capaz de prolongar pela década de 70, sobrevivendo às oscilações consequentes das euforias de um mercado de arte destituído de bases consistentes.
No seu Arte e Mercado em Portugal: inquérito às galerias e uma carreira de artista, Alexandre Melo dedica-se a um estudo sistemático deste mercado que conhece o aparecimento de projectos singulares, capazes de enquadrar produção artística alheia ao território exclusivo da pintura e da escultura.
Caso notável neste mesmo contexto é o da galeria Ógiva, à qual o escultor José Aurélio deu vida em Óbidos, em 1970. Esta mobilizou a comunidade artística portuguesa, de Lisboa ao Porto passando por Coimbra num projecto de descentralização artística e conceptual, acerca do qual, para além e referências pontuais, encontramos um breve apontamento da sua história e actividade, apenas no texto de Gonçalo Pena, consignado no catálogo da exposição comissariada por António Rodrigues: Anos 60 - Anos de ruptura, uma perspectiva da arte portuguesa nos anos 60.
A cartografia do que verificaremos corresponder a um processo histórico de expansão que permeia pontualmente a história da arte portuguesa do século XX, revela que aos anos compreendidos entre 1961 e 1979, correspondem particulares regiões de intensidade, com filiações entre si, definindo linhas de abertura múltiplas.
Os limites dessa geografia correspondem à sobreposição de dois planos: o plano da história política e o plano da história artística. A leitura desta sobreposição, iluminada pela dinâmica e expressão do mecanismo performance, traduz um processo de experimentação artística dos limites formais e conceptuais — com bases no poético e no musical, mais tarde no pictórico e no conceptual, que se define paralelamente à des-estruturação das bases políticas, nos moldes até então vigentes, no quadro do regime de Salazar.
Às diaclases que se rasgam no corpo desse regime, a mais profunda nasce do compromisso colonial, em 1961. A partir de então, o equilíbrio incerto dos últimos anos do regime comporta um estado latente de revolução, expresso na capacidade de artistas e agentes culturais radicalizarem os limites impostos aos géneros e aos processos artísticos. Este atravessa as regiões de intensidade geradas da sobreposição dos dois planos, assumindo particular expressão nos anos em torno da Revolução de Abril. Este corresponde ao substracto alimentado pela mecânica do processo de expansão, traduzido nesta sobreposição, a partir de 1979, em linhas de abertura.
Salvaguardada a introdução à vigência e utilização dos conceitos em Portugal, discutidas e ponderadas as posições criticas ( Ernesto de Sousa, José Augusto-França e Egidio Alvaro), delimitamos o contexto dos momentos analisados. A Revista de Artes Plásticas e a Galeria Alvarez como primeiros focos agregadores. A poesia concreta e a colagem, da colagem ao alargamento do espaço pictórico e à expressão da escrita-índice em João Vieira, ao lugar do corpo no espaço limiar-revelação de Espiga Pinto. Os Encontros Internacionais de Arte em Portugal e a figura de Egídio Álvaro. Relação entre o CAPC e a Galeria Ógiva em Óbidos.
Conclui-se, da observação desta quadrícula, uma directa relação entre as directrizes que a orientam e o pano de fundo político e social sobre a qual se inscreve. Coincidem no plano de uma motivação definida no sentido da instauração de mudança e radicalização dos limites dominantes e das situações vigentes. Traduzem-se na exploração em território artístico da acção enquanto actualização operacionalizada pelo mecanismo performance.